domingo, 2 de setembro de 2012

O CRETINO FUNDAMENTAL

Edgard é namorado de Ritinha, moça simples, que trabalha como professora para sustentar suas três irmãs e a mãe louca. Ele, por sua vez, tem um emprego medíocre e também sofre com dificuldades financeiras. Certo dia, Edgar recebe proposta para casar-se com a filha do patrão, Maria Cecília, a Bonitinha. Edgar assume que pode ser um mau-caráter, mas, afinal, aceita se casar, mediante pagamento de boa soma de dinheiro.

Quando ouve que a filha precisa de um noivo, mesmo comprado, para salvar-lhe a honra e as aparências, Edgard fica chocado e volta atrás. No dia seguinte, recebe a visita de Maria Cecília, que lhe pede carinhosamente para reconsiderar sua decisão. Ele cede e recebe em troca um cheque milionário, ao portador. Com o casamento acertado, Edgard vai se despedir de Ritinha em um cemitério, e ela lhe conta como faz para sustentar a família. Ritinha, na verdade, é prostituta. O conflito de Edgar, até o desfecho final, balança entre o seu amor puro por Ritinha e sacar o cheque e se casar com Bonitinha que, do mesmo modo, nada tem de santa.

Essa é apenas uma amostra da complexidade, do talento e da ousadia de Nelson Rodrigues, que em 23 de agosto deste ano faria 100 anos. Escrita nos dias de hoje, a estória acima não afetaria em demasiado os pudores da família brasileira, já acostumada com tantas telenovelas, a não ser pelo inusitado da própria trama. Imagine-se, no entanto, o rebuliço que causou na conservadora sociedade carioca dos anos 1960.

Nelson gostava de chocar. A irreverência desse pernambucano, que viveu praticamente toda a vida no Rio de Janeiro, não tinha limites. Produzida a estória para os palcos, seu maior amigo teve a surpresa de ver o seu nome, em grandes e luminosas letras, no Teatro Maison de France: Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende. Nunca se soube se a introdução do nome do talentoso jornalista e escritor no título da peça foi homenagem ou galhofa.

O "homenageado", que de início ficou enfurecido por ver o seu nome assim utilizado, ele que era de família tradicional mineira, acabou por reconhecer que Nelson era um feixe de paradoxos. "É um profundo individualista e vive da emoção coletiva", disse Otto. "Foi um conservador e tem uma obra revolucionária. Orgulha-se de ser um reacionário e foi um dos autores mais censurados do Brasil". Perguntado ao próprio Nelson se ele seria mesmo reacionário, respondeu: "Reajo a tudo o que não presta!".

Nelson Rodrigues se notabilizou, além das suas crônicas furiosas e estórias cheias de malícia, pelos notáveis personagens que criou: o cretino fundamental, o idiota da objetividade, o padre de passeata, a estagiária de calcanhar sujo, o sobrenatural de Almeida, o desconhecido íntimo, o remador de Ben-Hur, o óbvio ululante e tantos outros. Diga-se que foi páreo apenas para o poeta e escritor baiano Gregório de Matos, o "Boca do Inferno", que estremeceu a sociedade luso-brasileira e satirizou, sem pudores, os costumes do século 17.

Penso na falta que fazem escritores críticos e ácidos, dispostos a exprimir a indignação geral em face dos caminhos trilhados pela humanidade neste conturbado início de século 21. No plano mundial, choca o sorriso cínico de Anders Breivik, condenado a 21 anos de prisão por um tribunal da Noruega por ter assassinado 77 pessoas movido, segundo afirmou, por uma causa: supremacia racial e anti-islamismo. Considerado mentalmente são, pediu desculpas aos simpatizantes por não ter conseguido matar mais gente. No âmbito nacional, não causa menos espanto a desfaçatez dos personagens que desfilam pelos autos do chamado processo do mensalão, cujas vergonhosas justificativas para a distribuição particular do dinheiro público felizmente não estão encontrando respaldo no Supremo Tribunal Federal.

Nas crônicas de Nelson Rodrigues, o cretino fundamental ou idiota da objetividade era o cidadão, ou pária social, que defendia ardorosamente uma ideia estapafúrdia, demencial, cretina. O "anjo pornográfico" não teria dificuldades, hoje em dia, em continuar a encontrá-lo por aí, sorrindo em um tribunal na Noruega ou, de terno e gravata, furtando vergonhosamente os cofres públicos.
Bonitinha, mas ordinária tem final feliz. Ao nascer do Sol, Edgard queima o cheque recebido pelo casamento ao lado de Ritinha, na praia. É um foco de esperança de que, afinal, a humanidade não está perdida e que as pessoas podem não ser tão maus-caracteres. Comédia e drama, reflexo do paradoxo próprio do escritor, demonstra que a vida, embora trágica, pode ao menos ter graça.

Mônica Sifuentes

Nenhum comentário:

Postar um comentário