Desde meados dos anos 1990, fala-se em Brasília de uma lista elaborada pelo Palácio do Planalto na qual seriam compiladas as indicações políticas para cargos públicos. Os rumores atravessaram os governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva sem que a existência desse documento tivesse sido comprovada ou mesmo admitida oficialmente. A reprodução exibida na página ao lado encerra a questão. A cópia da listagem é recente. Ao obtê-la, a reportagem de ÉPOCA se comprometeu a não revelar a data em que ela foi impressa, o que poderia ajudar a identificar a fonte da informação.
A relação é restrita a não mais que uma dezena de funcionários da Presidência da República. Elaborada na Secretaria das Relações Institucionais, da ministra Ideli Salvati, ela só é conhecida pela ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e por um número muito seleto de seus assessores. A autenticidade do documento foi comprovada por integrantes do alto escalão do Planalto. Procurada por ÉPOCA, a secretaria afirmou desconhecer a existência da lista. Informou apenas que “recebe, sim, pleitos de aliados, indicações e sugestões”. “É natural que a base aliada, alicerce de sustentação do governo, pleiteie de forma legítima a divisão de espaços de comando na esfera federal”, afirmou em comunicado por escrito.
A lista é guardada como um segredo de Estado por revelar um retrato acabado da fisiologia brasileira. Nela, está expresso o apetite por cargos de cada partido, grupo e cacique da coalizão governista. Mais: o documento mostra a quem e como o Planalto deu postos. O documento enumera 229 candidatos a 318 cargos na administração federal. A discrepância de números se deve a duas razões: há casos em que um pretendente almeja mais de uma vaga e há postos reservados a um grupo político que ainda não apontou seu preferido. A listagem abrange uma pequena, mas representativa, amostra dos 24 mil cargos federais disputados com sofreguidão por políticos. Juntos, os postos da listagem movimentam mais de R$ 500 bilhões.
Nas 29 páginas da listagem, desfilam indicados anônimos e políticos famosos, como o ex-governador de Mato Grosso do Sul Zeca do PT, postulante a uma diretoria da hidrelétrica de Itaipu, ou o da Paraíba José Maranhão, mencionado para a vice-presidência de Loterias da Caixa Econômica Federal. Ambos ficaram desempregados depois da última eleição. Os nomes de Zeca, Maranhão e de cada um dos outros apaniguados foram inscritos na lista ao lado dos respectivos padrinhos. Por isso, o relatório serve também como um mapa do poder no governo Dilma Rousseff. Por meio dele, é possível ter uma ideia precisa de quem são os políticos mais influentes na atual gestão. Pode-se medir seu poder pela quantidade de pessoas que eles conseguiram incluir na lista ou, sobretudo, pelo número de seus afilhados efetivamente nomeados. Nos dois critérios, brilha a estrela do PT.
O partido de Dilma lidera o ranking de pedidos de emprego, 57% do total, e de postos obtidos, 48%. O PMDB do vice-presidente Michel Temer vem em um segundo lugar distante, com apenas 14% das indicações e 14% de nomeações. Em ambos os critérios, PR, PTB, PSB e PP não ultrapassam 10% do total. PRB, PCdoB e PDT ficam com, no máximo, 2% cada um. A hegemonia petista é tamanha que os organizadores da lista não consideram o partido como uma única entidade. Ao contrário, cada uma de suas facções é tratada como se fosse uma legenda à parte na coalizão governista. Construindo um Novo Brasil (CNB), a maior corrente petista, indicou sozinha 52 pessoas, oito a mais que o PMDB inteiro. O PT Nacional tentou nomear outros 23 filiados, número superior ao do PR, o terceiro colocado, com 19 nomes. Petistas envolvidos em escândalos também foram contemplados na relação.
