Mais de 700 documentos militares confidenciais oferecem novos e detalhados relatos dos homens que cumpriram pena na prisão da Baía de Guantánamo, em Cuba, além de também fornecerem uma nova visão sobre as provas contra os 172 homens que continuam presos no local.
Oficiais de inteligência militar, em avaliações dos detidos escritas entre fevereiro de 2002 e janeiro de 2009, avaliaram as suas histórias e revelaram vislumbres das tensões entre captores e cativos. O que começou como um experimento improvisado após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 agora parece uma instituição americana permanente e os arquivos vazados mostram o porquê, revelando as provas contraditórias e desconexas que em muitos casos nunca chegaram a um tribunal penal ou militar.
Preso em Guantánamo se prepara para orações dentro da prisão da base militar americana em Cuba
Os documentos detalham meticulosamente os "bens de bolso" que dos detentos tinham consigo quando foram capturados: uma passagem de ônibus de Cabul, um passaporte falso, uma identificação de aluno forjada, um recibo de restaurante e até mesmo um poema. Eles listam as doenças dos presos – hepatite, gota, tuberculose, depressão. E observam seus interrogatórios em série, enumerando – mesmo depois de seis ou mais anos de incessante questionamento – "áreas de possível exploração". Além disso, descrevem as infrações dos presos – a agressão contra guardas, a destruição de chuveiros, a gritaria nos pavilhões. E, conforme os analistas tentavam reforçar o processo de encarceramento, foi registrado um número imenso de comentários que os detentos faziam uns sobre os outros.
Os documentos secretos, postos à disposição do New York Times e de várias outras organizações de notícias, revelam que a maioria dos 172 presos restantes foi classificada como de "alto risco", ao constituir uma ameaça para os Estados Unidos e seus aliados caso libertados sem uma reabilitação adequada e supervisão. Mas eles também mostram que um número ainda maior de prisioneiros que deixaram a base em Cuba – cerca de um terço dos 600 já transferidos para outros países – também foram designados como sendo de "alto risco" antes de serem libertados ou transferidos para a custódia de outros governos.
Os documentos não mencionam o uso das táticas duras de interrogatório em Guantánamo – incluindo a privação do sono, prisão em posições de stress e exposição prolongada ao frio – que atraiu a condenação global. Vários presos, no entanto, são retratados como tendo inventado histórias falsas sobre terem sido submetidos a abusos.
As alegações básicas do governo contra muitos dos detidos foram a público há muito tempo e têm sido constantemente contestadas pelos prisioneiros e seus advogados. Mas os processos, elaborados sob a administração Bush, oferecem uma visão mais profunda da assustadora - e falha - inteligência que persuadiu o governo Obama também de que a prisão não pode ser facilmente fechada.
Os presos que preocupam especialmente as autoridades antiterroristas incluem alguns acusados de serem assassinos da Al-Qaeda, agentes para uma missão suicida cancelada e os detentos que juraram aos seus interrogadores que iriam se vingar contra os Estados Unidos.
Os arquivos militares fornecem novos detalhes sobre o mais famoso de seus prisioneiros, Khalid Sheikh Mohammed, que teria planejado os ataques do 11 de setembro de 2001. Por volta de março de 2002, ele ordenou um ex-morador de Baltimore a vestir um colete-bomba e realizar um ataque "martírio" contra Pervez Musharraf, então presidente do Paquistão, de acordo com os documentos. Mas quando o homem, Majid Khan, chegou à mesquita paquistanesa onde foi informado que encontraria Musharraf, a missão se mostrou apenas um teste de sua "vontade de morrer pela causa".
Prisão de inocentes
Os processos também mostram que a espionagem em zonas de guerra levou à prisão de inocentes durante anos em casos de confusão de identidade ou simples infortúnio. Em maio de 2003, por exemplo, as forças afegãs capturaram o prisioneiro 1051, um afegão chamado Sharbat, perto do local da explosão de uma bomba, como mostram os documentos. Ele negou qualquer envolvimento, dizendo que era um pastor.
Investigadores de Guantánamo e analistas concordaram, citando sua história consistente, seu conhecimento de animais de pastoreio e sua ignorância de "simples conceitos militares e políticos", segundo sua avaliação. No entanto, um tribunal militar o declarou um "combatente inimigo" e ele não foi mandado para casa até 2006.
Oficiais do governo Obama condenaram a publicação dos documentos confidenciaisi, que foram obtidos pelo website WikiLeaks no ano passado, mas foram entregues ao New York Times por outra fonte. Os oficiais indicaram que uma força-tarefa do governo instituída em janeiro de 2009 analisou as informações nas avaliações dos prisioneiro e, em alguns casos, chegou a conclusões diferentes. Assim, eles disseram, os documentos publicados pelo New York Times não representa a visão do governo atual sobre os detidos em Guantánamo.
