Três cães farejadores da Força Nacional de Segurança descansam num canil em Tabatinga, na Amazônia brasileira ─ que se limita por terra com a cidade colombiana de Letícia e é separada do Peru por um rio ─ enquanto dezenas de carros e caminhões ultrapassam a fronteira livres de vigilância. Sobre as águas turvas do Solimões, uma lancha da Receita Federal avaliada em 4 milhões de reais enferruja estacionada desde 2008. Mais de cem toras de madeira clandestina flutuam à espera de um navio cargueiro que as levará para os Estados Unidos. Um dos afluentes do extenso Solimões alcança Marechal Thaumaturgo, no Acre, onde um agente da Polícia Federal lamenta a falta de um farolete no mesmo instante em que incontáveis canoas peruanas motorizadas esquentam as turbinas para entrar em território brasileiro durante a noite, carregadas com pasta-base de cocaína.
Esses exemplos ilustram a imensa constelação de irregularidades que assolam as fronteiras nacionais e comprometem a segurança dos brasileiros. Durante quatro dias, a reportagem do site de VEJA percorreu 17 municípios do Amazonas e do Acre e fez entrevistas com 31 pessoas. O quadro é perturbador. Bananas, galinhas, refrigerantes, gasolina, cimento, brinquedos, roupas, toras de madeira, drogas, praticamente tudo passa livremente pelas fronteiras do norte. E passa muita gente. (Veja as fotos no infográfico)
Nos 1.644 quilômetros que separam o Brasil da Colômbia, por exemplo, há apenas uma delegacia da Polícia Federal e um posto do Fisco. Ambos ficam em Tabatinga. São 33 agentes da PF, um para cada 49 quilômetros de fronteira. O efetivo da Receita Federal é ainda menor. Apenas uma inspetora está incumbida de fiscalizar toda a divisa com a Colômbia. Nos 2.995 quilômetros que marcam a linha entre o Brasil e o Peru, há três postos da Polícia Federal ─ cada um com dois agentes ─ em Santa Rosa do Purús, Marechal Thaumaturgo e Assis Brasil, três municípios do Acre. Para controlar o contrabando, um deles teria de patrulhar 499 quilômetros de fronteira todos os dias. Nem sequer um metro é fiscalizado.
O governo espalha duplas de agentes federais em municípios considerados estratégicos. Em vez de vigiarem a travessia de produtos ilegais, os policiais passam o dia carimbando documentos e regularizando o uso de armas pela população ribeirinha. A mesma disfunção se repete com o quadro de funcionários da Receita Federal. Enquanto sobram fiscais nas capitais, algumas cidades nos confins do país têm um só. Por conta das más condições de trabalho, eles não vêem a hora de transferir-se para cidades maiores, mais movimentadas e menos perigosas. Pelas desprotegidas fronteiras do Amazonas e do Acre, entram 70% da cocaína vendida no Brasil.
Um Brasil esquecido
Tabatinga é um microcosmo das fronteiras na região. É fácil sair do Peru ou da Colômbia e alcançar o solo brasileiro em qualquer dia, com qualquer bagagem de qualquer tamanho. Ninguém é abordado. Não há indício da presença de integrantes da Polícia Federal, Receita Federal, Vigilância Sanitária ou Ibama. A bagagem que vem do Peru e da Colômbia pode percorrer o Solimões a bordo de lanchas alugadas por 370 reais e chegar até Manaus sem sobressaltos. Nesse trajeto, não há um único posto policial. Nenhuma lancha da Polícia Federal ou da Receita Federal costuma aparecer. Existem três cidades ─ Tefé, Fonte Boa e São Paulo de Olivença ─ que comportam aeroportos em que não há revista pessoal, raio x ou a inspeção com cães farejadores. As pistas de pouso são cercadas de mato alto. Um avião carregado com qualquer coisa pode pousar e decolar sem vistorias.
Em Tabatinga, até o que está dentro da lei apresenta riscos para o país. Às 21h19 da quarta-feira, 25 de maio, 80 estivadores descarregavam 15.000 sacos de cimento no principal porto da cidade. Tudo veio do Peru. A carga estava com toda a documentação em dia, garantiu Daniela Sampaio, única inspetora da Receita Federal em Tabatinga. O problema é que, no momento em que descarregavam o gigantesco carregamento, não havia qualquer fiscal. “Se fosse cocaína, por exemplo, nós estaríamos descarregando do mesmo jeito, mas sem saber”, disse Geraldo Daniel Vela, presidente do Sindicato dos Estivadores de Tabatinga. As fronteiras do norte retratam um Brasil esquecido.
Drogas e religião
Às 8h14 no porto da Feira, o segundo mais movimentado da cidade, um grupo de mulheres com véus pretos cobrindo a cabeça começam a descarregar enormes cachos de banana, sacos de batata, tomate e galinhas engaioladas de barcos peruanos. Elas vêm do outro lado do rio, dos municípios peruanos de Isla Santa Rosa e Islândia, ambos na província de Mariscal Ramón Castilla. Pertencem à Associação Evangélica da Missão Israelita do Novo Pacto Universal, uma seita de fanáticos que se vestem como personagens bíblicos e costumam sacrificar animais nos seus templos. Segundo o delegado Mauro Spósito, da PF em Manaus, os chamados “israelitas” também constituem o principal grupo de produtores de folha de coca no Peru. “Em Tabatinga, do outro lado do rio, há pelo menos mil famílias que plantam coca”. Os fanáticos, informa o delegado, colhem as folhas, retiram delas a pasta-base da cocaína e repassam aos traficantes, que atravessam a fronteira e levam às capitais brasileiras o produto que pode ser transformado em pó de cocaína, crack e, ultimamente, oxi.
