quinta-feira, 9 de junho de 2011

NOSSA DEMOCRACIA CLAMA PELAS CAMADAS MÉDIAS. (Mara Kramer)

A cidadania, entendida como a consciênciado compromisso de cada um de nós com relação a todos os aspectos que interferemna vida nacional, pode ser exercida de várias formas. Não obstante, um dossímbolos marcantes desta condição coletiva de interferir diretamente nos rumosde um país é a manifestação popular nas ruas. A manifestação popular,espontânea ou organizada por instituições da sociedade civil, é a imagem maisforte do povo unido que assume sua liderança na democracia, expressandodiretamente em primeira pessoa, suas reivindicações, criticas e propostas.Assim como a eleição, a manifestação popular reforça a democracia e o papel dopovo no centro do debate e das decisões políticas, simboliza a responsabilidadee a força de uma sociedade madura. É desnecessário dizer que esta práticaparticipa do cotidiano de todas as sociedades europeias e dos milenares povos orientais.

No Brasil, entretanto, existe uma granderesistência da população em manifestar-se coletiva e publicamente. Sabemos queo governo petista cooptou as habituais instituições de protesto popular como aUNE e os sindicatos. Logicamente, esta circunstância dificulta a organizaçãosocial, mas sabemos também que a pratica de manifestar-se não participa denossa tradição política, e os motivos pelos quais mantemos esta posturaanti-cidadã não estão claros. No presente artigo gostaria de refletir sobreeste tema objetivando entender melhor nosso comportamento político enquantopovo, embora tenha consciência do quanto é delicado o assunto no qual meadentro. Esclareço que o conteúdo aqui apresentado é resultado de leituras eobservações, mas não foi submetido aos parâmetros de um trabalho científico.

Nas sociedades onde predomina a culturarural é comum uma divisão social dicotômica e antagônica. Por um lado os donosda terra, detentores do poder político, econômico e cultural; por outro umamaioria de trabalhadores rurais, dependentes econômica e politicamente dosprimeiros. Estes necessitam tanto laborar nas terras do grande proprietário parasobreviver, assim como carecem de sua proteção e bendição. De forma bastantebreve, esta é a realidade socioeconômica brasileira desde o descobrimento até bastanteentrado o século XX, e em algumas regiões ainda permanece. Desde as CapitaniasHereditárias e seus donatários, passando pelo ciclo da cana de açúcar nolitoral, até as fazendas de gado e café do Sul e Sudeste, observa-se a reproduçãocontínua deste modelo. A figura do latifundiário, paternalista e escravocrataestendeu-se por todo o país. Ao poder econômico originado no campo agrega-se opoder político. O período emblemático desta situação é a “política do café comleite” nos primeiros quarenta anos da República. No Brasil esta estrutura chegouuma situação extrema, pois ao dono da terra se contrapõe a figura do escravoafricano, seres humanos tratados exclusivamente como instrumento de trabalho. Ospoucos trabalhadores livres, comerciantes, etc. dos primeiros séculos deveriamintegrar-se no sistema para sobreviver, o que significava submeter-se à elitelatifundiária.  Neste sentido, a dicotomia,o antagonismo e a hierarquia constituem a gênese da organização socioeconômicado Brasil.

Esta situação começa a alterar-se no finaldo século XIX com o crescimento das cidades, a incipiente industrialização noSudeste, a Proclamação da República, a abolição da escravatura, e a chegada dosimigrantes europeus como trabalhadores assalariados. Todos estes aspectos estãorelacionados com a idéia de modernização de raiz europeia, que preconiza aurbanização, a industrialização, a democracia, o liberalismo econômico como condiçõespara alcançar o progresso, e como consequência o desenvolvimento de uma camadamédia da população. Assim, as camadas médias são resultado do processo demodernização introduzido no país. Entretanto o desenvolvimento e organizaçãodeste setor não tem sido fácil devido sua recente trajetória e a instabilidadeeconômica e política do país que acompanha a história da República.  Nestas condições esta parcela da populaçãosegue insegura com relação ao seu caráter e posição sociopolítica. Comoexpressão desta postura vacilante observa-se a dificuldade da construção deparâmetros claros que lhe permitam obter uma identidade própria. Neste contextonossas camadas médias se equilibram entre os dois polos, as camadas baixas ealtas, tanto no sentido econômico, quanto no sentido de identidade cultural, aqual inclui a política.

É um clássico dizer que as camadas médiasse espelham na elite, mas em nosso país esta máxima adquire ainda maior pesoconsiderando a contundência histórica da dicotomia, antagonismo e hierarquia nocampo social, sua fragilidade e a ausência de nitidez quanto ao seu papelpolítico na sociedade. Estes aspectos demonstram a existência de uma dificuldadede definição conceitual das camadas médias no Brasil, o que as impede deassumir uma posição autônoma na dinâmica política. Tendo em vista este contexto,sua opção é privilegiar um comportamento que a distancie das classes baixas e asaproxime das altas.
 
