Brasil é o único país que produz o medicamento. Indústria farmacêutica despreza a doença porque não dá lucro
Durante sete meses, entre abril e outubro de 2011, o laboratório brasileiro deixou de fabricar o benznidazol, fórmula usada no tratamento da doença em fase crônica e aguda. Apesar de o Ministério da Saúde garantir que "não há registro de falta localizada" do remédio, até hoje o abastecimento não foi de todo regularizado. Em Posse (GO), por exemplo, o posto de saúde não tem recebido o medicamento, como revela a série de reportagens que o Correio publica nesta semana.
Portadores da doença de Chagas sofrem com a carência de medicamentos. O único disponível teve a fabricação interrompida entre abril e outubro de 2011
Posse (GO) — A enfermeira Rúbia Rodrigues da Silva coordena o posto do Programa Saúde da Família (PSF) na cidade goiana, na divisa com a Bahia. Está acostumada a atender moradores de Posse com a doença de Chagas e a tentar encaminhamentos para centros médicos especializados, em Brasília e em Goiânia. "Aqui, é difícil achar uma família que não tenha Chagas." Os pais e um irmão de Rúbia têm a doença. A família da enfermeira, a exemplo dos pacientes da unidade do PSF, não teve privilégios: ninguém consegue o medicamento indicado para casos agudos e crônicos. "O que nos dizem é que não está fabricando mais. Fico preocupada com meus pais e meu irmão."
O que "dizem" a Rúbia e o que vive sua família são o reflexo de uma falha grave do governo brasileiro e do desinteresse da indústria farmacêutica por uma doença associada exclusivamente à pobreza, nada lucrativa. Por sete meses, pelo menos, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) deixou de produzir o benznidazol, praticamente o único medicamento utilizado no tratamento de casos agudos e até mesmo crônicos da doença de Chagas. A interrupção da produção ocorreu entre abril e outubro do ano passado. Os problemas gerados pela paralisia quase passaram despercebidos, não fosse o manifesto de setores da comunidade científica e de entidades do terceiro setor, como os Médicos sem Fronteiras.
A indústria farmacêutica desistiu de mais uma doença da pobreza, e isso já faz nove anos. Desde 2003, a Roche Farmacêutica não fabrica o rochagan, nome ainda usado por quem tem Chagas para denominar o benznidazol. A licença foi transferida para um laboratório público, o Lafepe, que só produziu os primeiros lotes do medicamento cinco anos depois. Suspensa a fabricação no ano passado, o problema ganhou contornos internacionais. O Lafepe é o único no Brasil e no mundo a produzir o benznidazol. Praticamente todos os pacientes do mal de Chagas, a maioria deles na América Latina, dependem do medicamento produzido em Pernambuco.
"A situação chegou a um ponto crítico", admite o diretor-presidente do Lafepe, Luciano Vasquez Mendez. "Se a matéria-prima não chegasse, haveria colapso no abastecimento." O Correio apurou que houve, sim, desabastecimento. Municípios do interior do país, como Posse, deixaram de receber o benznidazol ao longo do ano passado. São exatamente locais com grande quantidade de doentes crônicos e com possibilidade de novos casos da fase aguda da doença. O acompanhamento, o custeio da produção e a regulação dos estoques de benznidazol são responsabilidades do Ministério da Saúde.
Apesar de o presidente do Lafepe ter admitido ao Correio que a produção do benznidazol foi paralisada por sete meses, o Ministério da Saúde diz que "não é verdade" que o medicamento deixou de ser produzido. "Não há desabastecimento e, até este momento, não há registro de falta localizada do referido medicamento", sustenta, por meio da assessoria de imprensa.
Fila de espera
Além do desabastecimento interno, países que pagaram pelo medicamento entraram numa fila de espera. É o que atestaram participantes da 27ª Reunião de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas, realizada em Uberaba (MG), em outubro do ano passado. Um documento foi elaborado para protestar contra a paralisia da produção do benznidazol e divulgado à comunidade científica brasileira e internacional.
"Iniciou-se uma ruptura de estoque mundial, que pode ser comprovada pela existência, só na América Latina, de uma lista de espera de 12 países que pagaram pelo benznidazol e que hoje aguardam sua distribuição", cita o documento. "Considerando o grave contexto mundial de aumento progressivo da demanda pelo medicamento, essa situação compromete de forma dramática o tratamento de indivíduos acometidos pela doença de Chagas."
Estimativa da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) aponta a existência de 8 milhões de doentes crônicos na América Latina e 55,1 mil casos novos a cada ano. Diante da falta do benznidazol e da distribuição exclusiva pelo Sistema Único de Saúde (SUS), muitos médicos deixam de prescrever o medicamento, que combate o protozoário causador do mal de Chagas. "Como saiu de mercado e só há distribuição por farmácias de hospitais públicos, o acesso ficou limitado", afirma a médica cardiologista Dayse Campos, que atua no ambulatório de Chagas do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia.
Em dezembro, o Ministério da Saúde se comprometeu a aumentar a produção para 3,2 milhões de comprimidos e garantir o abastecimento dentro e fora do Brasil. Desde 2008, uma parceria do Lafepe com a DNDi, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de medicamentos para doenças negligenciadas, tenta garantir a fabricação e distribuição de um comprimido pediátrico do benznidazol. Hoje, para uso infantil, o comprimido precisa ser fracionado.
O diretor-presidente do Lafepe garante que a produção foi normalizada a partir de outubro, com a mudança do fornecedor da matéria-prima. Os primeiros lotes para crianças estão prontos desde dezembro, segundo ele. Em pacientes na fase aguda, o índice de cura do benznidazol é de 60% a 80%. Na fase crônica, varia de 10% a 20%.
