Esqueçam o que escrevi." A frase, atribuída ao então presidente Fernando Henrique Cardoso - que ele nega ter pronunciado -, serviu de mote para o bem-humorado título de seu novo livro. Editado pela Civilização Brasileira com organização de Miguel Darcy de Oliveira, Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios Globais reúne artigos e entrevistas do sociólogo, político e intelectual público que ocupou o Planalto por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002. Dividido em cinco grandes temas - liberdade e democracia, esquerda e política, sociedade e Estado, desenvolvimento e globalização, esperança e futuro -, o livro mapeia reflexões e questionamentos ao longo de três décadas, precisamente de 1972 a 2006. Segundo o próprio Fernando Henrique, o mundo mudou, ele mudou, mas a orientação geral de suas ideias, até que não: "Se houve aggiornamento foi mais na forma do que no conteúdo", escreve na apresentação do livro.
'Sem emoção ninguém ganha a eleição'
No mesmo dia em que sua ausência se fez sentir até por uma cadeira vazia na cerimônia de desligamento do governador paulista José Serra, no Palácio dos Bandeirantes - e quando Dilma Rousseff também deixava seu gabinete em Brasília rumo à campanha presidencial -, FHC aceitou o convite do caderno Aliás para conversar e debater, por mais de duas horas, com três renomados intelectuais: o sociólogo José de Souza Martins, o filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político Renato Lessa.
O encontro, aberto ao público, ocorreu no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, no antigo salão nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde FHC defendeu sua tese de doutorado, em 1961. A seguir, uma síntese da sabatina que enfrentou ao responder às perguntas de Martins, Janine Ribeiro e Lessa.
Burguesia de Estado
José de Souza Martins: Seu livro provoca discussão do que não tem sido discutido. Sobretudo nos textos relativos ao período da luta contra a ditadura, há destaque para a relevância dos movimentos sociais na construção da nova realidade política do País, realidade pós-ditatorial. A sociedade civil concorreu vigorosamente para o fim do regime militar. No entanto, temos nos deparado hoje com advertências em torno das ameaças representadas pelo autoritarismo popular. Boa parte desse autoritarismo se expressa justamente por meio de movimentos sociais. Como fica o ideal da democracia radical?
FHC: Quando voltei do Chile, da França, a preeminência da sociedade civil nos movimentos sociais chamava a atenção. A literatura sociológica mostrava, nos anos 60, sobretudo nos anos 70, as discussões de novas formas de poder. O conceito de sociedade civil reaparecia de uma forma diferente daquela que existia no passado. A sociedade civil era a sociedade não militar. Nela, contava muito mais a presença e a participação do que a estrutura. Tanto faz se as pessoas estivessem organizadas socialmente, hierarquicamente, classe média, classe não sei o quê, empresariado e tal. A questão era estar participando, juntos, daquilo - estar no movimento da sociedade civil, "do lado bom". Na época isso se confundiu com movimentação dos trabalhadores. Mas era tudo contra o regime. Eu, que naquela altura já havia escrito uns artigos soltos sobre o tema, disse: "Cuidado, de repente vamos ver uma relação se formar entre o líder do governo e a burocracia". Parecia não haver mais a dinâmica de poder forte, no sentido anterior, de grandes estruturas de classe, de dominação. Depois do regime autoritário, fiz um trabalho sobre os anéis burocráticos apontando que a política, nesse momento no Brasil, não passava pelas estruturas tradicionais, porque havia vínculos entre setores empresariais e setores da burocracia, constituindo esses anéis. Isso, ao contrário de uma sociedade com participação mais ativa, poderia levar a uma manipulação através dos grupos de poder. É a briga pelo poder. Foi até onde cheguei naquele momento, rico do ponto de vista intelectual, mas uma tragédia do ponto de vista político. Porque nós, intelectuais, tínhamos que reagir contra. E quando os intelectuais não têm como reagir, quando o sistema está fechado, eles vão para o monastério. O Cebrap era um monastério. Uma outra discussão que ganha pertinência nos dias de hoje é o que chamo de "burguesia de Estado". Tem que tomar cuidado: vivemos num sistema democrático, as empresas estatais estão crescendo, mas o que se presencia é a formação de uma burguesia de Estado. Olha a contradição dos termos... Mais tarde, (o sociólogo) Chico de Oliveira veio com uma crítica ainda mais radical sobre o funcionamento dos fundos sociais e fundos de pensão. Em síntese, mesmo em plena democracia, as forças reais de decisão no Brasil estão se constituindo num golpe de poder que une setores do Estado com setores empresariais e os fundos. Isso é algo que é preciso discutir.
