Ivan Maciel de Andrade - Advogado
A aprovação do projeto de lei que regula a exigência de ficha limpa (bons antecedentes) para os candidatos a cargos eletivos foi uma nítida e significativa vitória do próprio eleitorado (e também, óbvio, da mídia). Com esse projeto, submetido à sanção presidencial, são ampliadas as hipóteses de inelegibilidade, aumenta-se o rigor das penas que punem os crimes eleitorais e tenta-se impedir, assim, que políticos de ficha suja disputem o voto popular. Isso demonstra que o eleitorado alcançou um inesperado grau de maturidade. Mas evidencia também que existe um estado de saturação generalizado: ninguém suporta mais a repetição de falcatruas cujos autores, apesar de reincidentes, são tratados com tolerância e condescendência. Os abusos passaram da conta.
Houve alterações no projeto de lei, feitas no Senado por iniciativa do senador Francisco Dornelles, que criam dúvidas sobre a própria utilidade do projeto: as emendas alteraram os tempos verbais – onde estava escrito “os que tiverem sido condenados”, a nova redação mudou para “os que forem condenados”. Segundo foi noticiado, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Ricardo Lewandowski, entende que o projeto de lei dispõe para o futuro, destinando-se aos políticos que vierem a ser condenados por práticas criminosas: “do jeito que foi aprovado no Senado (os ‘que forem condenados’) o texto não barra quem já tem condenação”. Do ponto de vista de uma interpretação estritamente gramatical, não há dúvida de que o Ministro Lewandowski tem razão: o projeto disciplina situações que venham a ocorrer (ou seja, prevê a exclusão da disputa eleitoral de políticos “que forem condenados”, o que equivale a dizer, que vierem a ser condenados). Não me venham dizer que essa mudança de tempo de verbo foi para atender a determinados padrões de redação legislativa. O objetivo foi o de frustrar a aplicação da lei. E o presidente da República não pode restaurar a redação anterior. Se exercer o direito de veto – não conheço o projeto – tudo indica que irá truncá-lo ainda mais. Um aparente beco sem saída...
Existe outro obstáculo jurídico que inviabilizaria a aplicação da lei de ficha limpa para as próximas eleições. O art. 16 da Constituição Federal (com a redação dada pela Emenda Constitucional 04/93) estabelece: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. O TSE fixou o entendimento de que somente escapam ao princípio da anualidade as leis que acarretem mudanças “meramente instrumentais” (como, por exemplo, “modificação de formulários, data e forma de diplomação, contabilidade dos votos” etc.). A futura lei da ficha limpa não poderá ser considerada “meramente instrumental”. E, portanto, não se aplicaria às próximas eleições.
No entanto, apesar dessas evidentes dificuldades jurídicas, a OAB, a Procuradoria Geral da República e, ainda, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais entendem que a lei de ficha limpa deve ter aplicação imediata, podendo vigorar para as próximas eleições. Bem, se isso não acontecer, se abaterá sobre o eleitorado uma grande decepção.
Mas me permitam um raciocínio pessimista: será que, quando aplicada, a lei da ficha limpa irá resolver o problema do mau exercício do mandato pelos eleitos? Existe em nosso país toda uma cultura de degradação do exercício do mandato eletivo: começa com o caixa dois que financia a campanha dos candidatos. Quando se elege, o político já está comprometido com as fontes espúrias que abasteceram de recursos a sua campanha. Além do mais, não há uma consciência ética que faça com que o político se sinta vinculado às promessas assumidas perante o eleitorado. Essas promessas são mero jogo de cena. O que se poderá fazer, então, para obrigar o político a vincular-se às suas promessas? Promover mudanças profundas na legislação eleitoral? Isso exigiria tempo e consenso. A única saída, me parece, é apelar para o discernimento do eleitor...
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