Mostrando postagens com marcador historias de um médico do interior. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador historias de um médico do interior. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 23 de março de 2011

A MATRIARCA.( By Marco Sobreira )

Uma belíssima lua cheia clareava minha pequena cidade numa madrugada do outono de 1987, o céu é muito mais bonito no interior. Ouvi ao longe a zoada de um carro e logo imaginei que a julgar pelo adiantado das horas, alguém viria bater à minha porta.

-Boa noite Dr Marco,
-Boa noite, respondi ao jovem que acabara de estacionar uma velha Kombi em frente à minha casa,
-Minha avó está muito mal e vim para ver se o Sr poderia ir vê-la,
-Onde mora? Indaguei,
-Lá no alto da serra do bebedouro, o carro só vai até em baixo, temos que subir a cavalo, mas não se preocupe, tenho dois animais mansos nos esperando e depois trago o Sr de volta, não se preocupe,

Enquanto preparava minha maleta de primeiros-socorros, procurei me informar o que estava acontecendo, até para saber quais medicamentos levaria.
-Ela está com muita falta de ar e o pessoal está achando que não amanhece o dia.
Pensei comigo, nada animador.
Maleta preparada, aparelho de pressão, seringas, medicamentos, entrei na Kombi e um pensamento me veio à mente, seja o que Deus quiser.

No caminho fiquei sabendo que Dona Agostinha tinha 75 anos, descendente de italianos, era a matriarca de uma grande família, tinha um gênio forte e não gostava de médicos. Estrada de chão, após uns 30 minutos de solavancos chegamos ao fim da estrada, pude então avistar os dois animais selados nos esperando, vigiados por um menino que ficou ali tomando conta da nossa condução.

-Dr, vá na mula que é mansinha, já andou alguma vez a cavalo?
-Claro que sim, vamos logo, pelo que você me relatou não podemos perder tempo, disse me acomodando na sela do animal.
Assim o fizemos e vinte minutos depois, após passarmos no meio de uma pequena mata, chegamos a um descampado e pude ver ao longe uma casa deixando passar pelas janelas pequena quantidade de luz que imaginei ser de lampiões.
Ao nos aproximar, cachorrada latindo, quebrando o silêncio da madrugada, o luar me permitiu observar melhor a casa, tratava-se de uma construção típica de nosso interior, esteios, barrotes e escada de madeira dava para uma pequena varanda, uma fumaça branca saía do chaminé denunciando que o fogão a lenha estava aceso.

Dez a quinze pessoas estavam conversando do lado de fora, “fazendo o termo” como se diz por aqui, ou seja, esperando a morte da velha matriarca. Depois dos cumprimentos de praxe, apressei-me em entrar e fui direto ao quarto. Tenho esta cena na memória como se fosse o ocorrido, ontem, Recostada numa velha cama de madeira, cercada de mulheres que a abanavam, estava a Dona Agostinha, pequena, magra, cabelos brancos como neve, me olhou com um pedido de socorro impossível de esquecer. Faltava-lhe o ar, o peito arfava, a pele acinzentada denotava sofrimento, um fio de secreção lhe escapava pelo canto da boca.

Numa pequena inspeção notei as pernas inchadas e o abdômen ligeiramente volumoso, as veias do pescoço pareciam querer explodir. Percebi de imediato que a minha paciente estava à beira de um edema agudo de pulmão.
Afastei as mulheres, mandei abrir todas as janelas e portas, sentei a paciente, mandei dobrar bem as pernas na tentativa de diminuir o volume circulante, constatei que a pressão arterial estava 220x130, uma ausculta confirmou minhas suspeitas, o coração acelerado, batia de forma irregular e o pulmão encharcado confirmava minhas suspeitas, o caso era grave.

Puncionei sem dificuldades uma veia, apliquei o que tinha disponível, três ampolas de lasix, cedilanide, aminofilina diluída em água destilada lentamente, observando o ritmo do coração e pedindo a Deus para que uma arritmia mais grave não ocorresse. Após uns quinze minutos começou a respirar um pouco melhor, a pressão arterial tinha começado a diminuir, o pulmão já expandia melhor, fiquei esperançoso.

Durante duas horas estive com ela, mais duas ampolas de lasix e uma de cedilanide foram necessários e finalmente com a pressão em 160x100, ainda um pouco cansada, cor mais rosada demonstrando boa oxigenação, chamei a filha mais velha pedi que reunisse a família que eu iria conversar com todos.
Juntaram-se na sala, alegres, e lhes falei,

-Apesar de Dona Agostinha apresentar uma melhora, o caso é grave, ela tem uma insuficiência cardíaca descompensada e com a crise hipertensiva desenvolveu um edema agudo de pulmão, seguramente se chegássemos um pouco mais tarde ela teria falecido, esteve realmente muito perto da morte. Tudo que podia fazer aqui já foi feito, portanto vou deixar uma receita, se ela permanecer bem volto amanhã para vê-la, mas se voltar a piorar, mesmo contra sua vontade, levem-na para a Santa Casa de Cachoeiro.
Abraços agradecidos, café quente com broa de milho, me despedi. Dia clareando, brisa da manhã no rosto, feliz da vida.

