Luiz Eduardo Soares
A manipulação de dossiês é uma prática repugnante e é bom que se torne alvo da repulsa coletiva. Pena que a mídia tenda a focalizar o problema apenas em campanhas eleitorais. Houve, sim, é verdade, reportagens importantes sobre manobras clandestinas, politicamente orientadas, alimentadas por dossiês fabricados ad hoc para atingir a reputação de pessoas honradas. Mas são raras essas matérias, enquanto a prática, infelizmente, é contínua. Eu mesmo fui atingido por esse tipo de arma desleal, em que o acusador esconde sua identidade e, portanto, sua motivação, evitando, assim, responder por seus atos, comprovar as acusações e responsabilizar-se pelos eventuais efeitos caluniosos. Curioso que, em meu caso, o dossiê, sua autoria e os interesses inconfessáveis escondidos pela máscara do anonimato não foram objeto de interesse por parte da mídia, salvo exceções. Pelo contrário, tomaram gato por lebre, morderam a isca e ignoraram solenemente a forma pela qual as “informações” chegaram às redações de revistas e jornais. Em poucas horas eu me tornei nepotista, ainda que ninguém tivesse parado para verificar se as acusações procediam ou não. Pois elas não procediam, como se constatou posteriormente. Mas era tarde. Estava ali, não na oposição ao governo, mas no coração mesmo do governo, a fonte dessa prática facistóide.
Interessante observar como se inverteram os valores. A mídia perdeu a oportunidade de descobrir o ovo da serpente instalado no centro do poder, porque preferiu os fogos de artifício do escândalo. E o partido no poder, o PT, ao qual eu pertencia, em vez de tratar o episódio com dignidade, compostura, decência e um mínimo de respeito pelo acusado –cuja longa trajetória cidadã e profissional era conhecida e respeitada– optou por desqualificar a vítima do dossiê calunioso e covarde –nesse caso, eu.
Como se deu a desqualificação? Pela manhã, ao telefone, eu disse ao então presidente do PT, Genoíno, que não era necessário que ele me defendesse, porque disso eu mesmo trataria, mas que ele tinha o dever de afirmar, publicamente, que o partido não aceitava o uso de dossiês apócrifos como meio de ação política e que, portanto, se viesse a ficar provado que os autores eram militantes do PT, eles seriam punidos nos termos determinados pelas normas internas.
Algumas horas depois, o deputado Genoíno, que eu e boa parte do país aprendêramos a admirar, deu uma entrevista coletiva em que me chamou de “gambá”, porque espalhava mau-cheiro para ocultar-me. Solicitei minha imediata desfiliação. Ao cargo eu já havia renunciado. Seguiram-se quase dois anos de perseguição stalinista, durante os quais meu nome foi incluído no index governamental. Governos que me convidaram a atuar como consultor foram informados de que não receberiam verbas federais para projetos na área de segurança se eu fosse contratado. Um querido amigo, que ainda mantinha boas relações com Genoíno, foi procurá-lo, em Brasília, para esclarecer a situação e, quem sabe, separar disputas, divergências e até atritos pessoais, de políticas de Estado, como o repasse de recursos. A resposta que colheu foi curta e grossa: se meu amigo quisesse trabalhar na área, que se afastasse de mim. Eu não era um gambá, mas, pela manobra stalinista, fui transformado no bicho pestilento.
Como é que o quadro mudou? Quando mandei recados pela mídia de que estava disposto a contar minha história, publicamente, sem poupar personagens e práticas contra as quais sempre me batera, mas que terminaram por me derrotar. Somente recuaram do cerco que impuseram a meu nome quando perceberam que eu não me deixaria acuar e que teria energia e coragem política para sair das cordas e partir para o ataque. Por justiça, registro minha gratidão a Tarso Genro e Lindberg Farias, que se recusaram a jogar o jogo da estigmatização e não se furtaram a estabelecer parcerias e valorizar minha contribuição.
Por isso, digo aos amigos do twitter e do blog: o uso de dossiês é uma peste muito mais comum e corrosiva da democracia do que as escaramuças eleitorais sugerem. A direita sempre trabalhou com essa arma anti-democrática. Mas a esquerda que chegou ao poder adotou essa repulsiva tradição como se fosse uma herança bendita. No fundo, isso mostra que os velhos sonhos de uma sociedade regida pelo respeito aos direitos humanos foram para o espaço, nos setores comprometidos com a esquerda autoritária. Nesse campo, triunfou o utilitarismo mais rastaquera, segundo o qual os fins justificam os meios. Os arautos dessa esquerda não dizem, mas pensam: às favas os escrúpulos burgueses; às favas o moralismo pequeno-burguês; às favas as normas institucionais. A vitória tudo justifica, tudo redime. Pisemos o pescoço do companheiro da véspera. Exponhamos o aliado ao ultraje e ao linchamento público. Assassinemos reputações. O poder estenderá sobre o passado o manto do oblívio. Ao indivíduo, cujo único poder é a dignidade de sua biografia, resta prestar seu pequeno testemunho para que os netos não lhe cobrem a omissão.
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