A crítica às esquerdas
Renato Janine Ribeiro: Presidente, em seu livro, sua posição favorável à privatização não aparece. E o sr. já falava de uma esquerda arcaica, tradicional, em textos dos anos 70. Ocorre que, de lá para cá, a esquerda - que o sr. preza a ponto de dialogar com ela - mudou. Vejo uma mudança grande do PT dos anos 80 para o PT do governo, não sei se para melhor ou pior. Minha pergunta é: que mudanças ocorreram entre a esquerda dos anos 70 e a de hoje?
FHC: Excelente questão. De fato, lá atrás não estava colocada a questão da privatização. Ela só apareceu nos anos 80, no governo Sarney, e depois sob Collor e Itamar. Porque o mundo era outro, isso não se cogitava. Ao contrário, era preciso que o governo investisse em interesses do setor privado para garantir o desenvolvimento. Getúlio, quando fez Volta Redonda, tinha a ideia de que fosse uma empresa privada. Só que não houve interesse por parte do setor privado, houve até uma recusa formal. Daí o Estado entrou. Depois, isso foi mudando e veio a incapacidade do setor estatal em garantir recursos e tecnologia. Para mim, privatização não é ideal nem objetivo, é uma coisa pragmática. Também acho que transformar o monopólio público em monopólio privado não é progresso, porque o importante é haver competição. Com relação a sua pergunta sobre como vejo as esquerdas, nos anos 50, 60, o eixo fundamental que se tinha era a União Soviética. Esse era o paradigma. Havia ali uma transformação grande do pensamento original marxista para a ideia do partido que toma conta do Estado e socializa os bens de produção. Democracia não se discutia, não era tema. E passou esses anos todos sem ser discutida. Claro, houve uma crise da Europa, antes do final do regime soviético, introduzindo certa abertura para a ideia de democracia como valor, sobretudo entre os italianos. Tanto na Europa como aqui, líamos e falávamos em Gramsci, embora não fosse a linha dominante. Já no final dos anos 80 vem a queda da União Soviética e, antes mesmo disso, nos 70, a globalização já estava em marcha, com seus saltos tecnológicos, a comunicação, a internet, etc. Naquele momento, vi a formação do PT. Estava-se fazendo um partido de trabalhadores no sentido proletário, o que não se sustentava, pois a concepção de que aquela classe iria transformar a história estava desaparecendo. Por ter feito essa crítica, à época, me chamavam de "policlassista". A verdade é que o PT nasceu de três vertentes: a católica, que vinha dos movimentos sociais de base, a guerrilheira/ideológica e a dos sindicalistas. Hoje, prevalece a dos sindicalistas. A vertente católica foi se esvaecendo e a ideológica perdeu peso também. Na prática, o PT vira um partido social-democrata no governo, absorvendo as transformações do mundo. Mas por que mantenho a minha crítica? Porque permanece essa luta contra a ideia de globalização e contra o que se chama de "neoliberalismo". Hoje, o governo do PT se orgulha das multinacionais brasileiras que se globalizaram e até dá dinheiro para isso. Só que, na teoria, a coisa é diferente: os documentos do partido mantêm até hoje a mesma visão antiga. O fato é que o Brasil ganhou com a globalização. Virou Bric. O que precisa agora é haver uma crítica da própria elite da esquerda, uma crítica teórica, porque, na prática, essa esquerda no poder já está fazendo até demais (risos). Há também essa defesa da "democracia plebiscitária" do Chávez, essa ideia de que se você tiver o consenso da massa tudo se justifica. É risco para a democracia.
