Por Oliveiros S. Ferreira
A rigor, esse artigo poderá perfeitamente ser colocado como a continuação daqueles que já escrevi, não apenas sob o título de “A crise do Estado”, mas também sob outros títulos sobre a crise nas Forças Armadas, a um tempo instrumento do Estado e seu suporte. Vamos aos fatos e às considerações.
Em 1963, uma facção daquele partido que pretendia subverter a ordem constitucional e estabelecer um regime fosse comunista, fosse “sindicalista” como alardeava Brizola, promoveu a “Revolta dos Sargentos”. À época, escrevi que a sublevação respondia a uma visão deformada do processo social e político no Brasil e do que fosse a organização militar. É que os teóricos do movimento, pretendendo agravar a crise política e intelectual (especialmente esta), diziam que os Sargentos representavam a “classe operária” e os Oficiais, “a burguesia”, os dominantes.
A pronta reação sufocou o movimento no nascedouro, à custa de algumas mortes e de um profundo abalo no meio militar. Os que viveram aquele período recordar-se-ão de que os Oficiais, nos quartéis, passaram a dormir com as pistolas debaixo dos travesseiros, e que os responsáveis pelo armamento redobraram sua vigilância e seu controle para assegurar-se ao fim do dia de que não faltava alguma arma no arsenal da unidade. Foram dias dramáticos, só superados (na aparência) em 31 de março de 1964 e por uma severa política de disciplinamento da tropa aplicada depois da edição do Ato Institucional nº 1.
Os Sargentos, durante o período dos Governos militares (1964-1979) não mais causaram problemas disciplinares da envergadura daquele. O que não significou que o mal-estar tivesse sido superado, na medida em que o motivo da revolta e sublevação era político. Apesar do que dispunha a Constituição em vigor, a de 1946, que proibia sua candidatura, os Sargentos consideravam-se cidadãos antes que militares e, portanto, com o direito de ser candidatos e eleitos. A idéia-força do Soldado-Cidadão, presente na Questão Militar de 1887 e na ação de muitos entre os que conduziram à proclamação da República, essa idéia esteve novamente presente em 1963.
Há outro fato que convém recordar, apesar de a necessidade de manter inabalável a disciplina fundada no Princípio do Chefe ter contribuído para que ele não fosse recordado em muitas das análises feitas sobre os momentos que levaram ao gesto do General Mourão: a disciplina e a hierarquia foram violentadas no dia 31 por este General de Divisão. Mais ainda − e para isso chamo atenção − não fosse a pressão de Capitães, Majores e Coronéis, em pequenos grupos em cada grande unidade, e o General Mourão não teria tido condições de ver triunfar seu movimento no mesmo dia em que deixou Juiz de Fora.
Foram os Coronéis que forçaram o General Kruel a solidarizar-se com o General Costa e Silva, que assumira o comando no Rio de Janeiro; e foram os Capitães, organizados desde 1962 e demonstrando na sua organização profundo desprezo pela hierarquia, que contribuíram decisivamente para que o IV Exército se colocasse ao lado da esperada Revolução, vencendo a hesitação dos Generais em comando. Tive contato com alguns desses Capitães em 1962, reunidos sob a orientação (talvez a liderança) de um Capitão da Reserva; um deles, em 1965, ainda desejava fazer a revolução contra os Generais, certo de que seria capaz de levantar a 6ª. Região Militar.
Por que reavivo a lembrança desses dois momentos da crise? Porque a idéia-força do Soldado-Cidadão volta a penetrar a consciência de muitos Oficiais − não pretendendo fazer de um marxismo-leninismo de araque a teoria a orientar sua ação, mas invocando os direitos que a Constituição assegura aos cidadãos, o que torna a questão muito mais complicada. Refiro-me ao movimento chamado de Capitanismo.
O jornal “Folha de S. Paulo” publicou, em sua edição de 28 de dezembro último, extensa matéria sobre o movimento. Em duas páginas! Na primeira, diz o que ele é; na segunda, traz uma entrevista do Capitão Luís Fernando Ribeiro de Sousa, que discorre sobre os objetivos do Capitanismo (páginas 4 e 6 daquela edição).