Veja algumas das descobertas nos arquivos:
- O 20º sequestrador: O caso mais bem documentado de um interrogatório violento em Guantánamo foram os questionamentos coercitivos de Mohammed Al-Qahtani realizados no final de 2002 e início de 2003. O saudita, que se acredita ter participado dos atentados do 11 de Setembro, foi amarrado como um cão, sexualmente humilhado e obrigado a urinar em si mesmo. Seu arquivo diz: "Embora os registros divulgados publicamente aleguem que o sujeito tenha sido submtido a duras técnicas de interrogatório na fase inicial de detenção", suas confissões "parecem ser verdadeiras e são corroboradas em relatórios de outras fontes". Mas alegações que ele supostamente fez contra pelo menos outros 16 outros prisioneiros - sendo a maioria em abril e maio de 2003 - são citados em seus arquivos, sem qualquer ressalva.
- Ameaças contra captores: Enquanto alguns detentos são descritos nos documentos como "compatíveis com a maioria e raramente hostis à guarda e equipe da prisão", outros falavam de violência. Um dos presos disse que "ele gostaria de dizer aos seus amigos no Iraque para encontrar o interrogador, fatiá-lo e fazer uma shawarma (um tipo de sanduíche) com sua carne, com a cabeça do interrogador saindo da ponta da shawarma". Outro "ameaçou matar um membro do serviço dos Estados Unidos decepando sua cabeça e suas mãos quando saisse da prisão" e informou um guarda que "iria matá-lo e beber seu sangue no almoço. O preso também afirmou que iria jogar aviões em casas americanas e que rezava para que o presidente Bush morresse”.
- O papel de oficiais estrangeiros: os documentos que vazaram mostram como muitos países estrangeiros enviaram oficiais de inteligência para interrogar os detentos de Guantánamo – entre eles China, Rússia, Tajiquistão, Iêmen, Arábia Saudita, Jordânia, Kuwait, Argélia e Tunísia. Uma dessas visitas mudou os relatos de um detento: um prisioneiros saudita inicialmente disse a interrogadores dos Estados Unidos que tinha viajado ao Afeganistão para ser treinado em um campo de treinamento terrorista líbio. Mas um analista acrescentou: "O preso mudou sua história para um relato menor incriminador depois de a delegação saudita falar com ele”.
- A reputação de um líder da Al-Qaeda: o arquivo sobre Abd Al-Rahim Al-Nashiri, que foi acusado perante uma comissão militar na semana passada por armar o bombardeio do USS Cole em 2000, afirma que ele era "mais importante" na Al-Qaeda do que Khalid Sheikh Mohammed e o descreve como "tão dedicado à jihad que teria recebido injeções para promover a impotência, além de ter recomendado a injeção aos outros para que mais tempo pudesse ser passado na jihad (em vez de serem distraídos por mulheres)”.
- A má sorte dos iemenitas: os arquivos sobre dezenas dos prisioneiros restantes os retratam como soldados de baixo escalão que viajaram do Iêmen para o Afeganistão antes do 11 de Setembro para receber treinamento militar básico e lutar na guerra civil, e não como terroristas mundiais. Muitos presos na mesma situação foram mandados para casa há muitos anos, segundo os arquivos, mas os iemenitas continuam em Guantánamo por causa de preocupações sobre a estabilidade de seu país e sua capacidade de controlá-los.
- Informações duvidosas: algumas avaliações revelam o risco de confiar em informações fornecidas por pessoas cujas motivações eram obscuras. Hajji Jalil, um afegão que na época tinha 33 anos de idade, foi capturado em julho de 2003, depois que o chefe de inteligência afegãos na província de Helmand disse que Jalil tinha participado "ativamente" em uma emboscada que matou dois soldados americanos. Mas autoridades dos Estados Unidos, citando "circunstâncias fraudulentas", afirmaram depois que o chefe de inteligência e outros haviam participado da emboscada e que tinham "usado" Jalil para “acobertar a seu próprio envolvimento". Ele foi enviado para casa em março de 2005.
- Um agente britânico: um relato revela que oficiais americanos descobriram que um preso havia sido recrutado pela inteligência britânica e canadense para trabalhar como agente duplo por causa de sua “conexão com membros de várias facções”. Mas o relatório sugere que ele nunca mudou sua lealdade militante. Segundo o arquivo, a CIA, após diversos interrogatórios, concluiu que ele "ocultou informações importantes" dos britânicos e canadenses, e o avaliou como "uma ameaça" para os Estados Unidos e seus aliados no Afeganistão e no Paquistão. Ele já foi enviado de volta ao seu país.