Toda manhã ─ e frequentemente também à noite ─ os barcos dos israelitas e de outros traficantes atravessam o Solimões. Toda manhã, uma lancha da Receita Federal avaliada em 4 milhões de reais, blindada e equipada com aparelhos de visão noturna, pode ser vista parada e enferrujando na margem brasileira. Segundo a Receita, não há agentes preparados para pilotá-la nem dinheiro para manutenção. Tais carências também mantêm paralisadas duas embarcações da Polícia Federal. A repressão ao tráfico e contrabando nos rios que dividem a fronteira do Amazonas é zero. Centenas de toras de madeira são derrubadas por peruanos perto do município amazonense de Benjamin Constant. Os criminosos amarram umas às outras e as conduzem por vias fluviais até uma madeireira clandestina no Peru. Também no lado peruano, postos de combustível flutuantes vendem gasolina e diesel a 1,75 real o litro. Um tonel de 240 litros sai por 420 reais. Como no outro lado o preço é duas vezes maior, os municípios amazonenses só consomem a gasolina peruana.
Violência urbana
O contrabando desenfreado está na origem da crescente violência. Logo pela manhã, um velório em curso num dos bares da zona portuária pouco altera os rostos sonolentos. O caixão sobre uma mesa de sinuca abriga um peruano de 48 anos, morto com cinco tiros na cabeça por envolvimento com o tráfico. Só a viúva chora. Os mototaxistas da cidade, muito solicitados por quem procura pasta-base de cocaína, invadem o lugar à caça de clientes interessados em chegar ao cemitério junto com o finado. “Todos os dias matam um”, conta a viúva. “Há muitos pistoleiros em Tabatinga”, revela um mototaxista.
A poucos metros do caixão, algumas lanchas descarregam haitianos que, por 2.000 dólares, contrataram um “coiote” que os conduziu até o Brasil. “Chegam quase 40 haitianos por dia neste porto”, diz Pedro Pereira da Silva, vereador em São Paulo de Olivença, município vizinho a Tabatinga. Alguns haitianos pagam mais dólares para tentarem a sorte como operários na usina de Jirau, em Rondônia. Outros esperam pela documentação emitida pela Polícia Federal, algo que os classifica como refugiados, e partem na direção de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Segundo o delegado Spósito, essa sempre foi a rotina de Tabatinga. “João Figueiredo, Sarney, Collor, Lula. Todos os presidentes estiveram aqui e prometeram fazer algo por Tabatinga”, diz. “Eu estava aqui. Nada fizeram”. A cidade ainda não recepcionou Dilma Rousseff.
O atalho ideal
O barulho do aparelho de ar condicionado faz vibrar toda a estrutura de madeira do posto da Polícia Federal em Marechal Thaumaturgo, que separa o Acre do Peru. Dois agentes – o pernambucano Alisson Costa e o paranaense George Haikal – ambos com cabelos pretos e óculos de grau, são responsáveis pela fronteira. Para Guilherme Delgado, também agente da Polícia Federal, mas lotado em Rio Branco, esse é “o ponto do Acre onde mais passam drogas”.
“Se vierem do rio metralhando o posto, estamos perdidos”, diz Costa. “Somos só dois. O ideal seria ter mais quatro agentes aqui”, lamenta Haikal. Cada um recebe 177 reais por dia para trabalhar em Marechal Thaumaturgo. Cada temporada dura dois meses, ao fim dos quais outros agentes chegarão. Durante a madrugada, quando os contrabandistas peruanos atravessam o estreito Rio Amônia, que marca a divisa entre o Acre do Peru, Costa e Haikal permanecem imóveis. “Não temos nem farolete, que é uma coisa básica”, diz Costa. “Não há o que fazer”, concorda Haikal. Às vezes, eles têm de dividir a única lancha com os militares do Exército, instalados na área rural do município. Os soldados estão sempre confinados no quartel ou em treinamento militar nas redondezas. São odiados pelos moradores, que os acusam de engravidar as mulheres da cidade e sumir. Haikal e Costa nunca saem do posto.
Quilômetros ao sul, centenas de veículos saem da boliviana Cobija para a acreana Brasiléia com o posto da Receita Federal às escuras. Mais ao norte, em Santa Rosa do Purús, duas funcionárias da Câmara de Vereadores redigem ofícios em máquinas de escrever Olivetti. Outros dois agentes trabalham sozinhos à beira de um rio que, à noite, se transforma num viveiro de contrabandistas. “O movimento é intenso de madrugada”, conta a agente federal Ana Paula. “Não dá para fazermos nada, somos só dois”, reclama seu parceiro Bina. Neste ano, a policial foi infectada por sarna ao dormir no colchão do posto.
Em Epitaciolândia (a mais de 550 quilômetros de Santa Rosa do Purús), para onde Ana Paula voltará daqui a dois meses, colchões semelhantes forram o chão do ginásio municipal. Servem para acomodar quase 300 haitianos, que costumam cantar à noite, utilizar um banheiro de odor insuportável e conferir num mapa cravejado de tachinhas vermelhas qual será o destino a comportar a vida melhor que vieram buscar depois que descobriram a fragilidade das fronteiras brasileiras. Pelas divisas acreanas, chegam mais de cem haitianos por dia, informa o agente Guilherme Delgado, da Polícia Federal em Rio Branco. Poucos tiveram suas vidas abaladas pelo terremoto de janeiro de 2010. A maioria decidiu mudar de país em busca de trabalho, algum dinheiro e mais conforto. Encontraram no Amazonas e no Acre o atalho ideal.
Augusto Nunes - @Veja
Estamos no Brasil mesmo isso é normal.
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