A Comissão da Verdade começa relativamente consensual, mas tem tudo para transformar-se em palco de intensa luta político-ideológica
Vem aí a Comissão da Verdade, produto do compromisso com alguma solução política que:
1) confirme a intenção governamental de dar satisfação sobre os fatos da ditadura (1964-1985); e
2) evite dissensos em grau que possam atrapalhar o governo. Aparentemente a coisa anda sob controle, delimitada pelas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a Anistia e pela amplitude da costura feita para o projeto passar no Congresso.
Aliás o relator no Senado foi do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira (SP). Ele próprio um exguerrilheiro da Ação Libertadora Nacional. E que depois migrou para o Partido Comunista Brasileiro, para a linha de luta de massas e frente ampla contra a ditadura.
Tudo parece estar controlado, mas a vida é mais complexa que os esquemas previamente definidos. E os fatos políticos uma vez nascidos ganham pernas. Passam a caminhar com certa autonomia. É o que acontecerá com a Comissão da Verdade.
Seus membros serão escolhidos com um olho na isenção, dizem. Impossível na prática.
Os mundinhos da política e da opinião pública costumam cultivar a ilusão do apartidarismo, das personalidades técnicas, das expressões suprapartidárias.
Dos entes moral e intelectualmente acima das diferenças que engolem os mortais comuns.
Engana-me que eu gosto.
Quando a roda começa a girar a conversa muda. Cada um assume seu lado e o bicho pega.
A Comissão da Verdade, concebida como foi e montada como será, vai carregar um imenso potencial publicitário. Será uma fonte caudalosa de pautas, de matéria-prima para o trabalho jornalístico fora do ramerrame da politiquinha.
E já lembrava o personagem vivido por Al Pacino no belo Advogado do Diabo: o pecado capital preferido pelo tinhoso é a vaidade. E a política sem vaidade ainda está por ser inventada.
Quem vai resistir à tentação de sobressair como justiceiro? É quase irresistível. Quem vai resistir a assumir o papel de certificador histórico? Será quase desumano pedir ao sujeito que recuse.
Esse segundo aspecto é menos discutido. Há no governo interesse em que a Comissão da Verdade produza uma nova história oficial do regime militar. Algo que venha como a palavra definitiva sobre aquele período.
Ainda que no longo prazo seja inútil, pois o destino das histórias oficiais é a desmoralização. Que vem quando o vento muda de lado e Forças antagonistas assumem o poder para produzir sua própria versão oficial dos acontecimentos passados.
Mas taticamente a coisa pode ter alguma utilidade, pois nas escolas militares e na caserna persiste a linha de que a intervenção das Forças Armadas em 1964 teve por objetivo defender a democracia contra um golpe comunista.
As Forças Armadas venceram a guerra contra as organizações guerrilheiras no plano propriamente militar, mas na guerra durante a paz, ou pós-guerra, não repetem o desempenho.
Os adversários derrotados no campo de batalha foram empurrados para a luta política institucional, onde tiveram sucesso. Os três últimos governos vieram comandados por personagens da resistência ao regime militar. Mas falta completar a obra no terreno ideológico-doutrinário. Obrigar os militares a aceitar a versão histórica dos adversários. Eis por que a Comissão da Verdade começa relativamente consensual mas tem tudo para se transformar em palco de intensa luta político-ideológica.
Porém o cenário para o governo não é tampouco todo cor de rosa. O texto permite escarafunchar também as violações aos direitos humanos cometidos pela resistência.
E aí a caserna leva alguma vantagem. Pois desde a transição de 1984-85 as Forças Armadas cuidam de coletar e sistematizar todas as informações sobre a atuação dos adversários naquela época.
Guerras só são bonitas nos maus livros de História. Ou na propaganda. Na vida real, quando há guerra todos perdem. Ganha quem perde menos. Mas todos os lados contabilizam vítimas.
Alon Feuerwerker
Vem aí a Comissão da Verdade, produto do compromisso com alguma solução política que:
1) confirme a intenção governamental de dar satisfação sobre os fatos da ditadura (1964-1985); e
2) evite dissensos em grau que possam atrapalhar o governo. Aparentemente a coisa anda sob controle, delimitada pelas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a Anistia e pela amplitude da costura feita para o projeto passar no Congresso.
Aliás o relator no Senado foi do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira (SP). Ele próprio um exguerrilheiro da Ação Libertadora Nacional. E que depois migrou para o Partido Comunista Brasileiro, para a linha de luta de massas e frente ampla contra a ditadura.
Tudo parece estar controlado, mas a vida é mais complexa que os esquemas previamente definidos. E os fatos políticos uma vez nascidos ganham pernas. Passam a caminhar com certa autonomia. É o que acontecerá com a Comissão da Verdade.
Seus membros serão escolhidos com um olho na isenção, dizem. Impossível na prática.
Os mundinhos da política e da opinião pública costumam cultivar a ilusão do apartidarismo, das personalidades técnicas, das expressões suprapartidárias.
Dos entes moral e intelectualmente acima das diferenças que engolem os mortais comuns.
Engana-me que eu gosto.
Quando a roda começa a girar a conversa muda. Cada um assume seu lado e o bicho pega.
A Comissão da Verdade, concebida como foi e montada como será, vai carregar um imenso potencial publicitário. Será uma fonte caudalosa de pautas, de matéria-prima para o trabalho jornalístico fora do ramerrame da politiquinha.
E já lembrava o personagem vivido por Al Pacino no belo Advogado do Diabo: o pecado capital preferido pelo tinhoso é a vaidade. E a política sem vaidade ainda está por ser inventada.
Quem vai resistir à tentação de sobressair como justiceiro? É quase irresistível. Quem vai resistir a assumir o papel de certificador histórico? Será quase desumano pedir ao sujeito que recuse.
Esse segundo aspecto é menos discutido. Há no governo interesse em que a Comissão da Verdade produza uma nova história oficial do regime militar. Algo que venha como a palavra definitiva sobre aquele período.
Ainda que no longo prazo seja inútil, pois o destino das histórias oficiais é a desmoralização. Que vem quando o vento muda de lado e Forças antagonistas assumem o poder para produzir sua própria versão oficial dos acontecimentos passados.
Mas taticamente a coisa pode ter alguma utilidade, pois nas escolas militares e na caserna persiste a linha de que a intervenção das Forças Armadas em 1964 teve por objetivo defender a democracia contra um golpe comunista.
As Forças Armadas venceram a guerra contra as organizações guerrilheiras no plano propriamente militar, mas na guerra durante a paz, ou pós-guerra, não repetem o desempenho.
Os adversários derrotados no campo de batalha foram empurrados para a luta política institucional, onde tiveram sucesso. Os três últimos governos vieram comandados por personagens da resistência ao regime militar. Mas falta completar a obra no terreno ideológico-doutrinário. Obrigar os militares a aceitar a versão histórica dos adversários. Eis por que a Comissão da Verdade começa relativamente consensual mas tem tudo para se transformar em palco de intensa luta político-ideológica.
Porém o cenário para o governo não é tampouco todo cor de rosa. O texto permite escarafunchar também as violações aos direitos humanos cometidos pela resistência.
E aí a caserna leva alguma vantagem. Pois desde a transição de 1984-85 as Forças Armadas cuidam de coletar e sistematizar todas as informações sobre a atuação dos adversários naquela época.
Guerras só são bonitas nos maus livros de História. Ou na propaganda. Na vida real, quando há guerra todos perdem. Ganha quem perde menos. Mas todos os lados contabilizam vítimas.
Alon Feuerwerker
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