Juiz Marlon Reis: MCCE idealizou leis da compra de votos e da Ficha Limpa
A aprovação da Ficha Limpa, quarta lei de origem popular, abre caminho para que outros projetos mudem a política e melhorem o país
Cansado de ver, impotente, tantos escândalos e injustiças no Brasil? Você pode abandonar essa postura passiva e se organizar para protestar, reivindicar e, mais que isso, colher assinaturas suficientes para propor uma lei que mude a realidade para melhor. Foi por meio desse engajamento que a sociedade, em parceria com instituições, bancou a campanha pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, que barra a candidatura de condenados em órgãos colegiados ou que renunciaram para escapar da cassação.
Esse avanço considerável nos parâmetros legais mostra a importância das leis de iniciativa popular, como a Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10), na esteira da qual, apostam especialistas, muitas outras sugestões vindas da população vão chegar ao Parlamento.
No Congresso Nacional já foram aprovadas quatro leis com procedência popular e hoje tramitam outras duas matérias na Câmara dos Deputados - uma aumenta a punição ao crime hediondo e outro trata de franquias telefônicas. Há menos de 30 anos esse cenário não existia no Brasil: foi a Constituição de 1988, segundo a qual o poder emana do povo e em nome dele será exercido, que consagrou um preceito seguido à risca no processo para aprovar a Ficha Limpa: a lei de iniciativa popular.
Mobilização
Tanto a Ficha Limpa quanto a lei que criminalizou a compra de votos nasceram da iniciativa do povo, que reagiu para mudar a regra e lutar contra a impunidade. E por trás do sucesso na aprovação dessas matérias está a articulação de entidades organizadas, como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Um dos fundadores do MCCE, o juiz Marlon Reis comemora a validação da Ficha Limpa, mesmo que apertada no placar do plenário do Supremo Tribunal Federal. A lei foi considerada constitucional e já passa a valer na eleição deste ano.
Anteriormente, o STF havia decidido que a Ficha Limpa não valeu no pleito de 2010, avocando o princípio legal de que as regras eleitorais não poderiam mudar a menos de um ano do pleito. A frustração, no entanto, durou pouco.
"A lei de iniciativa popular é um direito fundamental do povo de ir direto ao Parlamento. É um favor que se presta, senão o desgaste do Legislativo seria maior", frisa Marlon. Segundo o magistrado, só houve resistência à Ficha Limpa no Judiciário. Não houve queda de braço no Parlamento, onde "todos" estiveram abertos ao diálogo. "Os parlamentares não foram obrigados a aprovar. Fizemos pressão no Parlamento, que é lugar para isso, e não nas votações do STF, onde houve o debate constitucional", reitera.
Caixa de ressonância
Marco de mobilização política, a lei 9.840/1999, que pune com multa e perda de mandato político condenados por compra de votos, foi uma das primeiras bandeiras encampadas pelo MCCE.
As entidades engajadas na aprovação daquela lei, como a CBJP, lembra Marlon, foram as mesmas que apresentaram a emenda na Constituição de 1988 que criou o expediente da lei de iniciativa popular. Depois, em 2002, o MCCE concebeu a base da Ficha Limpa.
O novo padrão qualitativo da Ficha Limpa, crê o juiz, deve servir de exemplo para outras iniciativas da sociedade. Tanto que o MCCE comprometeu-se em apoiar, com sugestões e aprendizado próprios, a Lei Lobo, proposta do movimento de proteção aos animais. "Que o espírito de mobilização da Ficha Limpa se expanda e propicie à Câmara estabelecer novos padrões de prioridade", avalia Marlon.
Já Márcia Teixeira, professora de teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), vai além: o problema da nossa democracia não é dificuldade de propor leis. Um dos males é o excesso de legislação, sem que se acatem regras nem se vinculem pré-disposições. "A Ficha Limpa responde a uma espécie de clamor social pela política republicana, de princípios e valores, não aprisionada a interesses menores", diz a cientista política.
Sem cortar na carne
Regra geral, continua Márcia, o Parlamento não toma iniciativa de cortar na própria carne, como a severidade com candidaturas na Ficha Limpa. "A lei foi uma resposta a um mal-estar geral, e isso é extremamente interessante no ambiente político. Se fosse aguardar a vontade do Congresso, não ocorreria, ainda mais com a dispersão social, este refluxo da participação na vida pública".
