Gilberto Carvalho e Maria do Rosário precisam parar de desfilar seus cadáveres com pedigree. O que eles dizem sobre os 50 mil cadáveres anônimos?
Emparedado por um ministro milionário e pobre em explicações, por uma Rainha Muda que repudia a política, por um Congresso inquieto, por um ex-presidente buliçoso, pela inflação renitente e pela virtual paralisia da administração, o governo está em busca de “causas”. Se preciso, sairá pelas ruas carregando cadáveres sobre a cabeça para tentar conjurar inimigos inventados no calor da hora. Foi o que fizeram Gilberto Carvalho, secretário-Geral da Presidência, e Maria do Rosário, ministra dos Direitos Humanos. Divulgaram uma nota conjunta lamentando a morte, em Rondônia, de Adelino Ramos — ex-líder do MST, presidente do Movimento Camponeses Corumbiara e da Associação dos Camponeses do Amazonas — e do casal de “ativistas ambientais” José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, no Pará.
Diz a nota:
“O assassinato de Adelino Ramos merece o nosso total repúdio e indignação. Há três dias o Brasil se chocou com a execução de duas lideranças em circunstâncias semelhantes, no Pará. Hoje, mais uma morte provavelmente provocada pela perseguição aos movimentos sociais. Essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Que diabo de cristão (ooops!) é esse Carvalho? Sim, eu também lastimo esses fatos. Eu levo a sério a máxima de que a morte de qualquer homem me diminui. Eu sou, inclusive, um militante radical contra a pena de morte. A vida, mesmo a do pior facínora, jamais pode ser tirada pelo estado e por qualquer outro a não ser em legítima defesa. Eu não transijo nisso. Por isso causa-me certo asco a nota dos dois ministros, seu oportunismo tosco. Fica visível, no texto, que o que enche os companheiros de indignação é a suposição de que sejam ocorrências provocadas “pela perseguição aos movimentos sociais”. Daí, então, concluem: “Essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Entendi tudo muito bem! O que os deixa especialmente chocados não são as mortes em si, não, mas a vinculação política das vítimas. São mortos de respeito. São mortos de pedigree ideológico. Os direitos humanos no Brasil são, sim, um valor, mas na sua vertente ideologizada. Nem todos, descobrimos, são humanos igualmente. É por isso que este é o país que já torrou mais de R$ 4 bilhões indenizando vítimas — e, sobretudo, supostas vítimas — com o Bolsa Ditadura, mas permite que a tortura corra solta nas cadeias contra presos comuns. Direitos humanos existem para aqueles que foram “humanizados” pela militância política, pela “luta”, pela “causa”, pela ideologia!
São assassinados por ano, no país, mais de 50 mil brasileiros anônimos. No dia em que Adelino morreu, dada a média, outras 136 pessoas se foram com ele. Não há guerra civil — na Líbia, no Iêmen ou no Iraque — que mate tanto assim. Não sou ingênuo e repudio a demagogia. Não espero, evidentemente, que os dois valentes emitam 137 notas de protesto por dia. O que se espera do governo que representam, que caminha para a segunda metade do nono ano, é uma política pública de combate aos homicídios, que baixe esse número escandaloso. Inexiste. A prática estúpida e demagógica em curso se limita a recolher garrucha enferrujada.
Sim, o governo tem de mandar investigar, tem de botar na cadeia os assassinos dos três, tem de se indignar, mas não porque haveria uma escalada contra os ditos movimentos sociais, o que, como se verá abaixo, pode não ser exatamente verdade. Essa nota é indecente. Trata-se de uma ideologização descabida do episódio quando se fala em nome do estado brasileiro.
Pode matar, mas a pessoa certa!
Reportagem de Carlos Mendes no Estadão Online (ver abaixo) informa que o casal de “ativistas ambientais” José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinado no Pará, estava em conflito com os próprios assentados. Parte deles defendia os negócios com os madeireiros da região. Leiam isto:
“(…) um agricultor conhecido por Pelado não aceitava a liderança do casal e dizia abertamente na comunidade que não gostava do ambientalista. Em agosto de 2009, José Cláudio e o irmão, Claudemir, foram armados tomar satisfações com Pelado sobre a posse de um lote de terra no assentamento. Durante a discussão, Claudemir atirou e matou Pelado. A polícia de Nova Ipixuna não apurou o caso na época. Por pressão de familiares de Pelado, um inquérito policial só foi aberto em dezembro de 2010.”