Fonte: Ucho.Info
Durante sete meses, entre abril e outubro de 2011, o laboratório brasileiro deixou de fabricar o benznidazol, fórmula usada no tratamento da doença em fase crônica e aguda. Apesar de o Ministério da Saúde garantir que "não há registro de falta localizada" do remédio, até hoje o abastecimento não foi de todo regularizado. Em Posse (GO), por exemplo, o posto de saúde não tem recebido o medicamento, como revela a série de reportagens que o Correio publica nesta semana.
Posse (GO) — A enfermeira Rúbia Rodrigues da Silva coordena o posto do Programa Saúde da Família (PSF) na cidade goiana, na divisa com a Bahia. Está acostumada a atender moradores de Posse com a doença de Chagas e a tentar encaminhamentos para centros médicos especializados, em Brasília e em Goiânia. "Aqui, é difícil achar uma família que não tenha Chagas." Os pais e um irmão de Rúbia têm a doença. A família da enfermeira, a exemplo dos pacientes da unidade do PSF, não teve privilégios: ninguém consegue o medicamento indicado para casos agudos e crônicos. "O que nos dizem é que não está fabricando mais. Fico preocupada com meus pais e meu irmão."
O que "dizem" a Rúbia e o que vive sua família são o reflexo de uma falha grave do governo brasileiro e do desinteresse da indústria farmacêutica por uma doença associada exclusivamente à pobreza, nada lucrativa. Por sete meses, pelo menos, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) deixou de produzir o benznidazol, praticamente o único medicamento utilizado no tratamento de casos agudos e até mesmo crônicos da doença de Chagas. A interrupção da produção ocorreu entre abril e outubro do ano passado. Os problemas gerados pela paralisia quase passaram despercebidos, não fosse o manifesto de setores da comunidade científica e de entidades do terceiro setor, como os Médicos sem Fronteiras.
A indústria farmacêutica desistiu de mais uma doença da pobreza, e isso já faz nove anos. Desde 2003, a Roche Farmacêutica não fabrica o rochagan, nome ainda usado por quem tem Chagas para denominar o benznidazol. A licença foi transferida para um laboratório público, o Lafepe, que só produziu os primeiros lotes do medicamento cinco anos depois. Suspensa a fabricação no ano passado, o problema ganhou contornos internacionais. O Lafepe é o único no Brasil e no mundo a produzir o benznidazol. Praticamente todos os pacientes do mal de Chagas, a maioria deles na América Latina, dependem do medicamento produzido em Pernambuco.
"A situação chegou a um ponto crítico", admite o diretor-presidente do Lafepe, Luciano Vasquez Mendez. "Se a matéria-prima não chegasse, haveria colapso no abastecimento." O Correio apurou que houve, sim, desabastecimento. Municípios do interior do país, como Posse, deixaram de receber o benznidazol ao longo do ano passado. São exatamente locais com grande quantidade de doentes crônicos e com possibilidade de novos casos da fase aguda da doença. O acompanhamento, o custeio da produção e a regulação dos estoques de benznidazol são responsabilidades do Ministério da Saúde.
Apesar de o presidente do Lafepe ter admitido ao Correio que a produção do benznidazol foi paralisada por sete meses, o Ministério da Saúde diz que "não é verdade" que o medicamento deixou de ser produzido. "Não há desabastecimento e, até este momento, não há registro de falta localizada do referido medicamento", sustenta, por meio da assessoria de imprensa.
Fila de espera
Além do desabastecimento interno, países que pagaram pelo medicamento entraram numa fila de espera. É o que atestaram participantes da 27ª Reunião de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas, realizada em Uberaba (MG), em outubro do ano passado. Um documento foi elaborado para protestar contra a paralisia da produção do benznidazol e divulgado à comunidade científica brasileira e internacional.
"Iniciou-se uma ruptura de estoque mundial, que pode ser comprovada pela existência, só na América Latina, de uma lista de espera de 12 países que pagaram pelo benznidazol e que hoje aguardam sua distribuição", cita o documento. "Considerando o grave contexto mundial de aumento progressivo da demanda pelo medicamento, essa situação compromete de forma dramática o tratamento de indivíduos acometidos pela doença de Chagas."
Estimativa da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) aponta a existência de 8 milhões de doentes crônicos na América Latina e 55,1 mil casos novos a cada ano. Diante da falta do benznidazol e da distribuição exclusiva pelo Sistema Único de Saúde (SUS), muitos médicos deixam de prescrever o medicamento, que combate o protozoário causador do mal de Chagas. "Como saiu de mercado e só há distribuição por farmácias de hospitais públicos, o acesso ficou limitado", afirma a médica cardiologista Dayse Campos, que atua no ambulatório de Chagas do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia.
Em dezembro, o Ministério da Saúde se comprometeu a aumentar a produção para 3,2 milhões de comprimidos e garantir o abastecimento dentro e fora do Brasil. Desde 2008, uma parceria do Lafepe com a DNDi, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de medicamentos para doenças negligenciadas, tenta garantir a fabricação e distribuição de um comprimido pediátrico do benznidazol. Hoje, para uso infantil, o comprimido precisa ser fracionado.
O diretor-presidente do Lafepe garante que a produção foi normalizada a partir de outubro, com a mudança do fornecedor da matéria-prima. Os primeiros lotes para crianças estão prontos desde dezembro, segundo ele. Em pacientes na fase aguda, o índice de cura do benznidazol é de 60% a 80%. Na fase crônica, varia de 10% a 20%.
Fonte: Ucho.Info
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