sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A " PAZ NO CAMPO"

DENIS LERRER ROSENFIELD



A situação é propriamente surreal. Enquanto permanecemos discutindo sobre se as sentenças judiciais de reintegração de posse, antes e depois de proferidas, devem ou não passar por um processo de mediação estipulado pela Ouvidoria Agrária Nacional, órgão do Ministério do Desenvolvimento Agrário, tribunais pelo país afora decidiram recomendar aos seus juízes que sigam as orientações da mesma Ouvidoria Agrária. Na verdade, ficamos centrados na questão de se essa proposta deve ou não ser retirada do PNDH-3 ou do programa da candidata Dilma Rousseff, quando se trata apenas da parte visível de um grande iceberg. Ora, não estamos diante de uma proposta, mas de algo que já está operando praticamente em vários tribunais do país, graças a atos administrativos de seus respectivos corregedores. Os estados em questão são: Maranhão, Pará, Bahia, Acre, Ceará e Paraná.

Preliminarmente, observemos que os despachos dos respectivos corregedores utilizam uma mesma linguagem, estipulada no próprio ofício da Ouvidoria Agrária Nacional. Particularmente, todos se dizem preocupados com a “paz no campo” e com os “direitos das pessoas”, devendo o Incra e a própria Ouvidoria serem ouvidos antes da concessão das liminares e, depois, no que diz respeito às suas condições de execução. Não é demais assinalar que, sob essas condições, as liminares de reintegração de posses, se essas recomendações forem seguidas pelos juízes, ficarão cada vez mais difíceis de serem cumpridas, algumas mesmo inexequíveis.

O que é bem o que se entende por “paz no campo” e “direitos das pessoas”, mais especificamente, dos “ocupantes”? Os invadidos não cabem bem — ou são excluídos — dos “direitos das pessoas”, talvez por não serem “pessoas” ou “humanos”. Na perspectiva dos ditos movimentos sociais, em particular do MST, da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e de outras organizações congêneres, a “paz” significa o direito de invadir qualquer propriedade, sequestrar, manter cárcere privado, matar bois (de preferência com requintes de crueldade, cortando os tendões dos animais), queimar galpões, expulsar e intimidar trabalhadores, aterrorizá-los e destruir maquinários e colheitas. Ou seja, enquanto “se dialoga” com a Ouvidoria Agrária Nacional e o Incra, que reproduzem na maior parte dos casos as mesmas posições dos ditos movimentos sociais, esses podem, impunemente, continuar com suas ações. A impunidade estaria assegurada em nome dos “direitos dos ocupantes”.

Observe-se que a palavra utilizada é “ocupação”, como se não se tratasse de uma invasão, crime juridicamente tipificado. O uso dessa palavra é revelador, porque procura fazer com que atos fora da lei caiam, por assim dizer, dentro da lei, não podendo ser objeto de sanções e punições. Os ocupados, isto é, os invadidos, ficariam, então, à mercê da violência, pois essa aparece travestida de um eufemismo, a saber, o da “ocupação pacífica”. De fato, deve ser muito “pacífico” ver a sua propriedade invadida com pessoas armadas de facões e foices, com a destruição se disseminando por toda parte.

Note-se, ainda, que essas invasões obedecem a uma logística preestabelecida, começando às 5 horas da manhã, com batalhões precursores, em muitos casos armados com armas de fogo. Horas depois, quando chegam os jornalistas, eles são substituídos por crianças e mulheres, com o intuito de convencer a opinião pública do bem fundado de suas reivindicações.

Outra expressão utilizada é a da “reforma agrária”, como se fosse esse o objetivo dos ditos movimentos sociais. Há uma questão de monta a ser enfrentada aqui, pois diz respeito à natureza da reforma agrária e, mais especificamente, do MST e da CPT.

Trata-se de organizações revolucionárias, que têm como objetivo destruir a economia de mercado, o direito de propriedade, o estado de direito e a democracia representativa.

Todas suas ações se inserem nessa perspectiva mais global, tendo como meta a instauração, no Brasil, de um Estado socialista/comunista. O direito de propriedade, para eles, é um roubo, devendo ser substituído pela propriedade coletiva da terra. Seguem o modelo que foi instaurado na ex-União Soviética, na China maoísta e em Cuba.

Os resultados, aliás, são conhecidos: mortandade de milhões de pessoas por fome, eliminação física dos que se opunham a esse modelo e ruína agrícola e econômica dessas sociedades.

É claro que o discurso era — e é — apresentado como se fosse de natureza moral, visando à “solidariedade” e à “paz no campo”. Nada muito diferente historicamente.

Agora, o que causa estupor é o fato de vários tribunais de Justiça estarem apoiando esse tipo de iniciativa.

Talvez alguns o façam de boa-fé, porém a questão não é essa, pois ela envolve a natureza mesma da sociedade na qual vivemos. Ao apoiarem as ações da Ouvidoria Agrária Nacional estão, de fato, apoiando organizações revolucionárias, que procuram inviabilizar o próprio arcabouço constitucional do Estado brasileiro.

Visam a inviabilizar o estado de direito, instaurando a violência em nome da “paz do campo”. A questão, portanto, é a de se vingará no país a “paz (violenta, revolucionária) do campo” ou o estado de direito e uma sociedade baseada na liberdade.

Os atos normativos baixados pelas corregedorias dos tribunais mencionados se fazem sob a forma de “recomendações” administrativas, não tendo a força da obrigatoriedade.

Neste sentido, sempre se poderá arguir que a liberdade do juiz foi preservada.

É, porém, forçoso reconhecer que essa liberdade começa a ser, cada vez mais, vigiada, como se pairasse sobre a decisão judicial uma recomendação que, em caso de concessão de liminar, não foi seguida.

Cria-se um constrangimento para o juiz e, mais do que isto, um cerceamento possível de sua liberdade.

Pior do que isto, um órgão do Poder Executivo, no caso, a Ouvidoria Agrária, começa a lançar seus tentáculos para dentro do Judiciário.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Nenhum comentário:

Postar um comentário