Os mecanismos tecnológicos, as redes sociais, frisa a professora, ajudaram nisso. A pressão pela Ficha Limpa é um fato instigante que pode, sim, estimular uma cidadania mais atenta às questões de ordem política, conclui: "A mobilização veio em boa hora, derrubando a anestesia do ‘não podemos fazer nada’".
Retroagindo na recente História do país, se a lei de iniciativa popular tivesse valendo em 1984, muito provavelmente o Congresso teria aprovado a emenda Dante de Oliveira, que instituía a volta das eleições diretas para presidente da República. A ditadura militar estava moribunda e o movimento "Diretas Já" tomou conta das capitais brasileiras com manifestações abertas.
Esse sentimento de restituição da força popular reflete-se em Carlos Moura, membro da secretaria executiva da Comissão Brasileira Justiça e Paz. Para ele, o reconhecimento do STF de todos os artigos da lei 135/2010 é altamente significativo para o processo democrático do país. "Na manifestação popular da Ficha Limpa esteve claro que a sociedade ansiava pela lei, para deixar de fora dos cargos eletivos os que malversam recursos públicos e cometem outras infrações".
Para Moura, na lei da compra de votos, de 1999, a sociedade fez uma pequena reforma política que será resgatada pela democracia participativa com a repercussão da Ficha Limpa. "Vamos preparar outras propostas, agora de uma reforma ampla nos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo", antecipa. A lição de todas essas lutas? É de que uma andorinha só não faz verão, diz Moura: "A sociedade precisa se organizar, e, quando faz valer seus direitos de cidadania, o Estado se move para atender às reivindicações".
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Como propor uma lei
O cidadão pode se organizar na sua comunidade para sugerir uma lei. Segundo a Constituição, um projeto de iniciativa popular precisa da assinatura de pelo menos 1% dos eleitores brasileiros - cerca de 1,4 milhão de assinaturas - divididos entre cinco Estados, com não menos de 0,3% do eleitorado de cada Estado.
Entidades podem patrocinar a apresentação de projetos de lei, desde que se responsabilizem pela coleta de assinaturas. O projeto deve ter informações da Justiça Eleitoral de dados de eleitores por Estado e deve ser protocolado na Secretária-geral da Mesa da Câmara. Verificado, ganhará um número e passará a ter a mesma tramitação dos demais.
Hoje, como a sistemática da checagem de assinaturas atrasa o andamento, parlamentares apadrinham as proposições. Ainda não votado, o relatório da comissão especial de reforma política da Câmara, do deputado Henrique Fontana (PT-RS), simplifica o processo por meio de assinatura digital. A apresentação da lei de origem popular dependerá de 500 mil assinaturas, que poderão ser recolhidas digitalmente. O relator instituiu regime de tramitação prioritária do projeto, caso tenha o dobro de assinaturas.
Análise
"Exemplo vivo de democracia"
Ophir Cavalcante, presidente da OAB Nacional
A lei da Ficha Limpa é exemplo vivo de democracia participativa. A população sente necessidade de mudança e, ante à inércia do Legislativo, impulsiona o processo. Não se trata de tirar legitimidade do Legislativo, mas de exercitar o direito constitucional de cidadania. E hoje um novo tema surge: o Executivo limitou gastos com a Saúde pública. A OAB, com outras entidades, busca o mínimo de 1,5 milhão de assinaturas para enviar ao Congresso projeto de lei obrigando a União a comprometer 10% de suas receitas com o Sistema Único de Saúde (SUS). Se esperarmos pelo Congresso, a Saúde pública, péssima, vai se tornar um caos. Quanto à lei da compra de votos, foi deflagrado um grande movimento pela ética na política, que inspira hoje o combate sistemático à corrupção. A OAB, ao lado da CNBB, sensibilizou a opinião pública, mostrando os descalabros dos currais eleitorais no país. Não é fácil, mas não é impossível conseguir assinaturas. O caminho passa pelas organizações, sobretudo nacionais, cuja capacidade de mobilização atende aos requisitos. Mas a proposta precisa ter embasamento legal. Não só denúncias de corrupção estimulam a participação cidadã, mas a fermentam. A sociedade não entende como tanto dinheiro escoa pelo ralo da corrupção, enquanto serviços básicos são sucateados.
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