A primeira coisa a notar na entrevista do Capitão Luís Fernando é que, para ele, o período 1964/1985 foi uma “ditadura militar”: “A gente não tem nada a ver com a ditadura militar. Eu não quero entrar no mérito se foi certo ou errado. Cabe a nós pensar para frente, somos capitães, tenentes”.
O Exército, para o Capitão Luís Fernando, não tem história e não é uma organização com passado, presente e futuro. É uma organização como outra qualquer, na qual ele e os demais que pensam como ele se encontram, não para manter as tradições e o espírito da Força, mas para ter expressão política: o movimento surgiu para fazer “Mudanças que poderiam melhorar as Forças Armadas, para que ela tenha (sic) papel importante só acontecem por meio de participação política. Qualquer coisa que a gente pode fazer passa pela via política. Precisamos de deputados e senadores para promover qualquer transformação. Assim começamos a nos organizar”.
Nesse espírito, o Exército é, para os membros do Capitanismo, uma organização que lhes permite uma “situação”, e por isso o passado não conta, nem o presente; apenas conta o futuro que querem construir. Aliás, é preciso assinalar que o passado não apenas não conta como eles, os membros do movimento, nada querem ter com ele. Isso apesar de que, quando ingressaram na carreira militar tinham (ou deveriam ter) consciência do que se dizia nos meios intelectuais à esquerda e liberais de uma maneira geral sobre o que tinha acontecido depois de 1964. O que indica que permanecem na carreira, chegando ao posto de Capitão, fazendo por desconhecer o passado da instituição a que pertencem por livre escolha. O que significa que o Exército nada significa para eles como vocação e missão.
O Capitão Luís Fernando afirma nada querer dizer sobre a “ditadura militar”, mas usa a expressão, seguramente sabendo que, ao usá-la, toma partido na grande crise em que se debatem as Forças Armadas. Por que digo isto? Porque há tempos, Oficial General na Reserva, amigo meu, falou-me de sua surpresa ao ouvir de jovens Oficiais da Marinha que eles faziam questão de desvincular-se de 1964.
Essa observação, já antiga, liga-se à “ditadura militar” do Capitão Luís Fernando e uma e outra apenas traduzem aquilo que escrevi, para espanto de muitos, por ocasião do infausto episódio que envolveu um Tenente do Exército no Rio de Janeiro: que o Exército está − e agora digo as Forças Armadas estão — vivendo um processo de anomia.
Uma das características da anomia é que a idéia que une os membros de uma dada organização já não é a mesma para todos os seus membros. Outra, é que alguns membros do grupo rejeitam as normas que regulam o comportamento dos que ao grupo pertencem. Insisto em “rejeitam”, porque não se trata de discordar, acatando as normas.
Rejeitam-nas porque vêem nelas um elemento impeditivo da afirmação de sua individualidade, que julgam estar sendo negada pela organização. No momento em que essa consciência de rejeição se forma, os indivíduos que vivem esse processo de afastamento das normas gerais do grupo irão buscar fora dele, preferencialmente em outra organização ou na sociedade, normas outras que lhe permitam justificar a rejeição e que lhes permitam ou continuar pertencendo ao grupo ou dele se afastar.
Há mais. A anomia manifesta-se também quando o aparelho formal que controla o grupo pouco faz para que os membros dele tenham sempre presente a história da organização e, mais importante, sua missão. Uma organização que ao longo de sua história teve condições de afirmar-se como grupo diferenciado na sociedade por ter uma missão específica não se estrutura para oferecer a seus membros uma situação que sirva de trampolim ou passagem para outra situação mais confortável e menos onerosa em termos de compromissos e obrigações. Os partidos políticos − sobretudo quando se corromperam enquanto instituição − são o exemplo de organização-situação.