Visões da democracia
Renato Lessa: Vejo no livro uma contribuição importante para o debate sobre a teoria democrática. Traz expressões que caíram em desuso e acabaram voltando a nossa reflexão, como ‘democratização fundamental’ e ‘democracia substantiva’ - a ideia de que é possível pensar a democracia além da obrigatória adesão às dimensões formais. O sr. teria trocado uma perspectiva mais sociológica do fenômeno democrático por uma mais institucionalista? Penso que seria fundamental se nós ‘ressociologizássemos’ nossa percepção da política, para que ela não ficasse restrita ao jogo formal das instituições.
FHC: Como levar daqui para frente a democracia - essa é uma reflexão fundamental. Fiz recentemente uma conferência sobre Joaquim Nabuco, na Academia Brasileira de Letras, e me ocorreu levantar questões sobre a República, a organização política, as instituições e o processo social. Nós sempre tendemos a dissociar liberalismo e democracia em qualquer discussão. Por razão histórica há uma reação muito grande ao liberalismo no Brasil, tanto que quando alguém quer me xingar, me chama de neoliberal (risos), o que é um absurdo. Porque tomam o liberalismo como laissez-faire, simplesmente liberdade de mercado. Ora, não é isso. Hoje ninguém aqui é contra o capitalismo e sim contra o liberalismo. Mas não se pode recusar o liberalismo político, até porque a democracia substantiva não foi criada para isso. Não foi para dizer "democracia formal não vale, a representação não tem mais sentido". Não era uma volta a Rousseau. Há uma questão central: conseguiremos ou não certa convergência entre o pensamento democrático tradicional e as formas de participação direta no processo decisório? O equilíbrio é difícil. Em sociedades de massa como a nossa, e Nabuco e Tocqueville já tinham percebido isso lá nos Estados Unidos, há [PODE HAVER]o risco da demagogia. Nabuco temia que nos EUA, dada a forma republicana presidencialista, houvesse uma delegação total ao tutor, o presidente da república: "Parece que os americanos ficam felizes porque elegem o próprio tutor", disse, ironicamente. Hoje, em lugar de procurarmos combinar representação clássica com participação, corremos o risco de substituir tudo isso pela figura do tutor. É um perigo. Daniel Bell (professor de filosofia na Universidade Tsinghua, de Pequim) escreveu um artigo dizendo que os chineses têm uma ideia diferente dos ocidentais: com a generalização do voto e o desejo da massa de contar com uma figura simbólica, eles têm medo de não eleger os mais capazes e sim os de maior poder de comunicação. Por isso tendem a preservar os mecanismos meritocráticos do Partido Comunista. No Ocidente, onde se conseguiu fazer parlamentarismo houve maior possibilidade de equilíbrio institucional. Onde há presidencialismo, há risco maior de cesarismo. Vamos ter que pensar: na democracia, como compatibilizar o respeito às ideias de delegação com as de participação? Temos que voltar a discutir também o que é liberalismo político, não econômico. Ser contra o liberalismo político é estar a um passo de cair no lado autoritário.
Além do possível
Martins: Forte e insistente no livro é o tema do possível. Há uma frase dizendo que ‘o intelectual tem de estar na fronteira do possível’. Eu já fui malhado, falando nesse possível, por pessoas ligadas aos movimentos populares e da Igreja. ‘Não, nós temos que ir além do possível’, diziam. Mas esse possível não tem a ver necessariamente com o viável, é mais do que o viável. O possível ainda está no horizonte do governante? E na atual realidade brasileira? Segundo sua interpretação, por lidar com o possível, o intelectual é incômodo. Mas acho que os intelectuais deixaram de ser incômodos. Seria um retrocesso?
