Uma belíssima lua cheia clareava minha pequena cidade numa madrugada do outono de 1987, o céu é muito mais bonito no interior. Ouvi ao longe a zoada de um carro e logo imaginei que a julgar pelo adiantado das horas, alguém viria bater à minha porta.
-Boa noite Dr Marco,
-Boa noite, respondi ao jovem que acabara de estacionar uma velha Kombi em frente à minha casa,
-Minha avó está muito mal e vim para ver se o Sr poderia ir vê-la,
-Onde mora? Indaguei,
-Lá no alto da serra do bebedouro, o carro só vai até em baixo, temos que subir a cavalo, mas não se preocupe, tenho dois animais mansos nos esperando e depois trago o Sr de volta, não se preocupe,
Enquanto preparava minha maleta de primeiros-socorros, procurei me informar o que estava acontecendo, até para saber quais medicamentos levaria.
-Ela está com muita falta de ar e o pessoal está achando que não amanhece o dia.
Pensei comigo, nada animador.
Maleta preparada, aparelho de pressão, seringas, medicamentos, entrei na Kombi e um pensamento me veio à mente, seja o que Deus quiser.
No caminho fiquei sabendo que Dona Agostinha tinha 75 anos, descendente de italianos, era a matriarca de uma grande família, tinha um gênio forte e não gostava de médicos. Estrada de chão, após uns 30 minutos de solavancos chegamos ao fim da estrada, pude então avistar os dois animais selados nos esperando, vigiados por um menino que ficou ali tomando conta da nossa condução.
-Dr, vá na mula que é mansinha, já andou alguma vez a cavalo?
-Claro que sim, vamos logo, pelo que você me relatou não podemos perder tempo, disse me acomodando na sela do animal.
Assim o fizemos e vinte minutos depois, após passarmos no meio de uma pequena mata, chegamos a um descampado e pude ver ao longe uma casa deixando passar pelas janelas pequena quantidade de luz que imaginei ser de lampiões.
Ao nos aproximar, cachorrada latindo, quebrando o silêncio da madrugada, o luar me permitiu observar melhor a casa, tratava-se de uma construção típica de nosso interior, esteios, barrotes e escada de madeira dava para uma pequena varanda, uma fumaça branca saía do chaminé denunciando que o fogão a lenha estava aceso.
Dez a quinze pessoas estavam conversando do lado de fora, “fazendo o termo” como se diz por aqui, ou seja, esperando a morte da velha matriarca. Depois dos cumprimentos de praxe, apressei-me em entrar e fui direto ao quarto. Tenho esta cena na memória como se fosse o ocorrido, ontem, Recostada numa velha cama de madeira, cercada de mulheres que a abanavam, estava a Dona Agostinha, pequena, magra, cabelos brancos como neve, me olhou com um pedido de socorro impossível de esquecer. Faltava-lhe o ar, o peito arfava, a pele acinzentada denotava sofrimento, um fio de secreção lhe escapava pelo canto da boca.
Numa pequena inspeção notei as pernas inchadas e o abdômen ligeiramente volumoso, as veias do pescoço pareciam querer explodir. Percebi de imediato que a minha paciente estava à beira de um edema agudo de pulmão.
Afastei as mulheres, mandei abrir todas as janelas e portas, sentei a paciente, mandei dobrar bem as pernas na tentativa de diminuir o volume circulante, constatei que a pressão arterial estava 220x130, uma ausculta confirmou minhas suspeitas, o coração acelerado, batia de forma irregular e o pulmão encharcado confirmava minhas suspeitas, o caso era grave.
Puncionei sem dificuldades uma veia, apliquei o que tinha disponível, três ampolas de lasix, cedilanide, aminofilina diluída em água destilada lentamente, observando o ritmo do coração e pedindo a Deus para que uma arritmia mais grave não ocorresse. Após uns quinze minutos começou a respirar um pouco melhor, a pressão arterial tinha começado a diminuir, o pulmão já expandia melhor, fiquei esperançoso.