À medida que a história da organização se perde pela inércia do aparelho formal que a dirige, é apenas natural que a idéia de missão tenda a desaparecer. Ela se esvanecendo, os membros da organização não têm mais laços que os prendam a ela ou entre si, a não ser aqueles materiais (no sentido mais rasteiro da palavra) e se julgam com direito a invocar normas mais gerais para afirmar sua individualidade dentro e fora da organização. Invocam essas normas seja para alterar de cabo a rabo a organização, ou dela se afastar com glória ou ”martirizado” ao ser expulso.
A rejeição das normas é um ato individual; o esquecimento da História e do sentido de missão é coletivo, mas a responsabilidade maior pelo fato recai sobre os Comandos, se considerarmos as Forças Armadas.
É importante procurar estabelecer a semelhança ou diferença entre os Capitães de 1962 e os que integram, agora, o chamado Capitanismo.
Em 1962, Capitães, Majores e até mesmo Coronéis organizavam-se para oferecer resistência a qualquer movimento que, tendo início no Governo Goulart ou vindo de forças políticas organizadas fora do Governo, mas contando com seu apoio, pretendesse destruir a forma de governo e de organização da sociedade de então. Os que viveram aqueles meses sabem que a doutrina que inspirava os grupos que procuravam se organizar no País, sem coordenação praticamente até março de 1964, era em muitos casos defensiva − podendo, em alguns poucos deles, ser defensivo-ofensiva, como se evidenciou na ação dos Generais Luís Carlos Guedes, logo seguida (e sob o comando do comandante da IV RM) pela do General Mourão.
Não se invocavam direitos constitucionais para legitimar qualquer ação contra as autoridades da época; invocava-se, isto sim, o sentido de missão das Forças Armadas, sobretudo do Exército. Para os que se organizavam, as Forças Armadas não poderiam permitir uma transformação abrupta da ordem social e política, muito menos da essência da organização militar, como se evidenciara na revolta dos marinheiros e na reunião no Automóvel Clube do Rio de Janeiro no dia 30 de março de 1964.
Houve, ao longo do processo que se estendeu de 1965, quando se editou o Ato Institucional nº 2, até o início do Governo Figueiredo, tensões de vulto nas Forças Armadas, a maior delas se refletindo na edição do AI-5 em dezembro de 1968. A causa delas, se podemos dizer assim, nunca foi o reclamo de direitos constitucionais, direitos-cidadãos por parte dos jovens Oficiais e Coronéis que conduziram o processo, sem comandá-lo.
A pressão que se exercia, e que por vezes esteve a ponto de, mais uma vez, quebrar a hierarquia e o General-Presidente ser ultrapassado, decorria da sensação de que a organização militar estava faltando a seu dever, à sua missão, e de que o Estado corria, por isso, risco de ser empolgado pelos mesmos homens contra cuja ação se fizera o movimento de março de 1964.
O Capitanismo é totalmente diferente; assemelha-se mais ao movimento dos Sargentos de 1963 (ainda que mais no pensamento do que na ação) do que ao dos Capitães de 1962. Pelo que se depreende da entrevista do Capitão Luís Fernando, o movimento tem distintos objetivos. Um é eleger militares para que as Forças Armadas, especialmente o Exército, tenha quem as represente no Congresso.
Sendo assim, o Capitanismo inscreve-se no corporativismo consagrado pela Constituição de 1988: os advogados com a OAB, as Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros militares, a Polícia Militar Rodoviária, a Polícia Militar Ferroviária (federais) e outras organizações presentes enquanto tal na Constituição.
Realizado o objetivo primeiro do Capitanismo, as Forças Armadas seriam, de fato, uma corporação igual às outras, com objetivos próprios e específicos, elegendo seus representantes para defender seus interesses corporativos − portanto, exclusivos — no que são apoiados por confusos e desavisados Oficiais Superiores da Reserva.
O Capitanismo, no entanto, não se limita à pretensão eleitoral. Se assim fosse, não seria necessário organizar movimento algum; bastaria que os Capitães que desejassem eleger-se seguissem a Constituição, que lhes garante esse direito como, aliás, a qualquer Oficial da Ativa.