FHC: Sempre dizem que a política é a arte do possível. Não. Política é a arte de tornar possível o necessário, o desejável. Se não você não muda, é conservadorismo puro. Você tem que construir essa possibilidade. Não é qualquer coisa que é possível. Você tem que ter essa capacidade de construir os mecanismos que levem você à possibilidade de se aproximar de seu ideal. Não acredito que exista uma política forte sem alguma utopia. Recentemente, o (historiador inglês) Tony Judt deu uma entrevista dizendo: "Olha, o problema fundamental para o futuro é saber quais são nossos valores. Porque a economia vai andar sozinha". As economias são muito fortes. De vez em quando um país dá uma trombada, entra numa crise e tal, depois se recupera. É preciso voltar à questão clássica grega: qual é a boa sociedade? É uma questão de valores. O que queremos fazer na sociedade? Isso justamente implica alargar o limite do possível. Não é voluntarismo, basta querer que acontece. Quando dizem "falta vontade política" me dá um arrepio. (É como se dissessem) "a culpa é dele, está lá em cima e não faz". Como se a vontade fosse o decisivo na história. Ela não é decisiva! Tem que ter alguma vontade e ser competente para tornar possível seu ideal. Acho que estamos muito viciados no economicismo do pensamento. Pensamos tudo em termos do que é possível na economia. A gente só se preocupa com "cresceu o PIB". Eu vou repetir o que disse há poucos dias a um repórter americano do Miami Herald. Ele me perguntou: "O senhor acha que o Brasil vai ser mesmo a quinta potência do mundo?" Eu disse: "Pode ser, mas o que você chama de potência? Produto interno bruto? Então talvez seja". Mas não é essa a pergunta correta. Tem que perguntar: "O senhor acha que o Brasil vai ser uma sociedade mais decente, mais digna, mais solidária, mais coesa, melhor para o seu povo, com mais igualdade?" Aí eu tenho dúvidas. Do ponto de vista econômico o Brasil vai continuar crescendo. Haverá seus ciclos, depende um pouco do governo, mas não só dele, depende de conjuntura... Mas nós já temos nos motores da nossa economia máquinas muito poderosas. Vamos levantar voo. O resto eu tenho muita dúvida. O possível para mim é você deslocar dessa fixação meramente economicista para um pensamento de valores. Como é que vamos ter realmente uma sociedade decente? Como vamos fazer para dar uma educação que permita ao Brasil avançar mais? Há muitos anos eu digo que no dia em que o País tiver telefonista ou empregada doméstica capazes de anotar um recado, então terá se desenvolvido. Não só aprendemos a voar como a fazer avião. Mas como é difícil desembarcar no Brasil! Difícil chegar à porta do avião. Se vier do exterior, passar pela aduana é uma coisa dificílima. Não se faz a fila direito. Essas coisas contam. Como é que você vai tornar o comportamento do dia a dia compatível com o comportamento que já podemos ter? Eu disse há muitos anos que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, é um país injusto. Fui criticado. Hoje digo que, economicamente, o Brasil já teve um desenvolvimento que lhe permitiria ser um país mais justo. Mas continua sendo um país que não avançou suficientemente nos termos fundamentais de igualdade, justiça, equidade. Aqueles que vão liderar o Brasil daqui para frente terão de colocar ênfase nesse tipo de questão. Não é só fazer políticas sociais que mitiguem a desigualdade. É muito mais. Nem conseguimos ainda fazer com que todos acreditemos que somos iguais perante a lei, por exemplo. E não somos. Como é que se faz democracia onde você não tem igualdade perante a lei? Joaquim Nabuco dizia que a Inglaterra era o único país do mundo onde o duque de Westminster e seu mordomo, se fossem chamados pelo juiz, teriam o mesmo temor, e o juiz decidiria independentemente da condição social deles. Aqui não acontece isso. Não é por causa do juiz. É por causa da legislação e é por nossa causa. A sociedade brasileira aceita a desigualdade. E é indulgente com a corrupção.