Vocês leram tudo direitinho. Aquele extrativista pacifista agora assassinado resolvia suas pendenga de arma na mão, levando junto o irmão como capanga. Na briga por causa de um lote, o tal Pelado foi assassinado. A polícia da então governadora Ana Júlia Carepa, do PT, decidiu não apurar o caso. Abriu um inquérito mais de um ano depois… E por quê? O morto de 2009 estava do lado do “mal”, e os mortos de agora estão do lado do “bem”. O errado não é matar, mas matar “companheiros”. Como há madeireiros por ali — e também em Rondônia —, e a maioria não é mesmo flor que se cheire, então os culpados de sempre já estão dados. E ninguém vai querer apurar os métodos de José Cláudio ou de Adelino para exercer a sua liderança. Num caso, ao menos, fica claro: era com revólver na cinta. Não! Não estou justificando nada! Apenas trabalho com a hipótese de que, se o assassino Claudemir estivesse na cadeia, talvez seu irmão e sua cunhada continuassem vivos. Como dizem Gilberto Carvalho e Maria do Rosário, “essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Os deputados Arnaldo Jordy (PPS-PA) e Dr. Aluizio (PV-RJ) apresentaram requerimento para acompanhar as investigações sobre a morte do casal. Esperam que incluam Pelado nas suas preocupações — ao menos disfarça a vocação da política papa-defunto.
Não é de hoje
Não é de hoje que essa gente é assim, não! No dia 15 de fevereiro de 2005, ainda no site Primeira Leitura — este blog publicou o primeiro post no dia 24 de junho de 2006 —, escrevi o texto Silva, um morto sem sepultura. A missionária Dorothy Stang havia morrido fazia três dias, no dia 12, e eu afirmei o óbvio: que seus assassinos fossem em cana! Mas lembrei a história de Luiz Pereira da Silva, um policial torturado e morto num assentamento do MST na cidade de Quipapá, em Pernambuco. Um colega seu também foi torturado, mas sobreviveu. Silva morreu 10 dias antes de Dorothy.
Não se derramou uma lágrima pública por Luiz Pereira. A Pastoral da Terra não mandou rezar uma missa em memória de Luiz Pereira. A imprensa não se interessou em saber quem era o assassino de Luiz Pereira. Mulher e filhos de Luiz Pereira ficaram entregues à própria sorte. Luiz Pereira era um morto sem pedigree militante, um morto sem importância, apenas um policial preto de Pernambuco. Escrevi então:
Luiz Pereira da Silva é um morto sem sepultura; Luiz Pereira da Silva é um morto de quinta categoria; Luiz Pereira da Silva confunde as afinidades eletivas dos demagogos brasileiros; Luiz Pereira da Silva pertence àquela estranha categoria de homens que, por mais que sofram, jamais vão se tornar mártires de coisa nenhuma; Luiz Pereira da Silva era pobre demais, desimportante demais, vulgar demais até para ser oferecido em holocausto no altar de fantasmagorias de dom Balduíno; Luiz Pereira da Silva não serve como cordeiro do Deus justiceiro do MST.
Omite-se o governo — e, portanto, estimula a violência no campo — quando permite que, ao arrepio de qualquer controle ou acompanhamento responsável, a questão fundiária se transforme em objeto de disputas de organizações não-governamentais e grupos de pressão que põem seus preconceitos e idiossincrasias acima das necessidades econômicas das comunidades nas quais atuam, elegendo, por critérios que lhes são próprios e alheios a qualquer estratégia pública, os perdedores e os vencedores, satanizando uns, incensando outros, fazendo de uns as bestas do apocalipse e, de outros, os anjos da redenção.
A propósito do caso Dorothy: pouca gente sabe ou se lembra que Adalberto Xavier Leal, funcionário de um dos então suspeitos de terem ordenado a morte da freira, também foi assassinado em represália. O barracão em que morava foi invadido por oito homens, e ele foi executado na frente da mulher e de cinco filhos. O que aconteceu com seus assassinos? Quais assassinos? O que o mundo disse a respeito?
Ele era outro morto sem pedigree, por quem Gilberto Carvalho e Maria do Rosário não emitem notas nem derramam lágrimas militantes. Luiz Pereira da Silva, Pelado e Adalberto não tiveram tempo de aprender o seguinte: vivendo ou morrendo, é preciso estar “do lado certo”. Não me peçam para ter respeito por esse tipo de exploração barata da morte.