Dona Agostinha foi minha paciente por mais seis anos, neste período tive que voltar algumas vezes, faleceu de edema agudo de pulmão num dia que ao chegar encontrei-a morta, nunca quis ir ao hospital, como me disse por diversas vezes, queria morrer eu sua cama cercada dos filhos, netos e bisnetos. Tornei-me amigo e medico de toda família, sempre que vejo quadro semelhante, sua imagem me vem à lembrança.

quarta-feira, 2 de março de 2011

DOUTOR, FOI A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ...

Setembro de 1976, ao chegar para meu primeiro dia de trabalho, constatei desolado que na Unidade Sanitária de Atílio Vivácqua – ES não tinha praticamente nada. Um consultório, secretaria, gabinete odontológico, pequena farmácia que também servia de depósito, banheiro, cômodo com uma grande pia que servia de cozinha e um corredor, essa seria a unidade de saúde que trabalharia por longos anos. De equipamentos mesmo, um aparelho de pressão, otoscópio, balanças de adultos e de crianças, um estojo com material para pequenas cirurgias, uma estufa e uma geladeira no corredor. No consultório uma mesa de ferro com 3 gavetas, duas cadeiras, armário de vidro e uma maca.


Após as boas vindas das três funcionárias e do colega dentista, um cafezinho completou a recepção. Sentei no consultório, respirei fundo e um pensamento me invadiu; “O que vim fazer aqui?” Confesso que tive vontade de ir embora, mas a varanda já lotada de pacientes impediu qualquer possibilidade de desistir.

Após atender todos os pacientes fui fazer um levantamento mais detalhado dos recursos a minha disposição, revirar o depósito e procurar o que mais poderia me ser útil. Não tinha laboratório, isso me obrigou a clinicar sem exames, a não ser que o paciente se dispusesse a viajar até Cachoeiro de Itapemirim a 30 km de distância, em uma péssima estrada sem asfalto, o que na prática significava que um simples hemograma (exame de sangue básico) levaria uma semana, nada promissor.

Para minha surpresa descobri entre um amontoado de caixas, um microscópio bi-ocular novinho, nunca usado, fui tomado de grande alegria pois pelo menos exames de fezes e de escarro para pesquisa do bacilo da tuberculose ( na verdade o motivo do microscópio) poderíamos realizar. Solicitei e fui atendido na contratação de um técnico que me foi muito útil. Transformamos a improvisada cozinha num pequeno laboratório que na verdade dentro de muito pouco tempo só serviria para a busca da tuberculose.

Mais animado, já tinha providenciado minha mudança para a cidade, via aumentar todos os dias o número de pacientes e resolvi fazer uma campanha para realização de grande quantidade de exame de fezes, principalmente na população rural, pois a grande quantidade de crianças “barrigudas” , anêmicas , desnutridas e com diarréias freqüentes me preocupava, daí a vontade de descobrir as verminoses mais conhecidas no Município. Convenci o técnico a me acompanhar nesse mutirão e comecei a pedir os exames, principalmente da turma do interior..

Foi assim que atendi o Sr. Argemiro, trabalhador da lavoura de café, pai de sete filhos entre um e doze anos. Morador de um alto de serra, usava água de nascente e tinha vindo pedir um lumbrigueiro para as crianças , o que repetia todos os anos, um hábito muito comum no interior do Brasil. Pacientemente expliquei a necessidade de fazer o exame das crianças , o que foi aceito com alguma dificuldade pelo lavrador. Na época não dispúnhamos ainda de potes plásticos para a coleta e ficava a cargo da criatividade de cada um, o recipiente para acondicionar as fezes.

Passado alguns dias, chegando para o trabalho encontro o Sr. Argemiro à minha espera , e antes mesmo que entrasse na Unidade se dirigiu a mim,

Bom dia doutor, trouxe o que o senhor me pediu, mas foi a primeira e última vez que faço exame de fezes naquela molecada, o senhor não imagina o trabalhão que deu pra fazer aqueles pestinhas “cagar” nessa lata.


Não segurei um ataque de risos ao ver uma lata de banha de uns dois litros lotada com as fezes de toda a família!!!

