sábado, 13 de agosto de 2011

A CONIVÊNCIA ENTRE O CRIME E O PODER.

Com a autoridade que o Estado lhes confere, agentes públicos acionam dispositivos extralegais que oscilam entre a transgressão, os acertos negociados e as práticas de extorsão. No coração da economia urbana, são práticas que engendram uma expansiva zona cinzenta que torna incertas as diferenças entre o legal e o ilegal
A extorsão policial teve um papel central na deflagração da violência que eclodiu em maio de 2006 e paralisou a cidade de São Paulo sob o impacto de ataques a agentes e prédios públicos promovidos pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), ao mesmo tempo que rebeliões simultâneas se espalhavam pelo estado. Essa é a conclusão de um detalhado estudo, de quase 250 páginas, publicado agora, cinco anos depois dos acontecimentos, sob o título “São Paulo sob achaque: Corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006”. Realizado por pesquisadores da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard e da ONG Justiça Global, o estudo reúne provas de que os ataques de maio foram em grande medida concebidos como revide a achaques praticados por agentes públicos contra familiares de líderes do PCC. Os atos que estiveram na origem dos acontecimentos faziam parte de uma multiplicidade de esquemas de corrupção, envolvendo extorsão a familiares de homens da organização criminosa, bem como venda de fugas do sistema prisional e furtos de bens apreendidos pela polícia. Esquemas que vinham de antes e tiveram continuidade nos anos que se seguiram, que se desdobram e se ramificam, por exemplo, no controle do muito rendoso negócio das máquinas caça-níqueis, além da extorsão reiterada de pessoas envolvidas no tráfico de drogas, tudo isso entrelaçado com histórias de morte, execuções (muitas) e a ação de grupos de extermínio.

Os fatos relatados oferecem, em seu conjunto, algo como uma grande angular do que é recorrente nas microssituações que atravessam o tecido urbano da cidade de São Paulo, e não apenas nela. O envolvimento das forças da ordem nas atividades ilegais não é propriamente uma novidade. Faz parte da crônica urbana, alimenta o noticiário da imprensa, já virou roteiro de cinema e é assunto das conversas diárias. Mas resta compreender os jogos de poder e as relações de força inscritas nessas dobras do legal-ilegal, e isso não diz respeito apenas a organizações criminosas e seus negócios ilícitos. Estão incrustados no núcleo dinâmico das economias urbanas, nas relações que tecem os hoje expansivos mercados informais e o comércio de bens ilegais, além do tráfico de drogas e suas capilaridades nas redes sociais e práticas urbanas. Esses jogos de poder e relações de força carregam um potencial de violência que interessa elucidar.

Nas dobras do legal-ilegal

Os pujantes centros de comércio popular na cidade de São Paulo oferecem um privilegiadíssimo “posto de observação”. Muito longe das tradicionais economias de sobrevivência, são lugares por onde circulam produtos de origem variada, quase sempre duvidosa (contrabando, falsificações, pirataria), acionando verdadeiros dispositivos comerciais que fazem a articulação entre o informal e os circuitos ilegais de economias transnacionais. Porém, desde um modesto posto de CDs piratas às congestionadas lojas de galeria, passando pelas multidões de ambulantes que ocupam as ruas da cidade, essa ampla circulação de bens e riquezas não poderia operar sem sua articulação com outro mercado, também ilegal, por onde se transacionam as mercadorias políticas, nos termos propostos por Michel Misse (2006). Mercadorias políticas, quer dizer: corrupção, acertos na partilha dos ganhos, troca de favores, clientelismo, compra de proteção e práticas de extorsão que são mais ou menos ferozes conforme oscilam as microconjunturas políticas, as disputas, o jogo das alianças e os interesses em jogo e, também ou sobretudo, o grau de incriminação que pesa sobre essas atividades. Fiscais, gestores urbanos, operadores políticos e agentes policiais operam nas dobras do legal-ilegal pelas vias das “ligações perigosas” (Misse, 2006) entre os mercados informais e os mercados políticos que parasitam os primeiros e condicionam grandemente o modo como estes se organizam e se distribuem nos espaços urbanos.