Durante duas horas estive com ela, mais duas ampolas de lasix e uma de cedilanide foram necessários e finalmente com a pressão em 160x100, ainda um pouco cansada, cor mais rosada demonstrando boa oxigenação, chamei a filha mais velha pedi que reunisse a família que eu iria conversar com todos.
Juntaram-se na sala, alegres, e lhes falei,
-Apesar de Dona Agostinha apresentar uma melhora, o caso é grave, ela tem uma insuficiência cardíaca descompensada e com a crise hipertensiva desenvolveu um edema agudo de pulmão, seguramente se chegássemos um pouco mais tarde ela teria falecido, esteve realmente muito perto da morte. Tudo que podia fazer aqui já foi feito, portanto vou deixar uma receita, se ela permanecer bem volto amanhã para vê-la, mas se voltar a piorar, mesmo contra sua vontade, levem-na para a Santa Casa de Cachoeiro.
Abraços agradecidos, café quente com broa de milho, me despedi. Dia clareando, brisa da manhã no rosto, feliz da vida.
Dona Agostinha foi minha paciente por mais seis anos, neste período tive que voltar algumas vezes, faleceu de edema agudo de pulmão num dia que ao chegar encontrei-a morta, nunca quis ir ao hospital, como me disse por diversas vezes, queria morrer eu sua cama cercada dos filhos, netos e bisnetos. Tornei-me amigo e medico de toda família, sempre que vejo quadro semelhante, sua imagem me vem à lembrança.
-Boa noite Dr Marco,
-Boa noite, respondi ao jovem que acabara de estacionar uma velha Kombi em frente à minha casa,
-Minha avó está muito mal e vim para ver se o Sr poderia ir vê-la,
-Onde mora? Indaguei,
-Lá no alto da serra do bebedouro, o carro só vai até em baixo, temos que subir a cavalo, mas não se preocupe, tenho dois animais mansos nos esperando e depois trago o Sr de volta, não se preocupe,
Enquanto preparava minha maleta de primeiros-socorros, procurei me informar o que estava acontecendo, até para saber quais medicamentos levaria.
-Ela está com muita falta de ar e o pessoal está achando que não amanhece o dia.
Pensei comigo, nada animador.
Maleta preparada, aparelho de pressão, seringas, medicamentos, entrei na Kombi e um pensamento me veio à mente, seja o que Deus quiser.
No caminho fiquei sabendo que Dona Agostinha tinha 75 anos, descendente de italianos, era a matriarca de uma grande família, tinha um gênio forte e não gostava de médicos. Estrada de chão, após uns 30 minutos de solavancos chegamos ao fim da estrada, pude então avistar os dois animais selados nos esperando, vigiados por um menino que ficou ali tomando conta da nossa condução.
-Dr, vá na mula que é mansinha, já andou alguma vez a cavalo?
-Claro que sim, vamos logo, pelo que você me relatou não podemos perder tempo, disse me acomodando na sela do animal.
Assim o fizemos e vinte minutos depois, após passarmos no meio de uma pequena mata, chegamos a um descampado e pude ver ao longe uma casa deixando passar pelas janelas pequena quantidade de luz que imaginei ser de lampiões.
Ao nos aproximar, cachorrada latindo, quebrando o silêncio da madrugada, o luar me permitiu observar melhor a casa, tratava-se de uma construção típica de nosso interior, esteios, barrotes e escada de madeira dava para uma pequena varanda, uma fumaça branca saía do chaminé denunciando que o fogão a lenha estava aceso.
Dez a quinze pessoas estavam conversando do lado de fora, “fazendo o termo” como se diz por aqui, ou seja, esperando a morte da velha matriarca. Depois dos cumprimentos de praxe, apressei-me em entrar e fui direto ao quarto. Tenho esta cena na memória como se fosse o ocorrido, ontem, Recostada numa velha cama de madeira, cercada de mulheres que a abanavam, estava a Dona Agostinha, pequena, magra, cabelos brancos como neve, me olhou com um pedido de socorro impossível de esquecer. Faltava-lhe o ar, o peito arfava, a pele acinzentada denotava sofrimento, um fio de secreção lhe escapava pelo canto da boca.