O objetivo real é transformar as relações entre superiores e subordinados nas Forças Armadas de tal forma que a disciplina interna não seja mais regida pelo RDE, mas pelo artigo da Constituição que confirma os direitos individuais, cuidando, em especial, de como se deve dar a detenção ou prisão de quem viola as normas disciplinares. Em outras palavras, que a detenção ou prisão de militares seja decidida por um Juiz de Direito.
O que caracteriza as Forças Armadas e as torna, enquanto organização, diferentes das organizações civis é que se regem por normas disciplinares que têm em vista as condutas individuais numa situação de combate. O Capitanismo pretende uma inversão: as normas disciplinares devem ser regidas pela Constituição que é, concordamos todos, elaborada para situações de paz. Na situação de combate, as ordens devem ser obedecidas sem interpretação de qualquer tipo, porque é da obediência delas que se espera garantir a vida da maior parte dos que se engajaram na luta armada.
Dessa perspectiva, a vigência das normas disciplinares na paz tem função pedagógica, isto é, as normas vigoram para que aqueles que a ela estão submetidos se habituem (esta a expressão) a um tipo de relação que será vital para a organização (e para os indivíduos que a compõem) quando da paz se passar à guerra, da inércia guerreira para o confronto armado.
Sendo assim, pretender que o Poder Judiciário seja chamado a dizer da adequação da pena à Constituição é decretar por antecipação o fim das Forças Armadas enquanto organização voltada para a guerra. É transformá-las de fato numa corporação civil como as outras, ou fazer delas uma corporação idêntica àquelas outras, policiais, que por ação política de seus membros conseguiram que na Constituição fossem designadas como “militares”.
Este é, a meu ver, o sentido maior do movimento chamado de Capitanismo. Ele se insere no quadro mais geral da grande manobra dos que pretendem fazer das Forças Armadas nada mais do que um instrumento político do Governo sem condições de exercer, quando necessário (como o foi nos anos 1960), a função de garante do Estado.
Oliveiros S. Ferreira é Jornalista, Doutor em Ciências Sociais e Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
A rigor, esse artigo poderá perfeitamente ser colocado como a continuação daqueles que já escrevi, não apenas sob o título de “A crise do Estado”, mas também sob outros títulos sobre a crise nas Forças Armadas, a um tempo instrumento do Estado e seu suporte. Vamos aos fatos e às considerações.
Em 1963, uma facção daquele partido que pretendia subverter a ordem constitucional e estabelecer um regime fosse comunista, fosse “sindicalista” como alardeava Brizola, promoveu a “Revolta dos Sargentos”. À época, escrevi que a sublevação respondia a uma visão deformada do processo social e político no Brasil e do que fosse a organização militar. É que os teóricos do movimento, pretendendo agravar a crise política e intelectual (especialmente esta), diziam que os Sargentos representavam a “classe operária” e os Oficiais, “a burguesia”, os dominantes.
A pronta reação sufocou o movimento no nascedouro, à custa de algumas mortes e de um profundo abalo no meio militar. Os que viveram aquele período recordar-se-ão de que os Oficiais, nos quartéis, passaram a dormir com as pistolas debaixo dos travesseiros, e que os responsáveis pelo armamento redobraram sua vigilância e seu controle para assegurar-se ao fim do dia de que não faltava alguma arma no arsenal da unidade. Foram dias dramáticos, só superados (na aparência) em 31 de março de 1964 e por uma severa política de disciplinamento da tropa aplicada depois da edição do Ato Institucional nº 1.
Os Sargentos, durante o período dos Governos militares (1964-1979) não mais causaram problemas disciplinares da envergadura daquele. O que não significou que o mal-estar tivesse sido superado, na medida em que o motivo da revolta e sublevação era político. Apesar do que dispunha a Constituição em vigor, a de 1946, que proibia sua candidatura, os Sargentos consideravam-se cidadãos antes que militares e, portanto, com o direito de ser candidatos e eleitos. A idéia-força do Soldado-Cidadão, presente na Questão Militar de 1887 e na ação de muitos entre os que conduziram à proclamação da República, essa idéia esteve novamente presente em 1963.