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

AMIGOS DA LUA (By Marco Sobreira)

Depois de 4 anos sem médico a população de Atílio Vivácqua, pequeno Município do sul do Espírito Santo, estava feliz com a minha chegada. Aos 26 anos, iniciando minha vida profissional, aceitei o desafio de morar no cidade e prestar atendimento por 24 horas o que acabou por criar um profundo laço de amizade entre nós, mas que entre outros desgastes, me deixou por 14 anos sem férias, já que não tinha outro colega que pudesse suprir a minha ausência.


Como a vida não é só trabalho, apesar de não ter dia nem hora atender, procurei achar meios de me divertir. Assim fui jogador de futebol, presidente de time, técnico de escolinha de futebol, carnavalesco, participante de blocos e baterias, dançador de forró, operador de radio amador, enfim tudo que se pode fazer de lazer sem abandonar a cidade. De tudo na verdade o que gostava mais era de uma boa seresta, juntamos uns boêmios e criamos os “amigos da lua”, Milinho no bandolin, Zé Barros no violão e voz, Gilson Alumínio na percussão, eu, dr Joel e Elço Tolete formávamos o trio de cantores do grupo.

De vez em quando, sempre às sextas-feiras nos reuníamos em algum boteco para mais uma noitada musical, sempre rolava umas cervejinhas e cachacinhas, não tínhamos públicos e cantávamos para nós mesmo, na verdade rolava mais um papo gostoso, histórias e causos do dia-a-dia, o que tornava ainda mais gostoso a nossa reunião. Um médico, um advogado, dois fiscais da receita estadual, um consertador de eletrodomésticos e um funcionário dos correios, fazia nosso grupo bem heterogêneo e divertido. Zé Barros gostava de tomar umas pingas fora do horário de serviço o que lhe custava constantes broncas de Dª Marina sua esposa, uma bonita e distinta morena que não se conformava com as bebedeiras do marido, principalmente quando chegava tarde por conta da seresta.

Exímio violeiro, quanto mais bebia melhor tocava, só que chegava a um certo ponto a única música que conseguia cantar era “Marina, morena Marina você me deixou...” Pronto, daí em diante não tinha jeito, tínhamos que encerrar a noitada porque nosso amigo insistia em cantar e chorar “Marina (soluços), morena Marina (soluços), caía em prantos e era hora de levá-lo para casa onde teria que enfrentar a verdadeira Marina.

Numa sexta-feira fria do mês de maio, eu estava acabando de atender os meus pacientes da tarde quando chegou o recado;

-Dr. Marco, o Gilson Alumínio mandou avisar que hoje tem seresta no boteco do Tim , é para o Senhor ir porque ganharam um gambá e a Mãezinha vai prepará-lo como tira-gosto. (Naquela época ainda não estava proibido o consumo desse tipo de animal)

Lá pelas 9 horas da noite, todos presentes, descobrimos que no boteco não tinha cerveja, a única bebida disponível era a cachaça Triunfo (péssima por sinal). Reclamação geral, broncas no Tim, resolvemos decidir por maioria se faríamos ou não a seresta, votei pelo não, fui voto vencido, a turma achou que não poderíamos perder o gambá.

Entre Nelson Gonçalves, Ataulfo Alves, Pixinguinha, Orlando Silva, Miltinho, cachaça Triunfo , tira-gosto delicioso, pessoal animado, garganta afiada, o tempo passou rápido e lá pelas 2 horas da madrugada, de repente o Zé Barros grita;

-Quero cantar Marina.

Pronto, sabíamos que estava na hora de parar, já que nosso amigo tinha atingido aquele ponto sem volta. Nova confusão, ninguém queria ter o privilégio de levar o Zé Barros para casa, sem acordo resolvemos disputar nos palitinhos (porrinha) quem seria o premiado. Dessa vez a sorte não me sorriu e sob gargalhadas dos amigos me preparei para cumprir a espinhosa missão. Estava num ferro tão grande que para fazê-lo entrar no carro já deu um trabalhão danado.

Chegamos, morava num sobrado, ao abrir a porta me deparei com uma íngreme escada de madeira de mais ou menos uns 20 degraus que terminava numa grande porta, o que me pareceu no momento as escadarias da Penha no Rio de Janeiro. Lá fomos nós, Zé Barros subia um degrau e descia dois, o jeito foi colocá-lo de quatro e subir engatinhando, naturalmente eu empurrando por trás. Quando finalmente chegamos no penúltimo degrau a porta se abriu e apareceu Dona Marina, cara de poucos amigos, foi curta e grossa;

-Muito bonito, esse aí eu sei que não tem mais vergonha mesmo, mas até o Senhor Dr. Marco!!!

Dei uma desculpa esfarrapada, desci as escadas a mil e fiz uma jura de que nunca mais passaria por outro sermão daquele, mas por muito tempo fui alvo da gozação do próprio Zé Barros e dos companheiros dos “Amigos da Lua”.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

MOISÉS PÉ DO DIABO.