Um intelectual popular
Janine Ribeiro: Seu livro é o relato de um intelectual que se tornou governante, o que é extremamente raro. Na história do País, talvez o único intelectual de seu porte que tenha chegado ao poder seja José Bonifácio - e em curto espaço de tempo, por um capricho do imperador. Mas a figura do intelectual não é propriamente popular no País. Em compensação, no Big Brother Brasil, acaba de vencer a disputa um rapaz que havia dito que 'homem que é homem não pega aids', o que levou a Justiça a intervir no programa. No dia seguinte, esse indivíduo teve 60% de votos. Como foi possível para o sr. converter o gap que há entre o intelectual e a sociedade, de modo a transformar a possível impopularidade em liderança?
FHC: O título de um livro que escrevi e só saiu em inglês é The Accidental President of Brazil. Porque foi um acidente, de certa maneira. Uma pessoa com a minha biografia e carreira não tinha como ter voto e ser presidente da República. Ganhei do Lula duas vezes no primeiro turno, o que não é fácil, já não era. Claro que no meu caso teve uma coisa específica: o Real. Se não fosse o Plano Real eu não teria sido presidente. Podia continuar ministro, senador. Talvez nem isso. Percebi que iria ser eleito em Santa Maria da Vitória, na Bahia, no dia 11 ou 12 de junho. Cheguei por lá num avião monomotor vagabundo e pousamos na pista de terra. Estávamos atrasados e o Antônio Carlos (Magalhães), que era o dono da Bahia na época, nos esperava irritado. Quando chegamos na praça, a população tinha notas de Real na mão e gritava, feliz da vida: "Vale mais que o dólar! Vale mais que o dólar!" Vi que seria eleito. E o que fiz? Falei. Muitos se esquecem, mas eu falava todo dia. Quando houve a decisão final do plano, em fevereiro, passei horas na televisão explicando o que era e o que iria acontecer com a vida das pessoas. Então, não cheguei à Presidência porque sou intelectual, mas porque fui ministro, fiz o Real e não sou, nem nunca fui, complicado para falar. Eu me lembro que quando entrei na política, vários amigos diziam: "Ah, não vai ter voto. É intelectual". Não vou entrar em detalhes, mas figuras importantes afirmavam que eu sabia falar melhor o francês do que o português... Falo francês mal e porcamente! Diziam: "Nunca viu um pobre, só nas ruas de Paris". Isso foi dito por um grande milionário de São Paulo. Esqueceram que eu me formei aqui e, aos 29 anos, defendi tese sobre negros. Pesquisei nas favelas e cortiços do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Nunca tive dificuldade em falar com o povo. E, em política, o desempenho é fundamental. Quando numa eleição os candidatos não são bons de conversa, vêm os marqueteiros e projetam imagens. Mas em alguma hora aparece a pessoa. E se ela não é capaz de falar de modo que os outros entendam, não tem caminho na política. Pode ser eleito primeiro-ministro num regime parlamentarista, mas não chefe de Estado num presidencialismo de massas. Isso não ocorre só no Brasil. Eu estava em Brown, nos Estados Unidos, no ano anterior às primárias da última corrida presidencial, e telefonei para o Bill Clinton. Na conversa, disse: "Aqui me parece que a Hillary está bem". Ele respondeu: "Não só aí, no país inteiro". Isso foi em outubro. Quando voltei para dar aula em fevereiro, todo o mundo era Obama. A Hillary teve a máquina do Partido Democrata, era conhecida, competente, mulher, mas Obama desempenhou melhor. Obama pode não ser grande intelectual, mas tem formação sólida. Mais sólida, talvez, do que a Hillary. E desempenhou melhor.
