quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

AS LEIS QUE VÊM DO POVO

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Juiz Marlon Reis: MCCE idealizou leis da compra de votos e da Ficha Limpa

A aprovação da Ficha Limpa, quarta lei de origem popular, abre caminho para que outros projetos mudem a política e melhorem o país


Cansado de ver, impotente, tantos escândalos e injustiças no Brasil? Você pode abandonar essa postura passiva e se organizar para protestar, reivindicar e, mais que isso, colher assinaturas suficientes para propor uma lei que mude a realidade para melhor. Foi por meio desse engajamento que a sociedade, em parceria com instituições, bancou a campanha pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, que barra a candidatura de condenados em órgãos colegiados ou que renunciaram para escapar da cassação.

Esse avanço considerável nos parâmetros legais mostra a importância das leis de iniciativa popular, como a Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10), na esteira da qual, apostam especialistas, muitas outras sugestões vindas da população vão chegar ao Parlamento.

No Congresso Nacional já foram aprovadas quatro leis com procedência popular e hoje tramitam outras duas matérias na Câmara dos Deputados - uma aumenta a punição ao crime hediondo e outro trata de franquias telefônicas. Há menos de 30 anos esse cenário não existia no Brasil: foi a Constituição de 1988, segundo a qual o poder emana do povo e em nome dele será exercido, que consagrou um preceito seguido à risca no processo para aprovar a Ficha Limpa: a lei de iniciativa popular.

Mobilização
Tanto a Ficha Limpa quanto a lei que criminalizou a compra de votos nasceram da iniciativa do povo, que reagiu para mudar a regra e lutar contra a impunidade. E por trás do sucesso na aprovação dessas matérias está a articulação de entidades organizadas, como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Um dos fundadores do MCCE, o juiz Marlon Reis comemora a validação da Ficha Limpa, mesmo que apertada no placar do plenário do Supremo Tribunal Federal. A lei foi considerada constitucional e já passa a valer na eleição deste ano.

Anteriormente, o STF havia decidido que a Ficha Limpa não valeu no pleito de 2010, avocando o princípio legal de que as regras eleitorais não poderiam mudar a menos de um ano do pleito. A frustração, no entanto, durou pouco.

"A lei de iniciativa popular é um direito fundamental do povo de ir direto ao Parlamento. É um favor que se presta, senão o desgaste do Legislativo seria maior", frisa Marlon. Segundo o magistrado, só houve resistência à Ficha Limpa no Judiciário. Não houve queda de braço no Parlamento, onde "todos" estiveram abertos ao diálogo. "Os parlamentares não foram obrigados a aprovar. Fizemos pressão no Parlamento, que é lugar para isso, e não nas votações do STF, onde houve o debate constitucional", reitera.

Caixa de ressonância

Marco de mobilização política, a lei 9.840/1999, que pune com multa e perda de mandato político condenados por compra de votos, foi uma das primeiras bandeiras encampadas pelo MCCE.

As entidades engajadas na aprovação daquela lei, como a CBJP, lembra Marlon, foram as mesmas que apresentaram a emenda na Constituição de 1988 que criou o expediente da lei de iniciativa popular. Depois, em 2002, o MCCE concebeu a base da Ficha Limpa.

O novo padrão qualitativo da Ficha Limpa, crê o juiz, deve servir de exemplo para outras iniciativas da sociedade. Tanto que o MCCE comprometeu-se em apoiar, com sugestões e aprendizado próprios, a Lei Lobo, proposta do movimento de proteção aos animais. "Que o espírito de mobilização da Ficha Limpa se expanda e propicie à Câmara estabelecer novos padrões de prioridade", avalia Marlon.

Já Márcia Teixeira, professora de teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), vai além: o problema da nossa democracia não é dificuldade de propor leis. Um dos males é o excesso de legislação, sem que se acatem regras nem se vinculem pré-disposições. "A Ficha Limpa responde a uma espécie de clamor social pela política republicana, de princípios e valores, não aprisionada a interesses menores", diz a cientista política.

Sem cortar na carne
Regra geral, continua Márcia, o Parlamento não toma iniciativa de cortar na própria carne, como a severidade com candidaturas na Ficha Limpa. "A lei foi uma resposta a um mal-estar geral, e isso é extremamente interessante no ambiente político. Se fosse aguardar a vontade do Congresso, não ocorreria, ainda mais com a dispersão social, este refluxo da participação na vida pública".

Os mecanismos tecnológicos, as redes sociais, frisa a professora, ajudaram nisso. A pressão pela Ficha Limpa é um fato instigante que pode, sim, estimular uma cidadania mais atenta às questões de ordem política, conclui: "A mobilização veio em boa hora, derrubando a anestesia do ‘não podemos fazer nada’".