Por Reinaldo Azevedo
Emparedado por um ministro milionário e pobre em explicações, por uma Rainha Muda que repudia a política, por um Congresso inquieto, por um ex-presidente buliçoso, pela inflação renitente e pela virtual paralisia da administração, o governo está em busca de “causas”. Se preciso, sairá pelas ruas carregando cadáveres sobre a cabeça para tentar conjurar inimigos inventados no calor da hora. Foi o que fizeram Gilberto Carvalho, secretário-Geral da Presidência, e Maria do Rosário, ministra dos Direitos Humanos. Divulgaram uma nota conjunta lamentando a morte, em Rondônia, de Adelino Ramos — ex-líder do MST, presidente do Movimento Camponeses Corumbiara e da Associação dos Camponeses do Amazonas — e do casal de “ativistas ambientais” José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, no Pará.
Diz a nota:
“O assassinato de Adelino Ramos merece o nosso total repúdio e indignação. Há três dias o Brasil se chocou com a execução de duas lideranças em circunstâncias semelhantes, no Pará. Hoje, mais uma morte provavelmente provocada pela perseguição aos movimentos sociais. Essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Que diabo de cristão (ooops!) é esse Carvalho? Sim, eu também lastimo esses fatos. Eu levo a sério a máxima de que a morte de qualquer homem me diminui. Eu sou, inclusive, um militante radical contra a pena de morte. A vida, mesmo a do pior facínora, jamais pode ser tirada pelo estado e por qualquer outro a não ser em legítima defesa. Eu não transijo nisso. Por isso causa-me certo asco a nota dos dois ministros, seu oportunismo tosco. Fica visível, no texto, que o que enche os companheiros de indignação é a suposição de que sejam ocorrências provocadas “pela perseguição aos movimentos sociais”. Daí, então, concluem: “Essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Entendi tudo muito bem! O que os deixa especialmente chocados não são as mortes em si, não, mas a vinculação política das vítimas. São mortos de respeito. São mortos de pedigree ideológico. Os direitos humanos no Brasil são, sim, um valor, mas na sua vertente ideologizada. Nem todos, descobrimos, são humanos igualmente. É por isso que este é o país que já torrou mais de R$ 4 bilhões indenizando vítimas — e, sobretudo, supostas vítimas — com o Bolsa Ditadura, mas permite que a tortura corra solta nas cadeias contra presos comuns. Direitos humanos existem para aqueles que foram “humanizados” pela militância política, pela “luta”, pela “causa”, pela ideologia!
São assassinados por ano, no país, mais de 50 mil brasileiros anônimos. No dia em que Adelino morreu, dada a média, outras 136 pessoas se foram com ele. Não há guerra civil — na Líbia, no Iêmen ou no Iraque — que mate tanto assim. Não sou ingênuo e repudio a demagogia. Não espero, evidentemente, que os dois valentes emitam 137 notas de protesto por dia. O que se espera do governo que representam, que caminha para a segunda metade do nono ano, é uma política pública de combate aos homicídios, que baixe esse número escandaloso. Inexiste. A prática estúpida e demagógica em curso se limita a recolher garrucha enferrujada.
Sim, o governo tem de mandar investigar, tem de botar na cadeia os assassinos dos três, tem de se indignar, mas não porque haveria uma escalada contra os ditos movimentos sociais, o que, como se verá abaixo, pode não ser exatamente verdade. Essa nota é indecente. Trata-se de uma ideologização descabida do episódio quando se fala em nome do estado brasileiro.
Pode matar, mas a pessoa certa!
Reportagem de Carlos Mendes no Estadão Online (ver abaixo) informa que o casal de “ativistas ambientais” José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinado no Pará, estava em conflito com os próprios assentados. Parte deles defendia os negócios com os madeireiros da região. Leiam isto:
“(…) um agricultor conhecido por Pelado não aceitava a liderança do casal e dizia abertamente na comunidade que não gostava do ambientalista. Em agosto de 2009, José Cláudio e o irmão, Claudemir, foram armados tomar satisfações com Pelado sobre a posse de um lote de terra no assentamento. Durante a discussão, Claudemir atirou e matou Pelado. A polícia de Nova Ipixuna não apurou o caso na época. Por pressão de familiares de Pelado, um inquérito policial só foi aberto em dezembro de 2010.”
