domingo, 29 de abril de 2012

UMA PROPOSTA DE ESTARRECER

Está em curso na Câmara dos Deputados uma tentativa de golpe contra o Judiciário. Na quarta-feira, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa acolheu por unanimidade um projeto de emenda constitucional que autoriza o Congresso a "sustar os atos normativos dos outros Poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa". A Constituição já lhe assegura esse direito em relação a atos do gênero praticados pelo Executivo. A iniciativa invoca o artigo 49 da Carta que inclui, entre as atribuições exclusivas do Parlamento, a de "zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes".

Poderia parecer, portanto, que a proposta pretende apenas afirmar a plenitude de uma prerrogativa legítima do Congresso, adequada ao princípio republicano do equilíbrio entre os Três Poderes, uma das bases do regime democrático. Antes fosse. O alvo do projeto apresentado em fevereiro do ano passado pelo deputado Nazareno Fonteles, do PT piauiense, é o Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual compete se pronunciar sobre a constitucionalidade das leis e a eventual infringência dos direitos constitucionais da pessoa. Alega o relator da proposta na CCJ, Nelson Marchezan, do PSDB gaúcho, que ela não alcança as decisões de natureza "estritamente jurisdicional" da Corte, mas o que ele considera a sua "atividade atípica".

O termo impróprio se refere às decisões judiciais que, por sua própria natureza, adquirem força de lei, como devem ser efetivamente aquelas que dirimem em última instância dúvidas sobre a constitucionalidade dos textos legais ou eliminam omissões que, ao persistir, representam uma distorção ou supressão de direitos. O Judiciário não ultrapassa as suas funções ao estabelecer novos marcos normativos, seja porque os existentes são inconstitucionais, seja para suprir lacunas resultantes da inoperância do Congresso.

De mais a mais, a Justiça não toma tais iniciativas, ou outras. Ela só se manifesta quando provocada por terceiros - no caso do Supremo, sob a forma de ações diretas de inconstitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental. Fica claro assim que a emenda Nazareno carrega dois intentos. No geral, bloquear a vigência de normas que o estamento político possa considerar contrárias ao seus interesses, a exemplo de determinadas regras do jogo eleitoral. No particular - e muito mais importante -, o que se quer é mudar decisões do STF coerentes com o caráter laico do Estado brasileiro.

 Em maio do ano passado, julgando ações impetradas pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, a Corte reconheceu a união estável de casais do mesmo sexo. Há duas semanas, diante de ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, autorizou o aborto de fetos anencéfalos. À época da primeira decisão, as bancadas religiosas da Câmara, notadamente a Frente Parlamentar Evangélica, presidida pelo deputado João Campos, do PSDB goiano, não conseguiram incluir na pauta da CCJ o projeto de Nazareno.

Agora, a pressão funcionou. Em tempo recorde, a proposta entrou na agenda, foi votada e aprovada. Tem um longo caminho pela frente: precisa passar por uma comissão especial e por dois turnos de votação na Câmara e no Senado, dependendo, a cada vez, do apoio de 3/5 dos parlamentares. Mas a vitória na CCJ - uma desforra contra o Supremo - chama a atenção para a influência dos representantes políticos daqueles setores que gostariam que todos os brasileiros fossem submetidos a normas que espelhassem as suas crenças particulares, como nos países islâmicos regidos pelas leis da sharia, baseada no Corão.

Não é uma peculiaridade brasileira. Pelo menos desde 1973, quando a Corte Suprema dos Estados Unidos legalizou o aborto, a direita religiosa do país deplora o seu "ativismo". A diferença é que, ali, nenhum parlamentar, por mais fundamentalista que seja, ousaria propor a enormidade de dar ao Congresso o direito de invalidar uma decisão da mais alta instância do Judiciário. Seria um escândalo nacional.

Fonte: O Estado de São Paulo

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