Na formulação precisa de Misse, “são formas de conversão da ilegalidade em mercadoria negociável”, e é isso propriamente que define o mercado político, ilegal, “que oferece, privadamente, bens e serviços monopolizados pela soberania do Estado moderno” (Misse, 2009:101). Mas, então, vale se deter no modus operandi dessas práticas. São agentes que fazem uso das prerrogativas legais, a autoridade que o Estado lhes confere, para acionar dispositivos extralegais que oscilam entre a transgressão consentida, os acertos negociados e as práticas de extorsão. No coração da economia urbana de nossas cidades, são práticas e dispositivos políticos que terminam por engendrar uma ampla e hoje expansiva zona cinzenta que torna incertas, quando não indiferenciadas, as diferenças entre o legal e o extralegal, entre o dentro e o fora da lei, também entre a ordem e seu avesso quando as práticas de extorsão ultrapassam os limites de aceitabilidade pelos atores envolvidos e se desdobram em disputas ferozes, conflitos abertos e, muito frequentemente, histórias de morte. Mas é justamente nesses terrenos incertos que se estrutura um campo de forças que coloca em cena uma meada intrincada de atores (ambulantes, lojistas, associações de classe, operadores políticos, fiscais, gestores urbanos, agentes policiais) em uma disputa sempre reaberta entre negociações e conflitos acirrados, pelas vias de procedimentos públicos ou por condutos obscuros e nebulosos, em torno da gestão desses espaços e a distribuição de seus territórios. No centro das disputas, os jogos de força inscritos nos acertos negociados, nos mercados de proteção e práticas de extorsão. Quer dizer: uma disputa em torno dos modos de apropriação dessa riqueza circulante. E também em torno dos protocolos dos mercados de proteção e os limites do tolerável nas práticas de extorsão (cf. Freire, 2009).

Quanto aos mercados de bens ilícitos, os jogos de poder acompanham a distribuição dos pontos de venda de drogas nos bairros periféricos da cidade. O pagamento regular da proteção policial faz parte das rotinas do negócio local. São práticas corriqueiras, com seus procedimentos, seus tempos, seus lugares, seus protocolos. Equilíbrios instáveis que muito frequentemente desandam em práticas de extorsão acompanhadas por chantagem, ameaça de prisão, violência física. Isso faz parte das rotinas não apenas no negócio local: isso compõe a vida de um bairro de periferia, faz parte dos cenários locais, alimenta histórias que circulam no repertório popular, está enfim incrustado na ordem das coisas, nas formas de vida. Mas isso não quer dizer que tudo isso seja banal ou que esteja banalizado: uma peculiar experiência com a lei que termina por embaralhar e inverter os sentidos da ordem e de seu avesso ou, então, para usar os termos correntes no universo popular, o “lado certo” e o “lado errado” nas coisas da vida.

A hora da violência

Quando os mercados de proteção são desestabilizados, por razões as mais diversas, essas práticas assumem formas as mais violentas. O epicentro é o ponto de droga, mas a zona de arbítrio se expande e afeta todo o entorno. A cena é conhecida: com o pretexto de “caça aos bandidos”, sucedem-se batidas policiais, invasão de domicílio, chantagem, extorsão, expropriação, mortes e extermínios. “Invasão de território”, como se diz, muito frequentemente desencadeada por rearranjos internos às equipes policiais que dividem entre si (e disputam) essa preciosa fonte de renda e poder. Aqui, neste registro, não se trata propriamente de fronteiras incertas entre a lei e o extralegal, o dentro e o fora da lei, mas da suspensão dessas fronteiras na própria medida em que fica anulada a diferença entre a lei e a transgressão da lei. A lei é como que desativada. E isso significa dizer que é a própria diferença entre a lei e o crime que se embaralha e, no limite, é ela própria anulada. É isso que permite acionar uma espécie de autorização para matar, sem que isso seja considerado crime. É o que está posto e exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais – “resistência seguida de morte”: uma categoria que não tem existência legal, mas é aceita no processamento judicial, que opera como uma espécie de autorização para matar, avalizada pelas próprias instâncias estatais, também judiciais, invertendo tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa, o crime é atribuído à vítima em supostas “guerras de quadrilha”, “troca de tiros”, “resistência à prisão”. Aqui, se está no cerne do que Agamben (2007) define como “estado de exceção”, fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não lei, terrenos de fronteiras incertas nos quais todos e cada um se transformam em vida matável.

