segunda-feira, 5 de março de 2012

NÓS ESTAOS ABRINDO A CAIXA DE PANDORA DA JUSTIÇA ( ELIANA CALMON)

 
 
Travando uma batalha para punir maus juízes e romper paradigmas no Judiciário, a corregedora nacional de Justiça conta, em entrevista exclusiva, que foi perseguida porque atravessou o caminho das elites
 
Eliana Calmon
Os corporativistas tentaram me tirar porque atravessei o caminho das elites, mas nunca senti medo pessoal”


Rondinelli Tomazelli
rtomazelli@redegazeta.com.br
Brasília

O Judiciário brasileiro não será o mesmo depois de Eliana Calmon. Há um ano e meio no comando da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esta baiana de Salvador bateu de frente com a cúpula do Judiciário, enfrentou pressões corporativistas e bancou, isolada internamente, sua bandeira para investigar e punir maus juízes, apurar a evolução patrimonial de colegas Brasil afora e garantir poderes e autonomia ao CNJ.
Nesta entrevista, a mulher que quebrou paradigmas na Justiça, não mediu palavras para denunciar suas mazelas e criou expressões como “bandidos de toga” e “meia dúzia de vagabundos” comemora os resultados dos flancos de guerra que abriu. A Justiça foi discutida pela sociedade de ponta a ponta, e o debate ganhou corpo nas redes sociais.

Eliana diz que agiliza o processo de mudança, mas não pode quebrar, em dois anos como corregedora, uma cultura de 400 anos. Quando sair do cargo, já avisa: não ficará nem calada nem parada. Ela não descarta viagem ao Estado para tratar da Operação Naufrágio.


foto: ABr
Eliana Calmon
“Talvez o CNJ volte ao TJES, vamos ver o que aparece. Fizemos a inspeção, retornamos e vamos reelaborar o relatório, no qual podemos flagrar algo, mas nada muito grande”
Valeu enfrentar as reações corporativistas na batalha para fortalecer as corregedorias? O que mudou?
O esforço valeu. A sociedade brasileira, a imprensa e uma grande parte da magistratura entenderam perfeitamente a minha mensagem exagerada. Eu exagerei para chamar a atenção. Isso fez as pessoas se movimentarem, fato coroado pela decisão do STF reconhecendo a competência concorrente do CNJ e outros dois pontos fundamentais. Primeiro, a publicidade dos atos de fiscalização e controle e dos processos julgados pelo CNJ: a transparência é o primeiro ingrediente contra a corrupção. Outro aspecto mantido pelo STF é o poder normativo do CNJ. Padronizações do CNJ foram seguidas de forma uniforme pelos tribunais: a resolução sobre o nepotismo, critérios de promoção por merecimento, normas de eleição para as Mesas. Imagine 97 tribunais normatizando a bel prazer tais situações!

Por que é tão difícil punir maus juízes?
É o corporativismo. Há uma cultura no Poder Judiciário de que não devemos tornar públicos nossos pecados. Somos extremamente tolerantes com os sem seriedade. Passamos a ser coniventes, porque as pessoas dedicadas ao mal não se contentam com pouco. Nós, os bons, somos maioria na magistratura. Percorro Estados e vejo no máximo cinco ou seis maus em um tribunal, mas porque a maioria deixa isso acontecer? O silêncio dos bons me preocupa muito. Quero ver a magistratura fortalecida para sermos um exército contra os maus magistrados.
Como quebrar o medo de denunciar?
Um dos aspectos que faz calar na denúncia é a falta de confiabilidade no sistema. Eu denuncio, nada acontece e eu fico mal. Quando houver certeza de que o sistema repulsa maus juízes, este silêncio será quebrado. Tenho segurança absoluta que não vou mudar esse quadro. Em dois anos, não se muda uma cultura de 400 anos, mas apressar o processo é meu trabalho. Minha missão.

Sua campanha foi encampada ‘de porteiros a doutores’, mas o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra, declarou não se importar com a voz das ruas.
É um pensamento do passado, quando o magistrado não dava satisfações. Com a Constituição de 1988, isso acabou. Lamentavelmente, alguns magistrados não se imbuíram desse espírito de, como agentes políticos nos conflitos da sociedade, ouvir o que o povo quer e precisa. Pela segunda vez, o corporativismo investe contra um órgão que quer sepultá-lo. O primeiro foi a ação no momento da criação do CNJ. Agora, requentam tudo aquilo. Novamente, o STF dá uma resposta em favor do CNJ.
Se a independência para investigar juízes é difícil nos tribunais, como pretende fortalecer as corregedorias?
Se o presidente não se dá bem com o corregedor, asfixia a corregedoria. Criei metas para as corregedorias, como a independência financeira e administrativa. Quero uma simetria, para que as corregedorias locais sejam tão independentes quanto a nacional. O perfil ideal de um corregedor é ser sério, saber gerir o Judiciário. Esta é a solução. Muitas vezes, só com a força moral resolvi problemas nas corregedorias, telefonando aos corregedores honestos. Melhorou muito a situação de corregedor “boneco de presépio”.