Ninguém sabia ao certo de onde veio, cabelos grisalhos, face arredondada, vermelha, bigode mal aparado, baixo, obeso, pés chatos com dois imensos joanetes, esse era o Moisés pé do diabo. Falante, simpático, alugou um pequeno quarto nos fundos do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, fazia pequenos mandados e tornou-se rapidamente uma figura popular na cidade.

Ateu, não bebia, não fumava, mas tinha na música sua grande paixão, só que por mais que se insistisse, não tinha jeito, só sabia cantar “Lá vem a noiva...”Adotou a cidade e todos o adotaram.

No dia de Santo Antonio em junho era a festa da cidade e, um dos pontos altos das festividades o show de calouros , de tanto insistirem o Moisés se inscreveu, o que despertou grande curiosidade em todos nós.

Dia do show, lá fomos nós assistir e torcer pelo nosso amigo cantor de uma música só. Após vários candidatos, o locutor empolgado anunciou: - E agora, estreando em nosso show, temos a satisfação de anunciar a grande novidade da noite, com vocês “MOISÉS PÉ DO DIABO. Aplausos e expectativa na platéia. Entrou, ainda tímido, calça jeans desbotada, paletó acinzentado por cima de uma camisa amarela, gravata azul e sandálias de dedo, já que seus joanetes o impediam de calçar sapatos. Moisés era a figura mais excêntrica que a cidade vira;

-Vai cantar o que? Provocou o apresentador,
-Lá vem a noiva, respondeu para delírio da platéia.

Cantou, sua face irradiava felicidade que logo se transformou em profunda tristeza ao não se ver classificado entre os cinco melhores calouros.

A partir daí, todos os anos a cena se repetia, mesmo show, mesma música, esperança e decepção, passava dias deprimido, tinha naquela obsessão um propósito de vida, por mais que não entendêssemos , vai lá saber as razões da alma?

Foi então que aconteceu uma tremenda confusão, resolvemos dar uma forcinha pro Moisés no próximo show de calouros. Dr. João, advogado, foi chamado para presidir o júri, os outros jurados eram todos amigos e cúmplices do plano, com exceção do Tonico, encrenqueiro, metido a conhecedor de música, politicamente corretíssimo, ou seja, um chato. A idéia era fazer do Moisés o grande campeão e tivesse a sua noite de glória. Lá estavam os mesmos calouros de sempre, entre eles o nosso amigo, todos em busca do cobiçado prêmio, um pequeno troféu de latão com a inscrição “Campeão do show de calouros de 1985”

Tudo correu exatamente igual aos outros anos, a diferença foi no resultado, o locutor foi anunciando os classificados, 5º lugar, 4º lugar, Moisés nervoso, suava ansioso, e veio a grande noticia;
-Em primeiro lugar, com nota máxima, 10 de todos os jurados, Moisés pé do diabo.
Delírio total, vaias , aplausos, nosso campeão pulava de alegria numa felicidade total, foi quando o Tonico pegou o microfone e gritou;
-Parem, parem tudo, tem alguma coisa errada, como pode ter nota máxima se a minha foi zero!!!
Confusão total, protestos, desentendimentos, disse me disse, dissolveram o júri e resolveram tomar o prêmio  do Moisés, só que aproveitando a confusão, ele tinha se mandado, ninguém tiraria dele o sonhado troféu.

Nunca mais Dr. João e seus jurados foram chamados para o show de calouros, quanto ao nosso amigo, ficou feliz por muito tempo e um dia, assim como chegou, desapareceu e nunca mais ouvimos falar de Moisés pé do diabo.

Quatro a cinco anos depois recebo uma carta com carimbo de Itabuna na Bahia e sem remetente no envelope. Transcrevo para vocês:

Prezado Dr. Marco

Espero que o Senhor esteja bem e com saúde, lembrei de te escrever para agradecer o carinho que sempre teve com a minha pessoa, desculpe se saí sem me despedir, é o meu jeito, detesto despedidas.
O motivo desta é para matar uma curiosidade que o Senhor sempre teve e nunca lhe contei. Sabe meu caro doutor, eu sou torneiro mecânico, tinha uma bom emprego, ia casar, fui abandonado pela minha noiva às vésperas do meu casamento, fiquei tão traumatizado que abandonei tudo e saí por aí, cidade em cidade, levando a vida, e a música que resume a minha vida é a que canto insistentemente, como se fosse um consolo para a minha alma, jamais casei, jamais voltei a amar alguém, encontro a paz fazendo amigos por onde passo, hoje estou em Itabuna, amanhã só Deus sabe.
Obrigado por tudo e dê um grande abraço nos meus amigos,

Moisés.