É possível acompanhar, descrever, fazer a etnografia das modalidades de operação prática das forças da ordem nesses lugares, acompanhando seus modos de atuação, seus movimentos, seus tempos, seus procedimentos (Das e Poole, 2004). Nessas pontas em que a presença do Estado afeta as vidas e as formas de vida, circunscreve-se um campo de práticas no qual os sujeitos fazem (e elaboram) a experiência da lei, da autoridade, da ordem e seu inverso, em interação com outros modos de regulação ancorados nas condições. Os indivíduos também transitam entre o dentro e o fora do Estado, maquinam artifícios nas fronteiras incertas entre o legal e o ilegal, agenciam contracondutas, negociam regras, limites, protocolos em função das condições concretas de vida, em seus imperativos de sobrevivência, necessidades de segurança, sentidos de ordem e justiça (Das e Poole, 2004). É a lógica de uma razão prática para lidar com as circunstâncias movediças nas fronteiras do legal-legal, ao mesmo tempo que, a cada situação, os indivíduos negociam os critérios do “certo” e do “errado” – “é preciso andar pelo certo” é a expressão que se ouve nesses lugares –, mas também os parâmetros do aceitável e os limites do tolerável (cf. Hirata, 2010).

Disputando a gestão da ordem

Mas, então, isso significa dizer que esses espaços de exceção não são espaços vazios: é justamente aí que as fronteiras do Estado estão em disputa, os sentidos da lei, de justiça, de ordem e seu inverso. No limite, é a própria gestão da ordem que parece estar em disputa, nos pontos de junção (e fricção) com a lei (e seus modos de operação) e outros modos de regulação ancorados nas formas de vida. Aqui, trata-se de uma gestão da ordem que se desdobra em uma negociação dos limiares da vida e da morte: é disso que se trata nesses lugares pontuados pela experiência da morte violenta (e sua ameaça), a violência policial e a violência implicada nos (des)acertos dos “negócios do crime”, cujos nexos e ressonâncias mútuas precisam ser levados em conta para entender o que ocorre nesses lugares. Ao longo dos anos 1980, mais ainda na década de 1990, esses bairros foram assombrados por índices altíssimos de mortes violentas, uma mistura intrincada de disputas entre gangues rivais, violência policial e práticas de extermínio. É nesse plano que se podem decifrar as capilaridades urbanas do PCC e os mecanismos postos em prática para estancar a lógica da vingança que vigorava nessas disputas e para regular o uso da violência: nessa gestão da ordem (em disputa) se têm pistas para entender a notável queda dos homicídios, desde o início dos anos 2000, na cidade de São Paulo (cf. Telles e Hirata, 2010). É isso que parece estar em jogo nas microrregulações que se estruturam em torno das miríades de pontos de venda de drogas ilícitas na cidade de São Paulo (Hirata, 2010).

Porém, desse modo, vale perscrutar a lógica de verdade contida em um dito popular: “ou o acordo ou a morte, não a prisão”; é assim na periferia. No jogo oscilante entre tolerâncias, acertos (ou morte) e prisão, definem-se as dimensões territorializadas de uma gestão diferencial dos ilegalismos, para usar um termo cunhado por Foucault: o dispositivo penal (quer dizer, legal) recai, sobretudo, sobre uma criminalidade urbana difusa, avulsa, mas concentrada em regiões não periféricas da cidade. É sobretudo essa pequena criminalidade que vem alimentando e abarrotando os dispositivos carcerários, resultado do endurecimento penal dos últimos anos. E é dessa criminalidade difusa que se alimentam os medos urbanos e o sentimento de insegurança, acionando a demanda por mais punição e principalmente conferindo razão e aceitabilidade à multiplicação generalizada dos enclaves fechados e dos dispositivos privados de segurança e policiamento. Aqui neste registro, formas privatizadas de gestão da ordem local, outras tantas modalidades de apropriação privada das prerrogativas da soberania do Estado: agentes privados decidem pelas normas e códigos internos, dispositivos muitas vezes de legalidade duvidosa, que garantem ou prometem garantir proteção e segurança. É nessa lógica que espaços urbanos vêm sendo produzidos, engendrando, como dizem Alsayyad e Roy (2009), um “urbanismo de estilhaços” feito de “redes de segregação espacial mantidas por meio de infraestruturas especiais”, desenhando os cenários de uma cidade atravessada por uma meada de “jurisdições de associações privadas sobrepostas, heterogêneas, não uniformes e crescentemente privadas”, mas todas elas carregando o selo dos dispositivos de exceção: soberanias múltiplas, dizem as autoras, que disputam com o Estado, poderíamos acrescentar, ou com ele transacionam também pelas vias dos mercados políticos, as prerrogativas de definir as normas em nome da gestão dos riscos e administração das urgências (e quem define o que são os riscos e as urgências?) tal como aparecem ou são assim objetivados em contextos particularizados.

Vera da Silva Telles - professora do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cenedic. Publicou, junto com Robert Cabanes, Nas tramas da cidade: mobilidades urbanas e seus territórios (São Paulo, Humanitas, 2006).
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário