Recém-chegado de uma turnê de carteado em que tomou o dinheiro todo de uns magnatas de Nazaré das Farinhas, Zecamunista não estava sendo esperado no bar de Espanha naquela hora. Mas, novamente consagrado pela glória do pano verde e de excelente humor, resolveu aparecer, para mandar baixar umas cervejas por sua conta e se inteirar das novidades. Qual era o tema em pauta?
Ladroagem? Ladroagem outra vez? Que foi que houve agora, os deputados se deram um novo aumento, criaram um auxílio manicure, compraram uma lancha oceânica para cada um? Pegaram outro prefeito enterrando a arrecadação municipal debaixo de uma touceira de banana no quintal? Filmaram algum governador enfiando dinheiro na cueca, ou alguma deputada estufando a calçola com bolos de notas? Será que só havia esse tipo de novidade?
- É porque aqui tem gente que não acredita nessas histórias. João Baguinha disse que não é possível carregar esse dinheiro todo na cueca.
- Se for uma cueca dessas maltrapilhas daqui, não, mas em Brasília já dá para encontrar vários modelos nas lojas, é só chegar e pedir o modelo avestruz, vocês estão por fora.
- Como é esse modelo avestruz?
- É com o tamanho calculado para caberem dois ovos de avestruz lá dentro. Não sei se vocês já viram ovo de avestruz, mas dá para socar bem umas duas folhas de pagamento em cada um, vocês estão por fora, é cueca federal, importada, cai bem com terno e gravata ou smoking, ninguém nota. Em matéria de trambique, vocês são todos uns inocentes. Já chegou aqui o golpe do Ibama, não?
- Que foi, Xepa fisgou outro tatu e o Ibama pegou?
- Não, não é esse Ibama, é um Ibama fajuto, eu preciso até avisar a vocês todos. Pode ser boato, mas me contaram em Nazaré que tem uns caras que estão treinando macacos ameaçados de extinção para aplicar esse golpe. É o seguinte, o cara se veste de fiscal do Ibama e entra no mato, com o macaco acompanhando ao longe, pulando de galho em galho nas árvores. Assim que aparece alguém, o macaco despenca de lá, corre para essa pessoa, estremece todo e cai ao pés dela, duro, mortinho.
- E como é que matam esse macaco?
- Aí é que está, não matam, o macaco é artista, com especialidade em fingir de morto. Aí sabe como é, espécie em extinção, cana dura pelo macaquicídio, sem direito a fiança. Aí o acusado paga bem direitinho para o caso ser esquecido na hora. É uma modalidade de muito futuro. Acho que dá para aplicar numa boa até no parque do Flamengo ou no Ibirapuera, não precisa ser no mato mesmo.
- Muito bem bolado, coisa de artista mesmo, queria eu conseguir um macaco desses.
- Aí é que você tocou no ponto certo! Vou ver se você é inteligente mesmo, faço uma pergunta: qual é o problema da corrupção brasileira, por que a corrupção brasileira é um problema?
- Bem, corrupção é sempre um problema, seria melhor acabar com ela.
- Seria, seria. Parece até ladainha religiosa. Seria, seria, mas não será nunca. Essa mania abobalhada de querer acabar a corrupção só faz atrapalhar. Por que não aproveitarmos nossa vocação natural e fazer com que ela trabalhe em nosso benefício? E nós já temos a chave, há muito tempo nós temos a chave, é só aplicar a frase de Stanislaw Ponte Preta, que diz...
... Ou todos nos locupletemos ou restaure-se a moralidade. É engraçada, mas é só uma frase.
- Aí é que você está enganado, essa sua mente pequeno-burguesa não falha. Não é uma frase, é uma palavra de ordem, é o ponto básico para o encaminhamento do problema. Mas faltou operacionalidade e até hoje nunca houve vontade política para ir à frente com essa democratização da corrupção. Mas é preciso que haja, porque estou seguro de que, quando cada um de nós puder realizar o sonho da corrupção própria, quando houver igualdade de oportunidades para meter a mão na grana pública, desviar verbas e, enfim, desfrutar de um direito até hoje restrito a minorias, chegaremos finalmente a grande potência. Já tenho uma primeira ideia, a corrupção transparente. Por mais empedernido que seja, o corrupto também é humano e deve sofrer muito, com a perspectiva de vir a ser desmascarado e enfrentar uma porção de aborrecimentos. Não acontece nada, mas é chato, aparece no telejornal e tudo mais. Então eu sugiro a corrupção transparente. O corrupto se cansa de esconder suas coisas e aí, em troca de poder ficar em liberdade com o que roubou, publica todos os detalhes de seu golpe, para que outros tenham a oportunidade de aplicá-lo ou aperfeiçoá-lo - sem receber direitos autorais, porque aí há a parte social. Imagine todos os benefícios da corrupção transparente, seria uma reviravolta histórica! O corrupto seria uma nova categoria de empreendedor.
- Você desvairou de vez.
- Ah, é? Zombaram de Pasteur! Mofaram de Colombo! Envenenaram Sócrates! Por que o modesto Zecamunista seria exceção? Os visionários sempre foram tratados assim. Ainda veremos realizar-se o sonho da corrupção própria, onde todos terão acesso a suas mordidinhas, onde ninguém se sentirá excluído por não ostentar pelo menos um trambique oficial em seu currículo, onde vou poder olhar a barriga de uma compatriota grávida e antever com lágrimas nos olhos o brasileirinho corruptozinho ali em formação.
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de São Paulo
Ladroagem? Ladroagem outra vez? Que foi que houve agora, os deputados se deram um novo aumento, criaram um auxílio manicure, compraram uma lancha oceânica para cada um? Pegaram outro prefeito enterrando a arrecadação municipal debaixo de uma touceira de banana no quintal? Filmaram algum governador enfiando dinheiro na cueca, ou alguma deputada estufando a calçola com bolos de notas? Será que só havia esse tipo de novidade?
- É porque aqui tem gente que não acredita nessas histórias. João Baguinha disse que não é possível carregar esse dinheiro todo na cueca.
- Se for uma cueca dessas maltrapilhas daqui, não, mas em Brasília já dá para encontrar vários modelos nas lojas, é só chegar e pedir o modelo avestruz, vocês estão por fora.
- Como é esse modelo avestruz?
- É com o tamanho calculado para caberem dois ovos de avestruz lá dentro. Não sei se vocês já viram ovo de avestruz, mas dá para socar bem umas duas folhas de pagamento em cada um, vocês estão por fora, é cueca federal, importada, cai bem com terno e gravata ou smoking, ninguém nota. Em matéria de trambique, vocês são todos uns inocentes. Já chegou aqui o golpe do Ibama, não?
- Que foi, Xepa fisgou outro tatu e o Ibama pegou?
- Não, não é esse Ibama, é um Ibama fajuto, eu preciso até avisar a vocês todos. Pode ser boato, mas me contaram em Nazaré que tem uns caras que estão treinando macacos ameaçados de extinção para aplicar esse golpe. É o seguinte, o cara se veste de fiscal do Ibama e entra no mato, com o macaco acompanhando ao longe, pulando de galho em galho nas árvores. Assim que aparece alguém, o macaco despenca de lá, corre para essa pessoa, estremece todo e cai ao pés dela, duro, mortinho.
- E como é que matam esse macaco?
- Aí é que está, não matam, o macaco é artista, com especialidade em fingir de morto. Aí sabe como é, espécie em extinção, cana dura pelo macaquicídio, sem direito a fiança. Aí o acusado paga bem direitinho para o caso ser esquecido na hora. É uma modalidade de muito futuro. Acho que dá para aplicar numa boa até no parque do Flamengo ou no Ibirapuera, não precisa ser no mato mesmo.
- Muito bem bolado, coisa de artista mesmo, queria eu conseguir um macaco desses.
- Aí é que você tocou no ponto certo! Vou ver se você é inteligente mesmo, faço uma pergunta: qual é o problema da corrupção brasileira, por que a corrupção brasileira é um problema?
- Bem, corrupção é sempre um problema, seria melhor acabar com ela.
- Seria, seria. Parece até ladainha religiosa. Seria, seria, mas não será nunca. Essa mania abobalhada de querer acabar a corrupção só faz atrapalhar. Por que não aproveitarmos nossa vocação natural e fazer com que ela trabalhe em nosso benefício? E nós já temos a chave, há muito tempo nós temos a chave, é só aplicar a frase de Stanislaw Ponte Preta, que diz...
... Ou todos nos locupletemos ou restaure-se a moralidade. É engraçada, mas é só uma frase.
- Aí é que você está enganado, essa sua mente pequeno-burguesa não falha. Não é uma frase, é uma palavra de ordem, é o ponto básico para o encaminhamento do problema. Mas faltou operacionalidade e até hoje nunca houve vontade política para ir à frente com essa democratização da corrupção. Mas é preciso que haja, porque estou seguro de que, quando cada um de nós puder realizar o sonho da corrupção própria, quando houver igualdade de oportunidades para meter a mão na grana pública, desviar verbas e, enfim, desfrutar de um direito até hoje restrito a minorias, chegaremos finalmente a grande potência. Já tenho uma primeira ideia, a corrupção transparente. Por mais empedernido que seja, o corrupto também é humano e deve sofrer muito, com a perspectiva de vir a ser desmascarado e enfrentar uma porção de aborrecimentos. Não acontece nada, mas é chato, aparece no telejornal e tudo mais. Então eu sugiro a corrupção transparente. O corrupto se cansa de esconder suas coisas e aí, em troca de poder ficar em liberdade com o que roubou, publica todos os detalhes de seu golpe, para que outros tenham a oportunidade de aplicá-lo ou aperfeiçoá-lo - sem receber direitos autorais, porque aí há a parte social. Imagine todos os benefícios da corrupção transparente, seria uma reviravolta histórica! O corrupto seria uma nova categoria de empreendedor.
- Você desvairou de vez.
- Ah, é? Zombaram de Pasteur! Mofaram de Colombo! Envenenaram Sócrates! Por que o modesto Zecamunista seria exceção? Os visionários sempre foram tratados assim. Ainda veremos realizar-se o sonho da corrupção própria, onde todos terão acesso a suas mordidinhas, onde ninguém se sentirá excluído por não ostentar pelo menos um trambique oficial em seu currículo, onde vou poder olhar a barriga de uma compatriota grávida e antever com lágrimas nos olhos o brasileirinho corruptozinho ali em formação.
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de São Paulo
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