Seria a mentira uma realidade da política brasileira? Sobretudo neste momento em que o governo de dona Dilma constitui uma Comissão da Verdade, mas um dos seus ministros - justo o do Trabalho, que é o apanágio do seu partido (o dos trabalhadores) - mente de modo claro, aberto, insofismável e - mais que isso - com uma verve e um nervo dignos de um astro de novela das oito?
Fiquei deveras assombrado por sua ousadia e desenvoltura de ator, quando - perante o Congresso - ele diz não conhecer o empresário com quem jantou, andou de avião e contemplou - com um olhar digno de um Anthony Hopkins - um pedaço de papel com o nome da questionada figura, numa simulação dramática que era maior prova de que mentia descaradamente.
Ou seja, para o governo é mais fácil resgatar o passado fabricado pelo autoritarismo do regime militar - um momento no qual opiniões conflitantes eram proibidas e que engendrou oposições à sua altura e igualmente fechadas, passando por alto pela Lei da Anistia - do que demitir um ministro mentiroso.
Continuamos a refazer o que não deveria ter sido feito e a não fazer o que o bom-senso exige que se faça.
Viver em sociedade demanda mentir. Como exige comer, confiar e beber - mas dentro de certos limites. Os americanos distinguem as "white lies" (mentiras brancas ou brandas) - falsidades sem maiores consequências - das mentiras sujeitas a sanções penais e éticas.
Pois, como todo mundo sabe, a América não mente. Ela está convencida - apesar de todas as bolhas e Bushes - que até hoje segue o exemplo de George Washington, seu primeiro presidente; um menino obviamente neurótico que nunca mentiu. Na América há todo um sistema jurídico que dá prêmios à verdade, muito embora, num lugar chamado Estados Unidos, minta-se à americana. Ou seja, com a certeza de que se diz a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade. E que Deus me ajude! Foi o que fez, entre outros, Bill Clinton quando negou ter tido sexo com a dragonarde Monica Lewinsky porque o que eles fizeram no Salão Oval não estava na Bíblia.
No Brasil não acreditamos ser possível existir sem mentir. Basta pensar no modo como fomos criados para entendermos a mentira como "boa educação" ou gentileza, pois como cumprir a norma de não discutir com os mais velhos sem enganar? Como não mentir quando a mulher amada chega do salão de beleza com o cabelo pintado de burro quando foge e pergunta: querido, o que é que você acha do meu novo penteado? Ou quando você confessa ao padre aquele pecado que você comete diariamente e dele se arrepende também cotidianamente só para a ele voltar com uma volúpia apenas compreendida pelo velho e bom catolicismo romano? Como não mentir diante do seu professor, um Burro Doutor, que diz que sabe tudo mas não conhece coisa alguma? Ou do amigo que escreve um livro de merda, mas acha que obrou coisa jamais lida? Ou para o netinho que questiona, intuindo Descartes: se existe presente, onde está Papai Noel?
Como não mentir se o governo mente todo o tempo, seja não realizando o que prometeu nas eleições, seja "blindando" os malfeitos inocentes dos seus aliados, seja dizendo que nada sabe ou tem a ver com o que o ocorre debaixo do seu nariz de Pinóquio?
Numa sociedade que teve escravos, entende-se a malandragem de um Pedro Malasartes como um modo legítimo de burlar senhores cruéis. Mas não se pode viver democraticamente aceitando, como tem ocorrido no lulopetismo, pessoas com o direito de mentir e roubar publicamente. Mentir para vender um tolete de merda como um passarinho raro ao coronelão que se pensa dono do mundo é coisa de "vingança social" à Pedro Malasartes.
No velho marxismo no qual eu fui formado, tratava-se de uma forma de "resistência" ao poder. Mas será que podemos chamar de "malfeitos" o terrorismo e o tráfico? Seria razoável aceitar a mentira como rotina da vida política nacional porque, afinal de contas, o "estado (e a tal governabilidade com suas alianças) tem razões que a sociedade não conhece" ou, pior que isso, que o nosso partido tem planos que tanto o Estado quanto a sociedade podem ser dispensados de conhecer?
No Brasil das éticas múltiplas (uma mentira e uma verdade para cada pessoa, situação, tempo e lugar), temos a cultura do segredo competindo ferozmente com a das inúmeras versões que, normalmente, só quem sabe a mais "verdadeira" é que conhece alguém mais próximo do poder. Entre nós, a verdade tem gradações e lembranças. No antigo Brasil do "você sabe com quem está falando?", dizia-se: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei! Hoje, nos vem à mente uma velha trova mineira: "Tu fingiste que me enganaste, eu fingi que te acreditei; foste tu que me enganaste ou fui eu que te enganei?".