Há outro fato que convém recordar, apesar de a necessidade de manter inabalável a disciplina fundada no Princípio do Chefe ter contribuído para que ele não fosse recordado em muitas das análises feitas sobre os momentos que levaram ao gesto do General Mourão: a disciplina e a hierarquia foram violentadas no dia 31 por este General de Divisão. Mais ainda − e para isso chamo atenção − não fosse a pressão de Capitães, Majores e Coronéis, em pequenos grupos em cada grande unidade, e o General Mourão não teria tido condições de ver triunfar seu movimento no mesmo dia em que deixou Juiz de Fora.
Foram os Coronéis que forçaram o General Kruel a solidarizar-se com o General Costa e Silva, que assumira o comando no Rio de Janeiro; e foram os Capitães, organizados desde 1962 e demonstrando na sua organização profundo desprezo pela hierarquia, que contribuíram decisivamente para que o IV Exército se colocasse ao lado da esperada Revolução, vencendo a hesitação dos Generais em comando. Tive contato com alguns desses Capitães em 1962, reunidos sob a orientação (talvez a liderança) de um Capitão da Reserva; um deles, em 1965, ainda desejava fazer a revolução contra os Generais, certo de que seria capaz de levantar a 6ª. Região Militar.
Por que reavivo a lembrança desses dois momentos da crise? Porque a idéia-força do Soldado-Cidadão volta a penetrar a consciência de muitos Oficiais − não pretendendo fazer de um marxismo-leninismo de araque a teoria a orientar sua ação, mas invocando os direitos que a Constituição assegura aos cidadãos, o que torna a questão muito mais complicada. Refiro-me ao movimento chamado de Capitanismo.
O jornal “Folha de S. Paulo” publicou, em sua edição de 28 de dezembro último, extensa matéria sobre o movimento. Em duas páginas! Na primeira, diz o que ele é; na segunda, traz uma entrevista do Capitão Luís Fernando Ribeiro de Sousa, que discorre sobre os objetivos do Capitanismo (páginas 4 e 6 daquela edição).
A primeira coisa a notar na entrevista do Capitão Luís Fernando é que, para ele, o período 1964/1985 foi uma “ditadura militar”: “A gente não tem nada a ver com a ditadura militar. Eu não quero entrar no mérito se foi certo ou errado. Cabe a nós pensar para frente, somos capitães, tenentes”.
O Exército, para o Capitão Luís Fernando, não tem história e não é uma organização com passado, presente e futuro. É uma organização como outra qualquer, na qual ele e os demais que pensam como ele se encontram, não para manter as tradições e o espírito da Força, mas para ter expressão política: o movimento surgiu para fazer “Mudanças que poderiam melhorar as Forças Armadas, para que ela tenha (sic) papel importante só acontecem por meio de participação política. Qualquer coisa que a gente pode fazer passa pela via política. Precisamos de deputados e senadores para promover qualquer transformação. Assim começamos a nos organizar”.
Nesse espírito, o Exército é, para os membros do Capitanismo, uma organização que lhes permite uma “situação”, e por isso o passado não conta, nem o presente; apenas conta o futuro que querem construir. Aliás, é preciso assinalar que o passado não apenas não conta como eles, os membros do movimento, nada querem ter com ele. Isso apesar de que, quando ingressaram na carreira militar tinham (ou deveriam ter) consciência do que se dizia nos meios intelectuais à esquerda e liberais de uma maneira geral sobre o que tinha acontecido depois de 1964. O que indica que permanecem na carreira, chegando ao posto de Capitão, fazendo por desconhecer o passado da instituição a que pertencem por livre escolha. O que significa que o Exército nada significa para eles como vocação e missão.
O Capitão Luís Fernando afirma nada querer dizer sobre a “ditadura militar”, mas usa a expressão, seguramente sabendo que, ao usá-la, toma partido na grande crise em que se debatem as Forças Armadas. Por que digo isto? Porque há tempos, Oficial General na Reserva, amigo meu, falou-me de sua surpresa ao ouvir de jovens Oficiais da Marinha que eles faziam questão de desvincular-se de 1964.
