quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O PROGRAMA BOLSA FAMILIA AUMENTA A FECUNDIDADE NO BRASIL?



O valor recebido pelas famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família (PBF) cresce à medida que aumenta o número de crianças e adolescentes da família. Pelos valores praticados em 2011, temos que uma família em extrema pobreza recebe o benefício básico de R$ 70,00. Para cada criança ou adolescente de até quinze anos, a família recebe um adicional de R$ 32,00, conhecido como “benefício variável”.
Cada família pode receber até três benefícios variáveis. Ou seja, uma família que tenha três ou mais membros com até quinze anos receberá 70 + 3*32 = R$ 166,00. Há, ainda, o benefício variável vinculado ao adolescente: as famílias que têm um adolescente entre 16 e 17 anos recebem mais R$ 38. São pagos, no máximo, dois benefícios dessa espécie por família, o que elevaria o valor máximo da bolsa a R$ 166,00 + 2*38 = R$ 242
Surge, então, a pergunta: será que o benefício variável pago para cada criança adicional estimula as famílias beneficiárias do PBF a ter mais filhos? Para responder a essa questão precisamos avaliar como tem evoluído a taxa de fecundidade no Brasil, bem como consultar diversos estudos que buscaram medir o impacto do PBF sobre essa taxa.
A fecundidade feminina no Brasil vem caindo continuamente desde os anos sessenta. A Taxa de Fecundidade Total (TFT) era de 6,3 filhos por mulher em 1960, caiu para 5,8 filhos em 1970, 4,4 filhos em 1980, 2,9 filhos em 1991, 2,4 filhos em 2000 e cerca de 1,9 filho em 2010, segundo os censos demográficos do IBGE.
A taxa de fecundidade caiu em todas as Unidades da Federação. Os Estados da região Norte tinham fecundidade acima de 8 filhos por mulher em 1970, caindo para cerca de 3 filhos em 2000. Os Estados da região Nordeste tinham fecundidade de 7,5 filhos por mulher em 1970, passando para 2,7 filhos em 2000. As demais regiões tinham fecundidade mais baixa em 1970 e chegaram a uma taxa próxima ao nível de reposição populacional (2,1 filhos por mulher) na virada do milênio.
Durante a primeira década do século XXI a fecundidade continuou caindo em todo o País e chegou abaixo do nível de reposição na maioria dos Estados brasileiros, sendo que o Rio de Janeiro apresentou a menor TFT, de 1,6 filho por mulher em 2009. Segundo Faria (1989), as políticas públicas de saúde, previdência, crédito e telecomunicações tiveram papel importante na queda da fecundidade no Brasil. As mudanças estruturais e institucionais do país possibilitaram a reversão do fluxo intergeracional de riqueza, aumentando o custo e reduzindo os benefícios dos filhos (Alves, 1994).
As taxas de fecundidade são mais baixas para os segmentos da população urbana, de maior renda, de maior escolaridade, ou seja, de maior inclusão social no Brasil. O tamanho das famílias é menor nos segmentos populacionais que possuem informações e acesso aos serviços de saúde (públicos ou privados) e, em particular, aos serviços de saúde reprodutiva. Para as mulheres de maior renda e maior nível educacional a taxa de fecundidade está em torno de 1 (um) filho por mulher, o que quer dizer que cada casal deste segmento social está gerando apenas a metade das pessoas necessárias para se repor.
Já as parcelas da população com menores níveis de renda e escolaridade possuem taxas de fecundidade mais elevadas. Mas estas taxas também estão caindo. O segmento social composto pelos 20% mais pobres da população tinha fecundidade de 5 filhos por mulher em 1992 e passou para 3,4 filhos por mulher em 2009. Este é o segmento que faz parte do público alvo do Programa Bolsa Família. Portanto, a fecundidade da população mais pobre do Brasil é mais elevada do que a média nacional, mas não é uma “fecundidade africana” (como retrata certos setores da mídia brasileira) e sim uma fecundidade relativamente baixa e em declínio.
Desta forma, os dados indicam que as taxas de fecundidade da população mais pobre do Brasil caíram na última década. Este fato, já é um indício de que o Programa Bolsa Família (PBF), em vigor desde 2004, não parece ter efeitos pró-natalistas, como é o temor de alguns. Os números e as contas vão ficar mais claras quando o IBGE publicar os dados definitivos do censo demográfico 2010. Porém, já existem estudos indicando que o PBF não tem o efeito prático de aumentar a fecundidade no Brasil.