Corrobora para esta conclusão de basehistórica o discurso recorrente de integrantes das camadas médias brasileiras quandoindagados de porque não participam de manifestações populares. As respostascostumam ter este teor: “quem faz passeata é petista”(leia-se camadas baixas),“as pessoas bem postas não necessitam sair à rua para manifestar-se”, ou “semanifesta quem não tem o que comer”, “uma pessoa de bem não participa destas coisas”,e por aí vai. Estes comentários demonstram claramente o caráter elitista ehierárquico dos entrevistados, pois indicam que a manifestação popular é umaatividade para os necessitados, miseráveis, exatamente aqueles dos quais ascamadas médias desejam afastar-se. A não-identificação com as camadas baixas éuma luta constante das classes médias brasileiras, pois manter o status não é uma tarefa fácil em um paísem constante turbulência econômica e política. Paralelamente, ao afastar-se deum extremo ela aproxima-se do outro extremo, as camadas altas. Logicamente, aproximidade com a elite é interessante para as camadas médias, tanto por razõespraticas (profissionais, sociais, etc.), quanto por razões simbólicas. Entretanto,ao avaliar a questão política a partir da imagem social, as camadas médias abremmão de sua capacidade qualitativa e quantitativa de intervir na movimentaçãopolítica do país segundo seus interesses.  

Parte do problema reside na ausência decaráter das camadas médias no país, determinado por suas características,problemática, contexto, reivindicações, expectativas, filosofia, etc. peculiares.Estas devem contribuir para o avanço do conjunto da população, mas contêmperspectivas e exigências próprias relativas ao seu modus de vida. Sua luta deveria ser neste sentido, mas não é, poisa identificação com as camadas altas retira-lhes o foco do combate em prol desuas necessidades, princípios, projetos e soluções para os problemas específicos. Seu espaço no cenário político ficavazio. As camadas médias passam a constituir uma força política em potencial,mas inerte, abafada por sua própria inconsciência. 

É bem verdade, que as camadas médiasbrasileiras encontraram nos últimos tempos um meio de expressão, a internet.Esta ferramenta tem sido amplamente utilizada por esta parcela da populaçãopara mostrar sua indignação e repúdio à política atual, sobretudo a partir daseleições de 2010, e verifica-se que tem obtido bons resultados. Logicamente, amovimentação política via internet é positiva e tem demonstrado nos quatrocantos do mundo sua eficiência, além de sua contemporaneidade. No Brasil, sobmeu ponto de vista, evidencia um desejo de participação e interesse político inéditoem grande escala. Entretanto, penso que fazer da internet o “espaço” exclusivoda luta política das camadas médias é um tema que merece maior atenção. É ainternet suficiente como meio difusor do processo de construção de cidadania? Épossível apenas através da internet alcançar a totalidade da população einclui-la no processo de construção da cidadania?  Nos demais países a intervenção da internetlimita-se a difusão de idéias que visam a mobilização e o debate no mundo real,porque no Brasil este fenômeno não ocorre?

Penso que a reflexão sobre a ação “delimitada”das camadas médias no mundo político nacional, incluindo sua resistência aparticipar das manifestações populares, poderia estimular o debate sobre o temae uma revisão de postura. As camadas médias crescem no país, e, portanto ganhamforça, qualidade que não deve ser desperdiçada, menos em um momento no qual opaís passa por grave crise moral e política. Neste momento, este contingente dapopulação é chamado a manifestar-se consistentemente na busca da revalorizaçãodos princípios morais e éticos os quais sempre defendeu. É convocado a exigircompromisso e competência dos políticos na gestão pública e responsabilidadecom os recursos públicos. A atuação ativa das camadas intermediárias no campopolítico é insubstituível e indispensável para o amadurecimento político de umpaís.

5 comentários:

  1. Perfeito... Já pensei muito sobre o uso da internet como meio de conscientização. Estamos tentando encontrar uma saída, um caminho a ser seguido. É um canal que temos obrigação de utilizá-lo com sabedoria enquanto ainda nos permitem os (des)governantes deste país. A juventude de modo geral está alheia aos movimentos sociais e políticos, o que me assusta e muito mas tenho observado que aos poucos começam a prestar mais atenção e a participar do dia a dia da política brasileira. Percebo em dias de twittaços que muitos jovens participam, se interessam.. Talvez seja um começo que sendo bem direcionado poderá render belos frutos...

    Ótimo artigo. Como sempre.. eu é que não estou bem... a indignação toma conta de mim e literalmente adoeço. Não estão dando tempo pra tomarmos fôlego... Até quando? Até quando? Bate um desespero sabe? Enfim... Não sei o que o futuro nos reserva. Abraços

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  2. Estamos no limiar de uma grande mudança mundial das atitudes e posicionamentos políticos. As massas estão se movendo com um impacto crescente em todo parte do mundo. Aqui, a apatia e a ignorância política está abrindo espaço para um povo educar e crescer politicamente. Ainda vamos ver o que pode um povo quando seus direitos forem tirados. O Limiar de um final feliz e o que creio para a população que vendo agirá e não se calará mais.

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  3. Querida Mara.

    Textos como este tem de ser debatidos, formar grupos de estudos e grupos multiplicadores.
    Uma bela e lúcida exposição, buscando apontar um caminho através do estudo da história.
    Mão canso de cumprimentar o Amigo Marco Sobreira pela maravilhosa aquisição.

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  4. Mara!
    Que texto lùcido e sagaz, que vc desenvolveu para o enfrentamento no campo das ideis, de um povo ainda tão preconceituoso com a sua propria identidade. acho que o grande problema é a baixa estima ainda empregnada pelos nosso antepassados. Mas com o advento da internet, o povo tende a se conectar em prol de sua propria conciência.

    Parabens: Dorivã Passarim do Jalapão

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