- O interrogatório do jornalista: os documentos mostram que um dos principais motivos pelos quais o cinegrafista sudanês da Al-Jazeera, Sami Al-Hajj, foi detido em Guantánamo por seis anos foi para o questionamento sobre “o programa de treinamento da rede de televisão, seus equipamentos de telecomunicações e suas operações de coleta de notícias na Chechênia, no Kosovo e no Afeganistão", incluindo contatos com grupos terroristas. Enquanto Hajj insistia ser apenas um jornalista, seu arquivo diz que ele ajudou extremistas islâmico com dinheiro para a obtenção de mísseis Stinger e cita a alegação dos Emirados Árabes Unidos de que ele era membro da Al-Qaeda. Ele foi libertado em 2008 e voltou a trabalhar para a Al-Jazeera.
- Os primeiros a sair: os documentos revelam o primeiro olhar público aos relatórios militares de 158 detentos que não receberam uma audiência formal sob o abrigo de um regime instituído em 2004. Muitos foram avaliados como "de pouco valor de inteligência", sem laços ou conhecimento significativo sobre a Al-Qaida ou os Talebans, como foi o caso de um detento que era vendedor de carros usados no Afeganistão. Mas entre os primeiros libertados também estava um paquistanês que se tornou um homem bomba três anos depois.
Vazamento
Muitos dos dossiês incluem fotos oficiais dos detidos, dando rosto a centenas de prisioneiros que não são vistos publicamente há anos. Os arquivos - classificados como "confidenciais" e “noforn", significando que eles não devem ser compartilhados com governos estrangeiros – representam a quarta maior coleção de documentos secretos americanos que se tornaram públicos durante o ano passado; versões anteriores incluíam relatórios de incidentes militares sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque. Os promotores militares acusaram um analista de inteligência do Exército, o soldado Bradley Manning, pelo vazamento do material.
As avaliações de Guantánamo não parecem propensas a acabar com o longo debate sobre a prisão mais controversa da América. Mesmo assim, os documentos podem fornecer provas a todo tipo de posição política, oferecendo argumentos tanto a quem acredita no perigo relativo que os detentos representam quanto a quem quer entender se o sistema do governo de manter a maioria sem julgamento é justificável.
Grande parte da informação contida nos documentos é impossível de ser verificada. Os documentos foram preparados por oficiais de inteligência e militares que operavam principalmente sob a névoa da guerra e, com o passar dos anos, em uma prisão sob críticas internacionais. Em alguns casos, os juízes rejeitaram as alegações do governo, porque as confissões foram feitas durante interrogatórios violentos ou outras fontes não eram confiáveis.
Em 2009, uma força-tarefa de oficiais de agências de segurança nacionais reavaliou todos os 240 presos restantes. Eles vetaram avaliações dos militares que faziam uso de informações obtidas por outras agências e abandonaram a classificação "alto / médio / baixo" sobre o teor de risco, em favor de um olhar mais cheio de nuances de como cada detento pode agir caso seja libertado, de acordo com sua família e ambiente nacional específicos. Mas essas avaliações mais recentes ainda são secretas e não estão disponíveis para comparação. Além disso, o arquivo vazado não está completo e não contém avaliações de cerca de 75 dos detidos.
Mas apesar de todas as limitações dos arquivos, eles ainda oferecem uma visão extraordinária de uma prisão conhecida por sua confidencialidade e pela disputa entre os militares que a coordenam – usando vigilância constante, remoção forçada de celas e outras ferramentas para exercer controle – e os presos que muitas vezes lutaram com as limitadas ferramentas que possuem: greves de fome, ameaças de retaliação e grande quantidade de contrabando, que vai desde um parafuso de metal a restos de comida.
Muitos relatos afirmam que presos foram disciplinados pelo "uso inadequado de fluidos corporais", como alguns arquivos delicadamente colocam – outros mais diretos afirmam que os presos comumente jogam urina e fezes nos guardas.
Governo Obama
Nenhum novo prisioneiro foi transferido para Guantánamo desde 2007. Alguns republicanos estão incitando o governo Obama a enviar os suspeitos de terrorismo capturados recentemente para a prisão, mas até agora as autoridades se recusaram a aumentar a população carcerária. Como resultado, Guantánamo parece cada vez mais congelada no tempo, com prisioneiros trancados nos papéis que mantinham quando foram capturados.
Por exemplo, uma avaliação de um ex-oficial de alto escalão do Taleban afirma que "ele parece estar ressentido por ter sido preso enquanto trabalhava para os Estados Unidos e as forças da coalizão para encontrar o mulá Omar", uma referência ao mulá Muhammad Omar, chefe do Taleban que está se escondendo.
Mas seja qual for a verdade sobre o papel do detento, antes de sua captura em 2002, ela está no passado. Presumivelmente, esse também é o valor de todas as informações que ele possui. Ainda assim, seus carcereiros continuam a pressioná-lo para obter respostas. Sua avaliação de janeiro de 2008 – seis anos depois de ele chegar em Cuba – sustentava que valia a pena continuar a interrogá-lo, em parte porque ele poderia saber sobre o possível paradeiro do mulá Muhammad Omar".
Fonte: Charlie Savage, William Glaberson e Andrew W. Lehren, The New York Times
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