Com a palavra, os eleitos e os nomeados
Roberto DaMatta - O Globo
Fiquei deveras assombrado por sua ousadia e desenvoltura de ator, quando - perante o Congresso - ele diz não conhecer o empresário com quem jantou, andou de avião e contemplou - com um olhar digno de um Anthony Hopkins - um pedaço de papel com o nome da questionada figura, numa simulação dramática que era maior prova de que mentia descaradamente.
Ou seja, para o governo é mais fácil resgatar o passado fabricado pelo autoritarismo do regime militar - um momento no qual opiniões conflitantes eram proibidas e que engendrou oposições à sua altura e igualmente fechadas, passando por alto pela Lei da Anistia - do que demitir um ministro mentiroso.
Continuamos a refazer o que não deveria ter sido feito e a não fazer o que o bom-senso exige que se faça.
Viver em sociedade demanda mentir. Como exige comer, confiar e beber - mas dentro de certos limites. Os americanos distinguem as "white lies" (mentiras brancas ou brandas) - falsidades sem maiores consequências - das mentiras sujeitas a sanções penais e éticas.
Pois, como todo mundo sabe, a América não mente. Ela está convencida - apesar de todas as bolhas e Bushes - que até hoje segue o exemplo de George Washington, seu primeiro presidente; um menino obviamente neurótico que nunca mentiu. Na América há todo um sistema jurídico que dá prêmios à verdade, muito embora, num lugar chamado Estados Unidos, minta-se à americana. Ou seja, com a certeza de que se diz a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade. E que Deus me ajude! Foi o que fez, entre outros, Bill Clinton quando negou ter tido sexo com a dragonarde Monica Lewinsky porque o que eles fizeram no Salão Oval não estava na Bíblia.
No Brasil não acreditamos ser possível existir sem mentir. Basta pensar no modo como fomos criados para entendermos a mentira como "boa educação" ou gentileza, pois como cumprir a norma de não discutir com os mais velhos sem enganar? Como não mentir quando a mulher amada chega do salão de beleza com o cabelo pintado de burro quando foge e pergunta: querido, o que é que você acha do meu novo penteado? Ou quando você confessa ao padre aquele pecado que você comete diariamente e dele se arrepende também cotidianamente só para a ele voltar com uma volúpia apenas compreendida pelo velho e bom catolicismo romano? Como não mentir diante do seu professor, um Burro Doutor, que diz que sabe tudo mas não conhece coisa alguma? Ou do amigo que escreve um livro de merda, mas acha que obrou coisa jamais lida? Ou para o netinho que questiona, intuindo Descartes: se existe presente, onde está Papai Noel?
Como não mentir se o governo mente todo o tempo, seja não realizando o que prometeu nas eleições, seja "blindando" os malfeitos inocentes dos seus aliados, seja dizendo que nada sabe ou tem a ver com o que o ocorre debaixo do seu nariz de Pinóquio?
Numa sociedade que teve escravos, entende-se a malandragem de um Pedro Malasartes como um modo legítimo de burlar senhores cruéis. Mas não se pode viver democraticamente aceitando, como tem ocorrido no lulopetismo, pessoas com o direito de mentir e roubar publicamente. Mentir para vender um tolete de merda como um passarinho raro ao coronelão que se pensa dono do mundo é coisa de "vingança social" à Pedro Malasartes.
No velho marxismo no qual eu fui formado, tratava-se de uma forma de "resistência" ao poder. Mas será que podemos chamar de "malfeitos" o terrorismo e o tráfico? Seria razoável aceitar a mentira como rotina da vida política nacional porque, afinal de contas, o "estado (e a tal governabilidade com suas alianças) tem razões que a sociedade não conhece" ou, pior que isso, que o nosso partido tem planos que tanto o Estado quanto a sociedade podem ser dispensados de conhecer?
No Brasil das éticas múltiplas (uma mentira e uma verdade para cada pessoa, situação, tempo e lugar), temos a cultura do segredo competindo ferozmente com a das inúmeras versões que, normalmente, só quem sabe a mais "verdadeira" é que conhece alguém mais próximo do poder. Entre nós, a verdade tem gradações e lembranças. No antigo Brasil do "você sabe com quem está falando?", dizia-se: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei! Hoje, nos vem à mente uma velha trova mineira: "Tu fingiste que me enganaste, eu fingi que te acreditei; foste tu que me enganaste ou fui eu que te enganei?".
Com a palavra, os eleitos e os nomeados
Roberto DaMatta - O Globo
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