“Não é fácil obter 50% de votos do povo brasileiro no primeiro turno.” Foi como se defendeu o presidente Luís Inácio Lula da Silva, percebendo para que lado sopravam os ventos, já na manhã da jornada eleitoral de domingo. E defender-se ele precisava porque não só nos palanques a céu aberto, mas nas inumeráveis reuniões a portas fechadas com o comando da candidatura Dilma Rousseff, fartou-se de vangloriar-se da vitória no primeiro turno.
Ofuscado por essa certeza, produzida pela euforia que o inebriou desde que a sua escolhida desbancou o tucano José Serra da liderança nas pesquisas, Lula subestimou o grau de autonomia de uma fatia expressiva do eleitorado que se guia pelo senso crítico. Foi quando passou a ocupar o centro das atenções, em detrimento da própria candidata, exibindo a incontinência verbal que lhe é peculiar quando lhe pisam os calos. Na sua fúria contra a imprensa, por ter ela revelado os escândalos das violações de sigilos fiscais na Receita e a esbórnia na Casa Civil de Erenice Guerra, ele se esqueceu de que o “Lulinha, paz e amor” foi o que o conduziu ao Palácio do Planalto.
Ao expor ao eleitorado o lado feral de sua personalidade política, ele evocou antagonismos que viriam a ser um dos fatores cruciais para remeter a disputa a 31 de outubro. O papel de Lula, portanto, foi decisivo, até aqui, de duas maneiras contraditórias. De um lado, mostrou-se capaz de carrear 47 milhões de votos para uma noviça desprovida de carisma, de quem a esmagadora maioria da população nunca tinha ouvido falar até pouco tempo atrás. Mas, de outro, por se achar invulnerável, acabou contribuindo para privá-la de um consagrador triunfo imediato.
De novo por se achar acima do bem e do mal, tardou a lançar ao mar o fardo Erenice. Quando o fez, a imagem de Dilma já tinha sido atingida pelos estilhaços da festança familiar da sua sucessora na Casa Civil, dando início a um movimento de migração de votos – principalmente para a verde Marina Silva. Serra, que terminou com cerca de 33% dos votos válidos – mais perto que os adversários daquilo que previam as sondagens -, se beneficiou por tabela, recuperando a vantagem que perdera no Estado de São Paulo.
Foi a presença do tema corrupção no noticiário que alimentou a onda verde. A começar dos jovens, crescentes setores do eleitorado passaram a se interessar por Marina como portadora da utopia do século 21: a defesa de uma causa nobre – a luta contra o aquecimento global e pelo progresso social – encarnada numa figura de excepcional integridade, com uma história de superação pessoal ainda mais comovedora que a de Lula. Ironicamente, na candidata identificada com o futuro que as novas gerações desistiram de esperar da política dos negócios, como sempre desaguaram também os votos do eleitorado conservador.
Nesse contingente de não pouca monta, sobretudo entre as mulheres e na chamada nova classe C – que melhorou de vida e se modernizou no plano material, mas continuou fiel a valores religiosos na esfera dos costumes -, a evangélica Marina ficou com os votos que seriam de Dilma antes que se propagasse na internet a acusação de que, além de ateia, ela era favorável ao aborto. Um retrospecto de declarações ambíguas, devidamente explorado por seus detratores, se mostrou mais forte que as cenas de religiosidade explícita protagonizadas pela candidata na reta final da campanha.
Mas, qualquer que tenha sido a importância do voto religioso para dar a Marina perto de 20 milhões de sufrágios (e outro tanto em porcentagem), ela foi a vencedora política do pleito. Não apenas por ter levado a sucessão a um novo teste, mas também pela proeza que está por trás disso: a implosão do projeto plebiscitário de Lula, que trabalhou noite e dia por uma disputa entre “nós e eles, pão, pão, queijo, queijo”. “Nós”, o lulismo, “eles”, a oposição. Ao decidir participar, “com uma dorzinha no coração”, do que o ex-companheiro desejava restringir a uma revanche com Fernando Henrique, Marina fez história.
“Não vamos aceitar o veredicto do plebiscito”, prometeu em junho, na convenção do PV. E previu: “Ele vai ser revogado pelo povo.”
Editorial do "O ESTADO DE SÃO PAULO"
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