Olhares fragmentados
Lessa: Quero falar ainda do intelectual público. Tenho a impressão de que vivemos um tempo de profunda desativação de hábitos do pensamento. Conversando com um jovem colega sobre política, fiquei perplexo ao ver com que convicção defendia o 'bicameralismo com voto distrital misto'. Na minha época éramos de esquerda, de direita ou de centro, brigávamos por isso, e hoje esse sujeito está disposto a bater nas pessoas pelo bicameralismo. Seu livro convida a um debate mais universalizado, a se pensar a política como atividade humana. Como evitar a fragmentação e reagir à perda do hábito do pensamento?
FHC: Um bom exemplo disso é a universidade. Aqui nesta sala, quando eu era representante dos alunos e depois dos doutores, se discutiam coisas de interesse da cidade e do País. Havia uma ligação direta entre estar na universidade e estar dialogando com o governo, com o poder e a sociedade. Depois, a universidade foi ficando mais ensimesmada e a vida, mais fragmentada. A qualidade do ensino não foi perdida, ao contrário, melhorou, houve mais especialização. Só que perde-se a ideia de intelectual público, de alguém que se apresenta perante a sociedade e a nação para debater ideias. Isso foi encolhendo, desaparecendo. E sobra a briga interna, que é isso mesmo: sou favorável ao bicameralismo ou não (risos). Acho que a grande força da universidade americana é exatamente o oposto disso. Ela é tão forte e se sente tão segura que não tem medo de chegar perto nem das empresas, nem do governo. No Brasil evita-se o governo por medo da cooptação. E as empresas, por medo da privatização. Às vezes recebo estudantes lá no instituto e um deles me provocou: "O que o sr. acha da privatização das universidades públicas?" Ora, alguém compra uma universidade pública? É inviável, isso é uma bobagem. A universidade tem que ser pública e vai continuar assim. Mas é preciso perder o temor do mercado. E considerar que o Estado também gera pensamento - o Ipea gera pensamento, a Petrobrás gera pensamento técnico, mas há outros setores do Estado que avançaram muito sem qualquer conexão com a universidade. Mas voltando ao intelectual público, hoje ele certamente precisa da mídia para exercer um papel e ter relevância. É uma maneira de sair do casulo e manter uma relação com a sociedade. Problema: a mídia escolhe seus interlocutores. É preciso aumentar essas escolhas, abrindo espaço para um número maior de intelectuais, para incrementar o debate público. A função do intelectual não é só resolver, mas provocar, criar caso. Por que eu brigo tanto com a esquerda? Porque eu a levo a sério - e provoco. Temos que ampliar os nossos canais de fala. Não adianta querer penetrar por dentro dos partidos, porque eles são surdos a esse tipo de debate. E nem pensar que de uma campanha eleitoral vá surgir a luz.
Candomblé com Descartes
Martins: Hoje os dois principais candidatos à Presidência da República se desincompatibilizaram. Estão abertamente na campanha. A minha tendência é ver em José Serra a personificação do Iluminismo e a reafirmação dos valores da Renascença. E vejo em Dilma Rousseff a personificação das tensões do Romantismo. Nessa eleição vamos nos defrontar com a dicotomia esquerda-direita por meio dessa modalidade de polarização?