Stecklov et al. (2006), analisando outros programas, que não o PBF, argumentam que há um estímulo pró-natalista nas políticas de transferência de renda, quando a quantidade de recursos transferidos aos beneficiários depende do tamanho da família. Os programas analisados por esses autores foram: Progresa no México, Rede de Proteção Social (RPS) na Nicarágua e Programa de Assistência Familiar (PRAF) em Honduras. Os autores afirmam que o desenho – intencional ou não-antecipado – dos dois primeiros não apresenta estímulo pró-natalistas, enquanto o terceiro geraria estímulo natalistas que dificultam o combate à pobreza.
No documento fundador do Progresa está marcado explicitamente o objetivo de se evitar “fomentar famílias muy extensas”. Já o PRAF, de Honduras, possibilita o aumento de benefícios e a entrada no programa com o aumento do número de filhos.
O Programa Bolsa Família (PBF) tem um desenho parecido com o PRAF de Honduras. Os benefícios do PBF crescem até 5 filhos, sendo 3 crianças de 0-15 anos e até 2 adolescentes de 15 a 17 anos. Assim, teoricamente, o programa de transferência de renda do Brasil teria um desenho pró-natalista.
Contudo, estudos acadêmicos mostram que, na prática, o Programa Bolsa Família não tem provocado o aumento do número de filhos das famílias beneficiadas.
Romero Rocha (2009) investiga os incentivos à fecundidade dos programas condicionais de transferência de renda, nos quais a quantidade de recursos transferidos depende do tamanho da família. Usando uma metodología econométrica ele mostra que o PBF não tem provocado o aumento da fecundidade da população pobre no Brasil.
Patrícia Simões e Ricardo Soares (2011) não encontram efeitos pró-natalistas no PBF. Bruna Signorini e Bernardo Queiroz (2011) utilizam dados das PNADs 2004 e 2006 para observar o efeito médio do programa nos beneficiários do PBF, utilizando a metodologia do escore de propensão para identificar os grupos de tratamento e controle. Os resultados encontrados pelos autores indicam que não há impacto significativo do recebimento do BF na decisão de ter filhos.
Alves e Cavenaghi (2011), com base na pesquisa “Impactos do Bolsa Família na Reconfiguração dos Arranjos Familiares, nas Assimetrias de Gênero e na Individuação das Mulheres”, realizada na cidade do Recife em 2007/2008, mostram que não existe diferença significativa no comportamento reprodutivo entre as mulheres que vivem em famílias cadastradas no CadÚnico beneficiadas e não beneficiadas pelo PBF.
Embora haja uma tendência de as famílias beneficiadas terem uma fecundidade ligeiramente maior, assim como uma proporção um pouco maior de mulheres com 3 ou mais filhos (22,7% contra 16,4% das não-beneficiárias), o fato é que o maior número de crianças tende a reduzir a renda per capita, aumentando a probabilidade das famílias se tornarem elegíveis aos benefícios do Programa. Dessa forma, a causalidade entre número de filhos e beneficiados pelo PBF seria inversa. A mulher não tem mais filhos porque passou a receber o PBF, mas sim o contrário: por ter mais filhos, e, com isso, reduzir a renda per-capita familiar, a mulher se credencia a participar do PBF.
Fazendo um breve resumo da pesquisa, observa-se que apenas 8,4% (beneficiárias do Cadúnico) e 25,1% (não beneficiárias) das adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos, cadastradas no Cadúnico, não tinham filhos, enquanto a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS -2006) indicou um número de 84% de mulheres sem filhos nesta faixa etária no Brasil. No Recife, 50% (beneficiárias) e 33,3% (não beneficiárias) das adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos, em famílias do CadÚnico, já tinham tido um ou dois filhos, respectivamente, contra apenas 14% (beneficiárias) e 0,2% (não beneficiárias) do conjunto de mulheres do país que responderam à PNDS-2006. Isto mostra que o padrão de fecundidade é muito jovem e que a maternidade faz parte da vida cotidiana da maioria absoluta das adolescentes e jovens pobres do Recife.
A fecundidade mais elevada entre a população pobre, menos escolarizada, com menor nível de consumo e piores condições habitacionais é uma realidade constatada em todas as pesquisas sobre o comportamento reprodutivo no Brasil.
A literatura mostra que, em grande parte, esta maior fecundidade se deve à falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, mas também acontece devido à falta de perspectivas profissionais e educacionais, assim como de um projeto de vida que possibilite o progresso cultural e material destas mulheres.
Os dados da pesquisa também mostram que é alta a percentagem de mulheres que engravidaram sem ter planejado segundo a participação ou não no PBF. De certa forma, isto ratifica a hipótese de que estas mulheres estão no programa porque tiveram filhos e não o contrário, isto é, tiveram filhos porque estão no Programa.