Vocês leram tudo direitinho. Aquele extrativista pacifista agora assassinado resolvia suas pendenga de arma na mão, levando junto o irmão como capanga. Na briga por causa de um lote, o tal Pelado foi assassinado. A polícia da então governadora Ana Júlia Carepa, do PT, decidiu não apurar o caso. Abriu um inquérito mais de um ano depois… E por quê? O morto de 2009 estava do lado do “mal”, e os mortos de agora estão do lado do “bem”. O errado não é matar, mas matar “companheiros”. Como há madeireiros por ali — e também em Rondônia —, e a maioria não é mesmo flor que se cheire, então os culpados de sempre já estão dados. E ninguém vai querer apurar os métodos de José Cláudio ou de Adelino para exercer a sua liderança. Num caso, ao menos, fica claro: era com revólver na cinta. Não! Não estou justificando nada! Apenas trabalho com a hipótese de que, se o assassino Claudemir estivesse na cadeia, talvez seu irmão e sua cunhada continuassem vivos. Como dizem Gilberto Carvalho e Maria do Rosário, “essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato”.
Os deputados Arnaldo Jordy (PPS-PA) e Dr. Aluizio (PV-RJ) apresentaram requerimento para acompanhar as investigações sobre a morte do casal. Esperam que incluam Pelado nas suas preocupações — ao menos disfarça a vocação da política papa-defunto.
Não é de hoje
Não é de hoje que essa gente é assim, não! No dia 15 de fevereiro de 2005, ainda no site Primeira Leitura — este blog publicou o primeiro post no dia 24 de junho de 2006 —, escrevi o texto Silva, um morto sem sepultura. A missionária Dorothy Stang havia morrido fazia três dias, no dia 12, e eu afirmei o óbvio: que seus assassinos fossem em cana! Mas lembrei a história de Luiz Pereira da Silva, um policial torturado e morto num assentamento do MST na cidade de Quipapá, em Pernambuco. Um colega seu também foi torturado, mas sobreviveu. Silva morreu 10 dias antes de Dorothy.
Não se derramou uma lágrima pública por Luiz Pereira. A Pastoral da Terra não mandou rezar uma missa em memória de Luiz Pereira. A imprensa não se interessou em saber quem era o assassino de Luiz Pereira. Mulher e filhos de Luiz Pereira ficaram entregues à própria sorte. Luiz Pereira era um morto sem pedigree militante, um morto sem importância, apenas um policial preto de Pernambuco. Escrevi então:
Luiz Pereira da Silva é um morto sem sepultura; Luiz Pereira da Silva é um morto de quinta categoria; Luiz Pereira da Silva confunde as afinidades eletivas dos demagogos brasileiros; Luiz Pereira da Silva pertence àquela estranha categoria de homens que, por mais que sofram, jamais vão se tornar mártires de coisa nenhuma; Luiz Pereira da Silva era pobre demais, desimportante demais, vulgar demais até para ser oferecido em holocausto no altar de fantasmagorias de dom Balduíno; Luiz Pereira da Silva não serve como cordeiro do Deus justiceiro do MST.
Omite-se o governo — e, portanto, estimula a violência no campo — quando permite que, ao arrepio de qualquer controle ou acompanhamento responsável, a questão fundiária se transforme em objeto de disputas de organizações não-governamentais e grupos de pressão que põem seus preconceitos e idiossincrasias acima das necessidades econômicas das comunidades nas quais atuam, elegendo, por critérios que lhes são próprios e alheios a qualquer estratégia pública, os perdedores e os vencedores, satanizando uns, incensando outros, fazendo de uns as bestas do apocalipse e, de outros, os anjos da redenção.
A propósito do caso Dorothy: pouca gente sabe ou se lembra que Adalberto Xavier Leal, funcionário de um dos então suspeitos de terem ordenado a morte da freira, também foi assassinado em represália. O barracão em que morava foi invadido por oito homens, e ele foi executado na frente da mulher e de cinco filhos. O que aconteceu com seus assassinos? Quais assassinos? O que o mundo disse a respeito?
Ele era outro morto sem pedigree, por quem Gilberto Carvalho e Maria do Rosário não emitem notas nem derramam lágrimas militantes. Luiz Pereira da Silva, Pelado e Adalberto não tiveram tempo de aprender o seguinte: vivendo ou morrendo, é preciso estar “do lado certo”. Não me peçam para ter respeito por esse tipo de exploração barata da morte.
Por Reinaldo Azevedo
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