Essa observação, já antiga, liga-se à “ditadura militar” do Capitão Luís Fernando e uma e outra apenas traduzem aquilo que escrevi, para espanto de muitos, por ocasião do infausto episódio que envolveu um Tenente do Exército no Rio de Janeiro: que o Exército está − e agora digo as Forças Armadas estão — vivendo um processo de anomia.
Uma das características da anomia é que a idéia que une os membros de uma dada organização já não é a mesma para todos os seus membros. Outra, é que alguns membros do grupo rejeitam as normas que regulam o comportamento dos que ao grupo pertencem. Insisto em “rejeitam”, porque não se trata de discordar, acatando as normas.
Rejeitam-nas porque vêem nelas um elemento impeditivo da afirmação de sua individualidade, que julgam estar sendo negada pela organização. No momento em que essa consciência de rejeição se forma, os indivíduos que vivem esse processo de afastamento das normas gerais do grupo irão buscar fora dele, preferencialmente em outra organização ou na sociedade, normas outras que lhe permitam justificar a rejeição e que lhes permitam ou continuar pertencendo ao grupo ou dele se afastar.
Há mais. A anomia manifesta-se também quando o aparelho formal que controla o grupo pouco faz para que os membros dele tenham sempre presente a história da organização e, mais importante, sua missão. Uma organização que ao longo de sua história teve condições de afirmar-se como grupo diferenciado na sociedade por ter uma missão específica não se estrutura para oferecer a seus membros uma situação que sirva de trampolim ou passagem para outra situação mais confortável e menos onerosa em termos de compromissos e obrigações. Os partidos políticos − sobretudo quando se corromperam enquanto instituição − são o exemplo de organização-situação.
À medida que a história da organização se perde pela inércia do aparelho formal que a dirige, é apenas natural que a idéia de missão tenda a desaparecer. Ela se esvanecendo, os membros da organização não têm mais laços que os prendam a ela ou entre si, a não ser aqueles materiais (no sentido mais rasteiro da palavra) e se julgam com direito a invocar normas mais gerais para afirmar sua individualidade dentro e fora da organização. Invocam essas normas seja para alterar de cabo a rabo a organização, ou dela se afastar com glória ou ”martirizado” ao ser expulso.
A rejeição das normas é um ato individual; o esquecimento da História e do sentido de missão é coletivo, mas a responsabilidade maior pelo fato recai sobre os Comandos, se considerarmos as Forças Armadas.
É importante procurar estabelecer a semelhança ou diferença entre os Capitães de 1962 e os que integram, agora, o chamado Capitanismo.
Em 1962, Capitães, Majores e até mesmo Coronéis organizavam-se para oferecer resistência a qualquer movimento que, tendo início no Governo Goulart ou vindo de forças políticas organizadas fora do Governo, mas contando com seu apoio, pretendesse destruir a forma de governo e de organização da sociedade de então. Os que viveram aqueles meses sabem que a doutrina que inspirava os grupos que procuravam se organizar no País, sem coordenação praticamente até março de 1964, era em muitos casos defensiva − podendo, em alguns poucos deles, ser defensivo-ofensiva, como se evidenciou na ação dos Generais Luís Carlos Guedes, logo seguida (e sob o comando do comandante da IV RM) pela do General Mourão.
Não se invocavam direitos constitucionais para legitimar qualquer ação contra as autoridades da época; invocava-se, isto sim, o sentido de missão das Forças Armadas, sobretudo do Exército. Para os que se organizavam, as Forças Armadas não poderiam permitir uma transformação abrupta da ordem social e política, muito menos da essência da organização militar, como se evidenciara na revolta dos marinheiros e na reunião no Automóvel Clube do Rio de Janeiro no dia 30 de março de 1964.