Numa pequena inspeção notei as pernas inchadas e o abdômen ligeiramente volumoso, as veias do pescoço pareciam querer explodir. Percebi de imediato que a minha paciente estava à beira de um edema agudo de pulmão.
Afastei as mulheres, mandei abrir todas as janelas e portas, sentei a paciente, mandei dobrar bem as pernas na tentativa de diminuir o volume circulante, constatei que a pressão arterial estava 220x130, uma ausculta confirmou minhas suspeitas, o coração acelerado, batia de forma irregular e o pulmão encharcado confirmava minhas suspeitas, o caso era grave.
Puncionei sem dificuldades uma veia, apliquei o que tinha disponível, três ampolas de lasix, cedilanide, aminofilina diluída em água destilada lentamente, observando o ritmo do coração e pedindo a Deus para que uma arritmia mais grave não ocorresse. Após uns quinze minutos começou a respirar um pouco melhor, a pressão arterial tinha começado a diminuir, o pulmão já expandia melhor, fiquei esperançoso.
Durante duas horas estive com ela, mais duas ampolas de lasix e uma de cedilanide foram necessários e finalmente com a pressão em 160x100, ainda um pouco cansada, cor mais rosada demonstrando boa oxigenação, chamei a filha mais velha pedi que reunisse a família que eu iria conversar com todos.
Juntaram-se na sala, alegres, e lhes falei,
-Apesar de Dona Agostinha apresentar uma melhora, o caso é grave, ela tem uma insuficiência cardíaca descompensada e com a crise hipertensiva desenvolveu um edema agudo de pulmão, seguramente se chegássemos um pouco mais tarde ela teria falecido, esteve realmente muito perto da morte. Tudo que podia fazer aqui já foi feito, portanto vou deixar uma receita, se ela permanecer bem volto amanhã para vê-la, mas se voltar a piorar, mesmo contra sua vontade, levem-na para a Santa Casa de Cachoeiro.
Abraços agradecidos, café quente com broa de milho, me despedi. Dia clareando, brisa da manhã no rosto, feliz da vida.
Dona Agostinha foi minha paciente por mais seis anos, neste período tive que voltar algumas vezes, faleceu de edema agudo de pulmão num dia que ao chegar encontrei-a morta, nunca quis ir ao hospital, como me disse por diversas vezes, queria morrer eu sua cama cercada dos filhos, netos e bisnetos. Tornei-me amigo e medico de toda família, sempre que vejo quadro semelhante, sua imagem me vem à lembrança.
Acredito que a melhor compensação seja este carinho retribuido, o afeto do paciente e da família que perdura para sempre.
ResponderExcluirBela história, demonstra carinho e dedicação.
Abraços
Lindo, doc... Lindo mesmo. Sem palavras. Beijos carinhoso pra ti!
ResponderExcluirAhh e obrigada por partilhar este caso!
HR
Dr. marcos
ResponderExcluirA matriarca é um belo exemplo de dedicação e amor. Muito lindo realmente!
Esse é médico de família.Fico imaginando a cena, pegando o cavalo pra chegar até a casa. Isso é AMOR, Respeito!!
Forte abraço
Odila
Linda história de vida... Tanto da matriarca como do doutor!!!! Parabéns pela dedicação... Vai remexendo a "cachola" e conte-nos muitas outras histórias de vida. Belo... Abraços.
ResponderExcluir"se. Dr. me dê licnça,pra minha história contar, eu vim tera seca e é bem triste meu penar"...
ResponderExcluirMarcos Deus quando em vez nos envia Anjos de diversas formas, vc é um deles, vc é a sensbilidade personificada.
Parabéns amigo,te adimiro sempre mais.
Caro Doutor sem palavras! E um homem privilegiado com o Dom da Humanidade!Que Deus lhe conserve por muitos anos em nosso convívio.
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