Editorial do Século Diário
Ausência do Estado, impunidade e cultura de violência estimulam a Lei de Talião: ''olho por olho, dente por dente''
Em menos de uma semana, o Espírito Santo registrou dois casos bárbaros de assassinatos cujos autores são populares revoltados que decidiram fazer justiça com as próprias mãos.
No primeiro caso, ocorrido na última sexta-feira (24), um caminhoneiro atropelou uma criança de dois anos, que morreu na hora. Instantes após o atropelamento, familiares e moradores do bairro Morada da Barra, em Vila Velha, partiram para cima de João Querino de Paula, 51 anos.
Sem chance de defesa, o caminhoneiro foi morto com mais de 15 facadas. Testemunhas e a própria polícia disseram que o caminhoneiro, aparentemente, não foi culpado pelo acidente. Um parente de João resumiu a tragédia: “Às vezes, essa justiça se torna injustiça”, lamentou.
Cinco dias após João ser morto, a cena de barbárie se repete. Em Vargem Alta, mais precisamente no distrito de Vila Maria, um homem conhecido como Gil, 24 anos, teria estuprado e em seguida assassinado Kevilin Souza, de apenas 10 anos, na noite dessa terça-feira (28).
O corpo, com sinais de violência sexual, foi encontrado por populares nos fundos da oficina onde Gil morava e trabalhava como funileiro. Mais de 100 pessoas saíram no encalço do suspeito, que teria se refugiado em um matagal.
Na manhã desta quarta (29), a turba ensandecida encontrou o suspeito, que foi espancada praticamente até a morte. A polícia, admitindo não ter como conter a revolta dos populares, nada pôde fazer. Depois de muito custo – a população tentou impedir o trabalho de socorro – o suspeito foi socorrido, mas deu entrada no hospital já sem vida.
Os dois casos apresentam histórias completamente diferentes. No primeiro, trata-se de um acidente de trânsito. Infelizmente, uma ocorrência bastante comum. A cada sete minutos uma pessoa é atropelada no Brasil. Em muitos casos, a culpa necessariamente, não é do motorista. Pode ter sido o caso de João, que não teve oportunidade de se explicar à Justiça.
O caso do suposto estupro seguido de homicídio é sem dúvida um crime hediondo que gera grande revolta social, ainda mais quando praticado contra uma menina indefesa, como foi o caso do crime de Vargem Alta.
Mesmo que as investigações da polícia confirmem que o motorista do caminhão foi o culpado pelo atropelamento, e o que o autor do crime que tirou a vida da menina de Vargem Alta tenha sido mesmo o funileiro, nada justifica o método usado pela população, que, nos dois casos, decidiu fazer justiça com as próprias mãos.
É difícil de entender o que motiva as pessoas neste momento de fúria. Mas alguns fatores, peculiares ao Espírito Santo, sem dúvida, têm contribuído para transformar toda esta indignação em mais violência.
Os números mostram que Estado não consegue se impor à criminalidade, que a cada dia ocupa mais territórios da sociedade, que se sente encurralada, acuada, refém da violência.
A impunidade, por sua vez, é outra agravante que estimula o crime. As leis permissivas, as falhas de apuração dos crimes, a lentidão e burocracia da Justiça encorajam os criminosos, que se sentem impunes. Além disso, prevalece no Espírito Santo a cultura da violência. Muita gente ainda mantém a tradição de fazer justiça no bico do revólver. Qualquer pequena desavença pode resultar em tragédia. Como foi o caso do jovem que no último domingo (26) matou três pessoas num churrasco na Serra. Motivo: uma discussão banal.
Não temos a pretensão de cravar aqui que esses fatores possam por si só explicar a atitude irracional dessas pessoas, que regrediram à Lei de Talião. Aquela que consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena, que é expressa pela máxima do "olho por olho, dente por dente" ou "aqui se faz, aqui se paga". Mas que esses fatores propiciam a violência, não resta dúvida.
De uma coisa temos certeza, definitivamente, não é essa sociedade regida pela Lei de Talião que queremos
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