Houve, ao longo do processo que se estendeu de 1965, quando se editou o Ato Institucional nº 2, até o início do Governo Figueiredo, tensões de vulto nas Forças Armadas, a maior delas se refletindo na edição do AI-5 em dezembro de 1968. A causa delas, se podemos dizer assim, nunca foi o reclamo de direitos constitucionais, direitos-cidadãos por parte dos jovens Oficiais e Coronéis que conduziram o processo, sem comandá-lo.
A pressão que se exercia, e que por vezes esteve a ponto de, mais uma vez, quebrar a hierarquia e o General-Presidente ser ultrapassado, decorria da sensação de que a organização militar estava faltando a seu dever, à sua missão, e de que o Estado corria, por isso, risco de ser empolgado pelos mesmos homens contra cuja ação se fizera o movimento de março de 1964.
O Capitanismo é totalmente diferente; assemelha-se mais ao movimento dos Sargentos de 1963 (ainda que mais no pensamento do que na ação) do que ao dos Capitães de 1962. Pelo que se depreende da entrevista do Capitão Luís Fernando, o movimento tem distintos objetivos. Um é eleger militares para que as Forças Armadas, especialmente o Exército, tenha quem as represente no Congresso.
Sendo assim, o Capitanismo inscreve-se no corporativismo consagrado pela Constituição de 1988: os advogados com a OAB, as Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros militares, a Polícia Militar Rodoviária, a Polícia Militar Ferroviária (federais) e outras organizações presentes enquanto tal na Constituição.
Realizado o objetivo primeiro do Capitanismo, as Forças Armadas seriam, de fato, uma corporação igual às outras, com objetivos próprios e específicos, elegendo seus representantes para defender seus interesses corporativos − portanto, exclusivos — no que são apoiados por confusos e desavisados Oficiais Superiores da Reserva.
O Capitanismo, no entanto, não se limita à pretensão eleitoral. Se assim fosse, não seria necessário organizar movimento algum; bastaria que os Capitães que desejassem eleger-se seguissem a Constituição, que lhes garante esse direito como, aliás, a qualquer Oficial da Ativa.
O objetivo real é transformar as relações entre superiores e subordinados nas Forças Armadas de tal forma que a disciplina interna não seja mais regida pelo RDE, mas pelo artigo da Constituição que confirma os direitos individuais, cuidando, em especial, de como se deve dar a detenção ou prisão de quem viola as normas disciplinares. Em outras palavras, que a detenção ou prisão de militares seja decidida por um Juiz de Direito.
O que caracteriza as Forças Armadas e as torna, enquanto organização, diferentes das organizações civis é que se regem por normas disciplinares que têm em vista as condutas individuais numa situação de combate. O Capitanismo pretende uma inversão: as normas disciplinares devem ser regidas pela Constituição que é, concordamos todos, elaborada para situações de paz. Na situação de combate, as ordens devem ser obedecidas sem interpretação de qualquer tipo, porque é da obediência delas que se espera garantir a vida da maior parte dos que se engajaram na luta armada.
Dessa perspectiva, a vigência das normas disciplinares na paz tem função pedagógica, isto é, as normas vigoram para que aqueles que a ela estão submetidos se habituem (esta a expressão) a um tipo de relação que será vital para a organização (e para os indivíduos que a compõem) quando da paz se passar à guerra, da inércia guerreira para o confronto armado.
Sendo assim, pretender que o Poder Judiciário seja chamado a dizer da adequação da pena à Constituição é decretar por antecipação o fim das Forças Armadas enquanto organização voltada para a guerra. É transformá-las de fato numa corporação civil como as outras, ou fazer delas uma corporação idêntica àquelas outras, policiais, que por ação política de seus membros conseguiram que na Constituição fossem designadas como “militares”.
Este é, a meu ver, o sentido maior do movimento chamado de Capitanismo. Ele se insere no quadro mais geral da grande manobra dos que pretendem fazer das Forças Armadas nada mais do que um instrumento político do Governo sem condições de exercer, quando necessário (como o foi nos anos 1960), a função de garante do Estado.
Oliveiros S. Ferreira é Jornalista, Doutor em Ciências Sociais e Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Nenhum comentário:
Postar um comentário