Por ela, descobre-se que o negócio de José Dirceu, acusado de chefiar o mensalão, agora é trem. Ele patrocina a indicação de Afonso Carneiro Filho para as diretorias da Agência Nacional de Transportes Terrestres, da Companhia Brasileira de Trens Urbanos e da Valec. O currículo de Carneiro Filho, petista e funcionário do Ministério dos Transportes, foi encaminhado ao Planalto por José Augusto Valente, que se identifica como consultor privado. “Dirceu me consulta quando a questão é transportes”, diz Valente.
O documento também mostra como o ex-ministro da Casa Civil Antonio Palocci batalha para promover seu irmão Adhemar a presidente da Eletronorte ou, no mínimo, mantê-lo como diretor dessa estatal. Conseguiu, inclusive, que o CNB reforçasse seu pleito. De acordo com a listagem, Luiz Gushiken, ex-ministro da Comunicação Social, e Ricardo Berzoini, ex-ministro da Previdência e ex-presidente do PT, tentam enfiar no Ministério da Cultura o economista Murilo Francisco Barella. Berzoini nega ter participado da indicação, mas reconhece ter tentado nomear outra pessoa: Aristóteles dos Santos, para o Conselho da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Santos já foi ouvidor da Anatel e, em 2006, chegou a aparecer em programas eleitorais do então presidente, Lula, candidato à reeleição.
Nenhum nome se destaca tanto na relação quanto o líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN). Ele é de longe o campeão de indicações. Em sua conta são debitados 60% dos 44 pleitos apresentados por seu partido. “Isso acontece porque atribuíram a mim todas as indicações da bancada da Câmara do partido e ainda muitas que foram feitas pela do Senado. A verdade é que isso já demorou tanto que desistimos de lutar pela maioria desses nomes”, disse Alves, ao examinar as informações do Planalto.
A lista da Secretaria de Relações Institucionais revela aspectos prosaicos das relações em Brasília, como a insistência dos políticos em encontrar sinecuras e arranjar benesses para seus amigos. Chega a ser anedótico o caso do ex-ministro dos Transportes Alfredo Nascimento com seu ex-motorista Ronaldo Rodrigues Barbosa. Nascimento se empenhou primeiro em promovê-lo a assistente técnico do gabinete quando ministro. Agora no cargo de senador, luta para mantê-lo no posto. Uma curiosidade: a indicação de Nascimento é classificada na lista como “técnica”. “Foi um reconhecimento ao desempenho de Barbosa”, diz Nascimento.
A lista revela outras situações nada curiosas. Correligionário de Nascimento, o deputado Valdemar Costa Neto (PR), que renunciou ao mandato para não ser processado no escândalo do mensalão, aparece entre os atendidos pelo Planalto. O deputado João Pizzolati (PP-SC), considerado ficha suja, consta da relação. O ex-senador Jader Barbalho (PMDB-PA), que chegou a ser preso, também está lá. A presença delas descortina um retrato pouco alentador da política e da gestão pública brasileiras. Ao lado dos nomes dos indicados não há qualquer referência a suas qualificações profissionais. Não há menção a currículo ou experiência anterior que os habilitem a exercer a função que pretendem. “São raríssimos os casos de indicados politicamente que poderiam ser aprovados em concurso público”, diz o cientista político Alberto Carlos Almeida. Os currículos até existem. Há uma pilha de mais de 40 centímetros deles numa sala do Planalto, mas eles têm pouco valor, porque são relegados a segundo plano já no momento de formação da lista.