O survey mostrou ainda que mais da metade das famílias obtém os métodos contraceptivos por meio do Programa de Saúde da Família (PSF). As outras fontes de obtenção para as famílias beneficiadas do PBF são os centros de saúde (ou ambulatório) e as farmácias particulares, com 17% e 26%, enquanto as famílias não beneficiadas do PBF conseguem 27% e 20% respectivamente nestes dois locais. O fato de as famílias beneficiadas recorrerem um pouco mais às farmácias particulares pode indicar que o efeito renda do PBF pode estar sendo usado inclusive para a compra de métodos contraceptivos via mercado. Assim, as falhas da política pública de saúde reprodutiva poderiam estar sendo compensadas, em parte, pela política de transferência condicionada de renda.
Como apontado na literatura demográfica, as mulheres com menor nível de renda e educação no Brasil começam a ter filhos mais cedo (rejuvenescimento da fecundidade) e fazem um “controle por terminação” também mais cedo após se atingir um determinado tamanho da prole. Como possuem dificuldades para obter métodos de regulação da fecundidade de forma eficiente e constante, acabam recorrendo às esterilizações. Das quase 90 mil mulheres em idade reprodutiva e que recebiam o benefício do PBF na cidade do Recife, 44% estavam esterilizadas no momento da pesquisa, assim como mais da metade das 14 mil mulheres que estavam registradas no CadÚnico, mas se encontravam em famílias que não recebiam benefícios.
Quando perguntado quem optou por utilizar a esterilização, mais de dois terços das mulheres disseram que foram elas mesmas sem a orientação de ninguém (47%) ou elas mesmas com orientação do médico (25%). Em torno de 10% das mulheres disseram que optaram pela esterilização em comum acordo com o cônjuge e apenas algo em torno de 1% das mulheres afirmaram que optaram pelo método em função do cônjuge ou companheiro. Não houve diferenças significativas entre as famílias beneficiadas e não beneficiadas pelo PBF neste quesito.
A pesquisa mostra de maneira clara que esta parcela pobre da população do Recife registrada no CadÚnico, assim como o conjunto da população brasileira, também tem passado pelo processo de transição da fecundidade. A transição da fecundidade não é um fenômeno exclusivo da população rica. A geração mais velha, formada pelas mães das mulheres entrevistadas, teve um número de filhos bem superior à geração atual, pois quase 80% tiveram 4 ou mais filhos e foi praticamente zero o percentual de sem filhos.
Já para a geração atual, formada por todas mulheres que responderam à pesquisa, somente 17,9% tiveram 4 ou mais filhos, 21,8% tiveram 3 filhos e o percentual maior (37,1%) ficou para as mulheres que tiveram 2 filhos. O percentual com um filho ficou em 21,6% e as sem filhos com 1,5%.
Contudo, quando se pergunta sobre o número de filhos desejados (se pudesse escolher o número de filhos, quantos seriam?) as mulheres apontaram um número bem menor do que os obtidos pela geração passadas. Nota-se que o percentual de mulheres que manifestaram o desejo de ter 3 ou mais filhos é bem menor do que o número de filhos que elas ou suas mães tiveram. Em contraponto, no que se refere à fecundidade desejada, cresce a preferência de ter 2 ou menos de 2 filhos, inclusive com 6,4% das mulheres manifestando não desejar filhos (fecundidade zero).
O que se pode constatar é que mesmo a população de baixa renda tem apresentado redução no número médio de filhos à medida que o país vai se urbanizando e a população vai tendo acesso às políticas públicas de educação e saúde. Tanto as mulheres que recebem quanto as que não recebem os benefícios do PBF desejam ter menos filhos e possuem alto índice de gravidez não planejada. Ainda falta muito para o Sistema Único de Saúde (SUS) universalizar, na prática, os serviços de saúde sexual e reprodutiva.
Em geral, as mulheres beneficiadas vão para o PBF porque têm filhos e, não necessariamente o contrário, têm filhos para entrar no PBF. A presença de cônjuge no domicílio não melhora a renda necessariamente, mas apenas quando este trabalha. O desenho do Programa Bolsa Família pode até ser considerado potencialmente pró-natalista (como sugere Stecklov et al. 2006), porém, o valor da parte variável do benefício é muito baixo (R$ 32,00 mensais para crianças até 15 anos, e R$ 38,00 mensais para adolescentes com 16 ou 17 anos) e dificilmente teria um impacto capaz de alterar a tendência média das taxas de fecundidade que, de modo geral, estão em declínio em todo o Brasil.
As pesquisas mostram que os diferenciais de fecundidade da população tendem a se reduzir e a convergir para níveis baixos quando se universaliza o acesso às políticas públicas e cresce a inclusão social

José Eustáquio

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