FHC: Dá para ver que foi meu aluno e hoje me encosta na parede... (risos). Eu fiquei muito impactado com o que aconteceu na União Soviética. E muito com Gorbachev, especialmente. Porque, sendo chefe do Partido Comunista da URSS, ele recolocou a questão da humanidade. Quando disse que não dava para continuar daquele jeito, que a bomba atômica levaria à morte dos dois lados, disse coisas além da classe e do Estado. Humanidade era a grande discussão filosófica do Hegel. E lá vinha Marx criticando, dizendo que só poderia ver o universal concreto, só o proletariado, sem falar de humanidade. Gorbachev disse "cuidado, já avançamos tanto no campo tecnológico e na guerra que não dá para falar só dos extremos, nem só de classe e Estado-nação". Essa é a grande confusão que está aí até hoje. Tem classe, tem Estado-nação e tem a globalização que nos leva a um pensamento mais universal. Estamos podendo ver o homem de uma maneira mais ampla sob todas suas dimensões. De fato, somos herdeiros do Renascimento, do Iluminismo. Até Marx dizia isso. No entanto, com o pós-modernismo tudo ficou mais complicado. A fragmentação dificultou muito. Daí esse retorno do Romantismo, uma espécie de angústia de não saber como se juntam as peças. Pelo menos o Serra acha que sabe juntar as peças. E a Dilma poderá perder-se porque vem de uma tradição na qual não se misturam as peças, terá que aprender. De fato, a Dilma pode ter uma visão menos racional e mais romântica sobre as coisas. E o Serra vai numa tradição mais racional. No fundo é isso: quem vai valorizar mais o elemento da razão ou da emoção no futuro. Digo valorizar mais porque não há vida ou política sem emoção. Espero que o Serra entenda um pouco mais de candomblé. E a Dilma leia um pouco mais de Descartes.
Bazófias de ACM
Janine Ribeiro: Não posso esquecer que, conforme suas palavras, o sr. foi um presidente acidental, um presidente improvável. Então, agora, penso nos termos de Maquiavel: fortuna e virtù. Se fôssemos utilizar esses termos, diríamos que o sr. foi levado à Presidência pela fortuna. Foi ministro da Fazenda, fez o Plano Real e, portanto, se elegeu. Agora, conquistar o poder pelas armas alheias, como diz Maquiavel, coloca um problema sério, que é o de a pessoa conseguir depois enfeixar o poder nas mãos. Lembro Maria Conceição Tavares, num debate na televisão, em que dizia do senhor: ‘Ele acha que vai conseguir dominar Antônio Carlos Magalhães?’ No entanto, antes do final do seu primeiro mandato as cartas tinham mudado por completo, o sr. havia controlado as circunstâncias. Como foi essa passagem de uma situação de fortuna para uma de virtù?
FHC: Ninguém se mantém no poder sem virtù, sem capacidade política. Claro que estamos falando na democracia. No sistema fechado é diferente. Que eu saiba, o grande líder brasileiro, Getúlio Vargas, não era de falar. Ele apenas lia o discurso: "Boa noite, trabalhadores do Brasil". A democracia requer mais do que isso. Requer um convencimento quase diário. É o que o Lula faz. O líder tem que estar o tempo todo tratando de exercer sua liderança, porque ter obtido voto não garante a legitimidade de sua ação depois. Garante legitimidade formal, mas não apoio. No dia seguinte você não tem mais voto nenhum. Você tem que ganhar de novo. No caso do Real, eu tive virtù antes, senão nem chagaríamos ao plano. O Antônio Carlos nunca teve assento em nenhuma decisão do meu governo. Friso: nenhuma. Ele tinha poder na Câmara e no Senado. E isso fascina, dá a impressão que vai comandar tudo. Não era assim. Nunca imaginou que eu fosse mexer com ele. Antônio Carlos foi para Miami e disse na televisão umas bobagens de que não gostei. Pois eu mesmo escrevi as cartas de demissão dos dois ministros ligados a ele. Tem que ter coragem. Ninguém governa sem ela. Mas essa coragem não deve ser bazófia. Tem que ser coragem moral. E outra coisa; as decisões mais importantes são solitárias. Se eu fosse perguntar aos meus amigos e partidários se deveria demitir ou não os ministros ligados ao Antônio Carlos eles iam dizer que não, porque aquilo criaria uma crise no Senado. Então você tem que ir lá dentro de você, sozinho, tomar a decisão e atuar. Líder precisa ter a capacidade de se isolar e de ouvir o outro. Muitos perguntavam como é que eu recebia certos políticos, mas tem que receber. Mesmo os que são abandidados, até para compreender o jogo deles. Eu sempre procurei manter o olhar do sociólogo, dar espaço. Então o sujeito saía de lá feliz: "Conquistei o presidente". Conquistou coisa nenhuma. Você deu elementos para o presidente, depois, no isolamento, julgar o que dá para fazer e o que não dá para fazer. Esse exercício é permanente. Maquiavel tem absoluta razão. Tem que ter sorte, mas não basta. Tem que ter virtù. E a virtù não é um dom, você a desenvolve. Veja o Lula e eu em 1970. Você acha que nós já éramos o que somos hoje? Não. Fomos desenvolvendo certas habilidades. O mais difícil é lidar com os que estão próximos. Como é que você controla os seus? Questão que vai se colocar se a Dilma se eleger. O Lula a controla. Ele é maior, e sabe como controlar. A pressão maior que o presidente sofre é dos que estão com ele, não é dos que são contra. Dos que são contra ele lê no jornal.