Retroagindo na recente História do país, se a lei de iniciativa popular tivesse valendo em 1984, muito provavelmente o Congresso teria aprovado a emenda Dante de Oliveira, que instituía a volta das eleições diretas para presidente da República. A ditadura militar estava moribunda e o movimento "Diretas Já" tomou conta das capitais brasileiras com manifestações abertas.

Esse sentimento de restituição da força popular reflete-se em Carlos Moura, membro da secretaria executiva da Comissão Brasileira Justiça e Paz. Para ele, o reconhecimento do STF de todos os artigos da lei 135/2010 é altamente significativo para o processo democrático do país. "Na manifestação popular da Ficha Limpa esteve claro que a sociedade ansiava pela lei, para deixar de fora dos cargos eletivos os que malversam recursos públicos e cometem outras infrações".

Para Moura, na lei da compra de votos, de 1999, a sociedade fez uma pequena reforma política que será resgatada pela democracia participativa com a repercussão da Ficha Limpa. "Vamos preparar outras propostas, agora de uma reforma ampla nos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo", antecipa. A lição de todas essas lutas? É de que uma andorinha só não faz verão, diz Moura: "A sociedade precisa se organizar, e, quando faz valer seus direitos de cidadania, o Estado se move para atender às reivindicações".

Clique no gráfico para ampliar:

Divulgação

Como propor uma lei
O cidadão pode se organizar na sua comunidade para sugerir uma lei. Segundo a Constituição, um projeto de iniciativa popular precisa da assinatura de pelo menos 1% dos eleitores brasileiros - cerca de 1,4 milhão de assinaturas - divididos entre cinco Estados, com não menos de 0,3% do eleitorado de cada Estado.

Entidades podem patrocinar a apresentação de projetos de lei, desde que se responsabilizem pela coleta de assinaturas. O projeto deve ter informações da Justiça Eleitoral de dados de eleitores por Estado e deve ser protocolado na Secretária-geral da Mesa da Câmara. Verificado, ganhará um número e passará a ter a mesma tramitação dos demais.

Hoje, como a sistemática da checagem de assinaturas atrasa o andamento, parlamentares apadrinham as proposições. Ainda não votado, o relatório da comissão especial de reforma política da Câmara, do deputado Henrique Fontana (PT-RS), simplifica o processo por meio de assinatura digital. A apresentação da lei de origem popular dependerá de 500 mil assinaturas, que poderão ser recolhidas digitalmente. O relator instituiu regime de tramitação prioritária do projeto, caso tenha o dobro de assinaturas.

Análise
"Exemplo vivo de democracia"
Ophir Cavalcante, presidente da OAB Nacional
A lei da Ficha Limpa é exemplo vivo de democracia participativa. A população sente necessidade de mudança e, ante à inércia do Legislativo, impulsiona o processo. Não se trata de tirar legitimidade do Legislativo, mas de exercitar o direito constitucional de cidadania. E hoje um novo tema surge: o Executivo limitou gastos com a Saúde pública. A OAB, com outras entidades, busca o mínimo de 1,5 milhão de assinaturas para enviar ao Congresso projeto de lei obrigando a União a comprometer 10% de suas receitas com o Sistema Único de Saúde (SUS). Se esperarmos pelo Congresso, a Saúde pública, péssima, vai se tornar um caos. Quanto à lei da compra de votos, foi deflagrado um grande movimento pela ética na política, que inspira hoje o combate sistemático à corrupção. A OAB, ao lado da CNBB, sensibilizou a opinião pública, mostrando os descalabros dos currais eleitorais no país. Não é fácil, mas não é impossível conseguir assinaturas. O caminho passa pelas organizações, sobretudo nacionais, cuja capacidade de mobilização atende aos requisitos. Mas a proposta precisa ter embasamento legal. Não só denúncias de corrupção estimulam a participação cidadã, mas a fermentam. A sociedade não entende como tanto dinheiro escoa pelo ralo da corrupção, enquanto serviços básicos são sucateados.

Falta Voltar
Iniciativa popular
Crime hediondo
Há dois projetos de lei de iniciativa popular tramitando na Câmara dos Deputados. O PL 7053/06 torna mais rigorosa a pena do condenado por crime hediondo. Projeto do deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), apoiando o Movimento "Gabriela Sou da Paz", criado após morte de adolescente por bala perdida no metrô do Rio. Aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça. Participação social

Franquias de telefone
Já o PL 2722/07,
também de iniciativa da sociedade, dispõe sobre a possibilidade de acúmulo das franquias de minutos mensais ofertados pelas operadoras de telefonia. Iniciativa da Associação Comunidade do Chonin de Cima e autoria da Comissão de Legislação Participativa da Câmara. O texto aguarda parecer na Comissão de Ciência e Tecnologia da Casa.
 
Rondinelli Tomazelli
rtomazelli@redegazeta.com.br
 

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