O Judiciário ainda é uma caixa-preta?
Ainda há um pouco de escuridão, mas nós já demos alguns passos para a abertura da caixa de Pandora. Não é que o Judiciário seja mais corrupto hoje, é que muita coisa vem à tona. A caixa de Pandora foi aberta e estamos enxergando o que tem dentro dela. Meu trabalho vai contribuir para a abertura do Judiciário. A Justiça precisa se mostrar mais para a cidadania. O brasileiro sabe que o CNJ resolve as coisas com seriedade. Este encontro da cidadania com o CNJ é um momento histórico no combate à corrupção.
A Operação Naufrágio foi a pior crise do Judiciário capixaba e magistrados denunciados foram aposentados. Ainda é uma mancha na Justiça?
Antes de ser uma mancha, é um motivo de parabenizar a Justiça do Espírito Santo por ter conseguido implodir o que se armou dentro do Tribunal de Justiça. A partir desta crise, a Justiça começou a se organizar. Com a censura, a punição interna, melhora a performance do Judiciário, porque as pessoas ficam temerosas em relação à atuação da Justiça. A denúncia na esfera criminal da Naufrágio demora muito por causa do foro especial. Talvez o CNJ volte ao TJES, vamos ver o que aparece. Fizemos a inspeção, retornamos e vamos reelaborar o relatório, no qual podemos flagrar algo, mas nada muito grande.

A acusação de quebra de sigilo na investigação de movimentação financeira foi justa? Houve distorção?
A discussão no mandado de segurança no STF foi totalmente distorcida. A AMB quer fazer crer que quebrei sigilo fiscal e bancário, e na realidade examinei declarações de bens e folha de pagamento. Em relação à movimentação patrimonial indicada pelo Coaf (órgão da Fazenda), não houve identificação de ninguém. E o CNJ não identificou movimentação atípica na Justiça capixaba.

Por que avalia que magistrados de 2º grau são “ainda mais deletérios quando enveredam para o mal”?
Magistratura é carreira hierarquizada e a 1ª instância precisa em tudo dos tribunais. Para quem está no ápice dessa verticalização, é fácil vender essas vantagens funcionais. Quando magistrados de 2º grau enveredam para o mal, fazem estrago muito grande na base.
O Judiciário é classe de privilegiados?
Não. O Judiciário está perdendo muitos privilégios. Mas o movimento corporativista quer manter e recuperar privilégios perdidos pela inércia do tempo e porque o país se modernizou. Há uma quebra de paradigma, os tempos mudaram e magistrados não perceberam.
Apoia férias de 60 dias para juízes?
Para o exercício complexo de julgar, é preciso prerrogativas constitucionais, mas não posso, sendo apenas servidora pública, uma trabalhadora, querer benesses que nenhuma outra categoria tem.

A proposta de emenda constitucional (PEC) no Senado vai mesmo garantir definitiva autonomia do CNJ?
Defendo a proposta, já que ninguém duvida de questionamentos a posteriori à definição do STF. Ouvi que a PEC passará rapidamente, mas é ano de eleição e segmentos poderosos da magistratura têm conchavos lá dentro.
Sofreu perseguição, sentiu medo, temeu pela própria vida ultimamente?
Senti certa insegurança em relação ao desfecho final. Nunca senti medo pessoal ou físico. Este não é o perfil dos corporativistas: eles dão a dita solução limpa, sem sujar as mãos, mesmo com manobras obscuras. Estão acostumados a tirar todas as pessoas que, como eu, atravessam o caminho das elites. Tentaram me tirar.

Isolada internamente, estaria mesmo “frita” se não fosse a imprensa?
Ante a dificuldade interna, havia pedido apoio de intelectuais para um grande debate na área. Mas a academia foi lenta e não houve tempo de esperar. Eu perdia terreno na magistratura, onde não tenho arautos e a corregedoria é secularmente antipatizada. Daí me foram jogadas boias, como a imprensa. A mídia se abriu. Isso fez a opinião publica se posicionar.

A expressão “bandidos de toga” motivou uma reação já arquitetada?
A expressão forte que usei virou a senha para desabrochar um movimento de reação. Eu disse bandidos infiltrados. Eu não falei de magistrados! Falei de bandidos mesmo, que agora chamei de vagabundos. É a mesma coisa!

A senhora se preocupa com seu sucessor, no sentido de evitar retrocesso?
Minha preocupação é criar projetos viáveis na continuidade. Segui todos os projetos do meu antecessor. Estarei corregedora até setembro e, com sinceridade, não sei o que farei depois. Só digo uma coisa: pelo meu temperamento, parada e calada não fico! E não serei candidata a cargos eletivos e nem vou advogar.

É cedo para dizer que Eliana Calmon vai entrar para a História?
É cedo, sim. Estamos na crista de um movimento popular de vanguarda, mas vai passar. Tenho o pé no chão, consciência de que é muito efêmero. Não sei se ficará o resíduo comportamental capaz de ser inscrito na História.

No auge da crise, a senhora disse que ficou dias sem conseguir dormir. E agora?
Agora? Agora eu estou dormindo (risos, e se estica na cadeira).

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