Um dia desses comentei com a minha fiel doméstica, rainha dos fornos e fogões, que havia presenciado, paralisado, um assalto à mão armada do roubo da bolsa de uma senhora. "Bem feito, quem mandou dar bobeira!", respondeu ela, docemente. Rosalva, que de tão competente que é, cultiva o medo dos asseclas de Ricardo Teixeira venderem a dita para o Milan.
É isso aí, minha senhora, é o maior dano de um país, cujo imaginário social a respeito da lei e da ordem fica por conta de cada um. Só carece não descuidar, o resto vale tudo. Quando vi a foto do ex-ministro, ex-gente, ex-qualquer-coisa, codinome Palocci, debochando da gente depois de obviamente cometer mais uma das suas falcatruas, lembrei do verso do Chico, em "Acorda Amor", e pensei baixinho: "Socorro! Chame o ladrão! Chame o ladrão!"
Rosalva, muito mais inteligente do que eu, exceto no preparo de barreado, prato que aprendi no Sul, resolveu elaborar seu próprio estatuto legal. Ela sabe que estamos enfiados em uma modalidade de guerra caótica, onde não há a mínima divisão ética ente polícia e ladrão, entre governo ou não. Rosalva desconfia, como modus operandi da sua sobrevivência. Nem eu escapo: "Doutor me dê outra, essa sua nota de vinte tá esquisita".
Quando comentei o orgulho nacional durante a operação arrasa-favelado Alemão e semelhantes no Rio, ela atacou com toda a sua desconfiança: "Gostei mais do filme. Além disso, uma batalha daquelas sem um arranhão... A jogada foi outra: soltaram muita grana e os malandros se mandaram para outros cantões. Tem neguinho que está até nos Emirados".
E está certo. Quer ver sangue vai no açougue. Esta afro-brasileira não me respeita (ela vê muita novela, até aprendeu com Tony Ramos o italiano e 12 dialetos indianos). Ela tem certas restrições à filosofia, pregando abertamente o pragmatismo caboclo: "Enquanto o senhor está falando em puxadinho no aeroporto, eu estou batendo uma laje para hospedar torcedor na Copa. Sou mais o ?também quero? do que a falação".
Ela acha, em sua santa paranoia, que o atraso nas obras para a Copa no Brasil é de propósito. Tentei argumentar que seria a rígida incompetência imposta pelo partidão do governo, mas ela insistiu. "Deixa de ser bobo, doutor, por isso que o senhor trabalha até hoje, até alta horas". Calo a boca. "Na conversa todo mundo é bom", diz ela. "Veja os bonecos na TV antes das eleições. Todo mundo promete se transformar em saúde, segurança e educação - exatamente o que menos acontece".
Às vezes, surpreende-me com seu grau de complexidade crítica: "Essa história de empurrar os negros de graça para a universidade, que adianta? Quero para os meus meninos as vagas dos brancos, no pau a pau, não as inventadas. Se o senhor me pagar melhor eu passo eles".
Sempre sobra pra mim. É por isso que futebol é paixão, minha senhora. Por mais que roubem e inventem modas o torcedor tá sabendo quando um jogador é ruim de bola e foi traficado. É só dar o primeiro chute. O torcedor participa e entende do processo, por assim dizer. O jogador ruim, sai logo. Não precisa chegar a ministro;
Paulo Bonates - A Gazeta
É isso aí, minha senhora, é o maior dano de um país, cujo imaginário social a respeito da lei e da ordem fica por conta de cada um. Só carece não descuidar, o resto vale tudo. Quando vi a foto do ex-ministro, ex-gente, ex-qualquer-coisa, codinome Palocci, debochando da gente depois de obviamente cometer mais uma das suas falcatruas, lembrei do verso do Chico, em "Acorda Amor", e pensei baixinho: "Socorro! Chame o ladrão! Chame o ladrão!"
Rosalva, muito mais inteligente do que eu, exceto no preparo de barreado, prato que aprendi no Sul, resolveu elaborar seu próprio estatuto legal. Ela sabe que estamos enfiados em uma modalidade de guerra caótica, onde não há a mínima divisão ética ente polícia e ladrão, entre governo ou não. Rosalva desconfia, como modus operandi da sua sobrevivência. Nem eu escapo: "Doutor me dê outra, essa sua nota de vinte tá esquisita".
Quando comentei o orgulho nacional durante a operação arrasa-favelado Alemão e semelhantes no Rio, ela atacou com toda a sua desconfiança: "Gostei mais do filme. Além disso, uma batalha daquelas sem um arranhão... A jogada foi outra: soltaram muita grana e os malandros se mandaram para outros cantões. Tem neguinho que está até nos Emirados".
E está certo. Quer ver sangue vai no açougue. Esta afro-brasileira não me respeita (ela vê muita novela, até aprendeu com Tony Ramos o italiano e 12 dialetos indianos). Ela tem certas restrições à filosofia, pregando abertamente o pragmatismo caboclo: "Enquanto o senhor está falando em puxadinho no aeroporto, eu estou batendo uma laje para hospedar torcedor na Copa. Sou mais o ?também quero? do que a falação".
Ela acha, em sua santa paranoia, que o atraso nas obras para a Copa no Brasil é de propósito. Tentei argumentar que seria a rígida incompetência imposta pelo partidão do governo, mas ela insistiu. "Deixa de ser bobo, doutor, por isso que o senhor trabalha até hoje, até alta horas". Calo a boca. "Na conversa todo mundo é bom", diz ela. "Veja os bonecos na TV antes das eleições. Todo mundo promete se transformar em saúde, segurança e educação - exatamente o que menos acontece".
Às vezes, surpreende-me com seu grau de complexidade crítica: "Essa história de empurrar os negros de graça para a universidade, que adianta? Quero para os meus meninos as vagas dos brancos, no pau a pau, não as inventadas. Se o senhor me pagar melhor eu passo eles".
Sempre sobra pra mim. É por isso que futebol é paixão, minha senhora. Por mais que roubem e inventem modas o torcedor tá sabendo quando um jogador é ruim de bola e foi traficado. É só dar o primeiro chute. O torcedor participa e entende do processo, por assim dizer. O jogador ruim, sai logo. Não precisa chegar a ministro;
Paulo Bonates - A Gazeta
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