Utopias regressivas
Lessa: Os movimentos sociais aparecem nos seus textos em chave dupla: uma delas é o reconhecimento de que eles limitam os autoritarismos. Outra, de que são a expressão de identidades parciais e fragmentadas. Para além de um debate sobre dois gerentes na campanha presidencial, acho que há outro tema, da maior gravidade, subjacente à democratização brasileira: a reestruturação do espaço público. Temos um Poder Executivo forte, um problema de representação no Legislativo e o hiperativismo do Judiciário. Ocorre que todos se ajustaram à situação. Sabem procurar o juiz, mas não conhecem o caminho dos partidos e da representação. Como resolver isso?
FHC: Para te dizer em termos não abstratos, mas práticos: o que fazer com o MST, por exemplo? Houve momentos, em 1997, que dava a impressão de que ou se fazia a reforma agrária ou o Brasil estava perdido. Ninguém percebia, na época, a grande transformação que estava havendo no agrobusiness. Todo o foco era o MST. Em 1997 houve uma imensa mobilização em Brasília. E repleta de palavras de ordem inacreditáveis, como se estivéssemos próximos de fazer a Revolução Soviética. Como criar um espaço público que permitisse um diálogo democrático? Eu recebi o MST várias vezes. Algumas estão gravadas até. Estive com o João Pedro Stédile. Com o José Rainha, nem se fale: esse ia à noite ao Palácio da Alvorada. Mas era difícil a relação, pela razão de que os valores deles são inegociáveis. É uma negociação falsa: eles não vão para discutir a política pública, vão para botar o presidente, ou o ministro, contra a parede. Aqui em São Paulo, hoje, está havendo uma manifestação (de professores) para botar o governador contra a parede. Não há pauta de negociação. É só pressão. Não existe em um movimento como o MST a ideia de passar pelos canais institucionalizados, partidos, etc. Existe é pressão. E valores impossíveis, arcaicos, que chamo de "utopias regressivas". Como se fosse possível ao Brasil voltar à Idade Média. Com o tempo esses movimentos vão esquecendo a utopia, e querendo pequenas vantagens, o que é mais triste ainda. Realmente, a fragmentação é enorme. A teoria democrática no Brasil vai ter que absorver isso e discutir como incorporá-los ampliando o espaço público. Quando falo do risco de um subperonismo no Brasil é a isso que me refiro. Como não há canais públicos de integração e de aceitação - e alguns acham que sua razão é a única, o que é um fundamentalismo -, isso acaba facilitando um certo cesarismo, aquela ideia de que há alguém capaz de resolver tudo. Temos problemas com a democracia no Brasil, mas não é que vá haver outro golpe militar ou fraude nas eleições. É uma coisa mais substantiva mesmo. São problemas nossos, da sociedade, não só dos partidos.
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