Os nomes são entregues à Secretaria de Relações Institucionais, em geral, por líderes partidários. Ministros e funcionários de alto escalão também conseguem fazer indicações diretas. A lista obtida por ÉPOCA mostra que o ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutra de Transportes (Dnit) Luiz Antônio Pagot, demitido em julho, indicou sete pessoas para posições de confiança nessa instituição. Poucos políticos, como o senador Blairo Maggi (PR-MT), conseguem por si só colocar o nome de seus protegidos na pilha. Uma vez recebidos pela Secretaria de Relações Institucionais, todos os nomes são submetidos a um pente-fino do Gabinete de Segurança Institucional. Os currículos são encaminhados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que verifica se o candidato tem ficha policial, se já foi condenado pela Justiça em segunda instância, se tem débitos na Receita Federal, dívida trabalhista e se é sócio diretor de empresa, entre outras coisas. Esse levantamento é revisado e aprofundado se houver chance de o indicado ser nomeado. O processo é lento, porque é realizado por apenas cinco funcionários, e alvo frequente de queixas dos políticos.
Uma vez prontas, as indicações se tornam o principal objeto de pressão sobre o governo federal. Relutar em atender aos políticos resulta em um jogo de reclamações e ameaças, que facilmente se converte em traições em votações no Congresso Nacional ou mesmo em denúncias nos jornais. Mas serve também como instrumento de controle e pressão sobre a base de sustentação do governo. “Essas indicações e as nomeações são usadas para pressionar o Congresso”, diz um expoente do Planalto que já integrou o Legislativo federal e analisou a lista exposta nesta reportagem. Ele diz que a presidente Dilma imprimiu uma dinâmica nova – e muito mais lenta – ao processo de nomeações. A demora é tal que os líderes deixaram de insistir. “Só dá desgaste”, diz o peemedebista Henrique Eduardo Alves. Até mesmo o PT, o maior participante nas indicações, está frustrado. O ex-ministro da Pesca Altemir Gregolin passou meses em Brasília esperando uma nomeação. Desistiu. A ex-governadora do Pará Ana Júlia Carepa é outra que espera até hoje. Dilma deu sinais inequívocos de que, pelo menos por enquanto, pretende manter nomeações no conta-gotas.
As indicações políticas para cargos públicos são um fato da democracia com o qual os governos são obrigados a conviver. Em regimes democráticos, nomeações políticas são normais e salutares. É preciso que os partidos que ganhem as eleições dividam entre si os cargos de confiança no governo para implementar as políticas que lhes deram a vitória nas urnas. “É natural que um partido político aponte gente de sua confiança para ocupar cargos de sua própria representação”, diz o sociólogo Antonio Lavareda. A questão no Brasil é outra. A lista da Secretaria de Relações Institucionais mostra que mesmo cargos eminentemente técnicos, como as diretorias de bancos estatais, foram incluídos pelo governo petista nas negociações partidárias. Postos de menor expressão na administração pública também. A regra não são os programas eleitorais, mas o loteamento e aparelhamento da máquina pública. “No Brasil, esses vícios foram agravados pelas características do sistema partidário e da base governista, extremamente fragmentados. Como eles são muitos, a demanda por cargos de confiança é maior”, afirma Lavareda.
Os vícios do sistema nacional ficam ainda mais evidentes quando comparados com as regras de democracias mais consolidadas. Nos Estados Unidos, que possuem uma das maiores administrações públicas do mundo, apenas 4.500 cargos podem ser preenchidos por indicação política – um sexto do que ocorre no Brasil. O Senado americano publica a lista dos escolhidos pelo presidente desde 1952. O Plum Book (Livro Ameixa), como é conhecido, é uma tradição. Para chegar ao cargo, o candidato deve ter conhecimento técnico na área em que deseja trabalhar – exigência que não existe por aqui. A França, um dos países que mais valorizam o funcionalismo público, reserva apenas 500 vagas para indicações políticas. A maioria dos funcionários da máquina estatal é de servidores de carreira. O Reino Unido permite apenas 300 indicações de caráter político – e, mesmo assim, os escolhidos têm de comprovar capacidade técnica. O país mais restrito é a Alemanha, onde o Estado tem apenas 170 cargos para indicações políticas. No Brasil, isso não seria o suficiente para satisfazer nem um partido médio, quanto mais a ampla e sedenta base de apoio do governo federal.
Fonte: Revista Época
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