Eugênio Bucci* - O Estado de S.Paulo
Em 1917 os bolcheviques forjaram o pacto entre operários e camponeses. Nascia ali a aliança que mudou a face do mundo e inaugurou o comunismo. Uma aliança cujo símbolo - o martelo e a foice, dispostos em forma de cruz - percorreu o século 20 como o selo maior da causa revolucionária. Em 1968 Paris foi o epicentro de outra aliança, esta entre os estudantes e os operários, numa vaga que fez a delícia dos intelectuais e ergueu barricadas de puro desejo. Agora, nas cidades brasileiras, vai se desenhando uma terceira aliança, esta um tanto estabanada, entre jovens estudantes em euforia voluntarista - que se veem como anarquistas e herdeiros do legado teórico das duas alianças anteriores - e serviçais do crime organizado, uns com um pé na banda podre da polícia, outros com as mãos na franja do tráfico, sem falar dos que dizem amém para as milícias, para botar fogo em ônibus na estrada, amedrontar os bairros pobres e, no fim das contas, esvaziar de vez as manifestações de rua, transformando-as em arruaça em que cidadãos de cara limpa não têm mais lugar.
Da aliança operário-camponesa de 1971 não sobrou quase nada além de um logotipo, ora empunhado por aposentados em Moscou, ora patrocinado por autoridades em Havana ou Pequim para atos oficiais e enfadonhos. Da aliança entre universitários e operários de Paris ficaram apenas fragmentos de narrativas mais ou menos filosóficas, além de uma nostalgia romântica e quase charmosa na fala de sobreviventes saudosos. Quanto à recente aliança crimino-estudantil, que promove festivais de pernadas em agências bancárias e em agentes da lei, dessa aí não se conhece bem o saldo. O que já se sabe é que, seja qual for, será um saldo completamente melancólico. A terceira aliança prestou seus serviços não às pessoas que protestavam nas ruas, mas à repressão, que queria bater nelas e não conseguia. Realizou a tarefa que a Polícia Militar, com seu despreparo bruto e chucro, jamais foi capaz de realizar: acabar com o sentido cívico e transformador dos protestos de rua, arrancando-lhes a graça, a criatividade e a força social.
Pôr fogo em viatura não muda nada em lugar nenhum, apenas reforça o apego à ordem (daí as especulações, fundamentadas, de que o quebra-quebra generalizado serve para angariar apoio para a tropa de choque). Espatifar vitrines a esmo não promove nenhuma boa causa, apenas desperta a antipatia popular. A estultice estratégica embutida na tática supostamente anarquista de partir para a ignorância beira o inacreditável. Parece ação de inimigo infiltrado. Aliás, em parte, é isso mesmo. A máscara, essa fantasia de Durango Kid, de Zorro, de Tartaruga Ninja de esquerda, virou um passe livre não para andar de graça no circular, mas para qualquer um que queira instaurar a violência no meio da rua. Era tudo o que a criminalidade queria. A propósito, as notícias de que existem entre os mascarados dos quebra-quebras delinquentes já conhecidos nas delegacias não deveriam surpreender ninguém. Fantasiado de black bloc, o assaltante pode roubar o que bem quiser e disseminar o pânico. Foi assim que o crime sequestrou os protestos da cidadania.
A aliança crimino-estudantil não nasceu de um programa revolucionário, de uma inteligência, mas de uma política sem programa e sem pensamento, que resultou na antipolítica. Ela surgiu como um efeito colateral provocado pela pancadaria festiva, que fugiu ao controle dos que, dizendo não acreditar em controle, se imaginavam no controle da confusão. Alguns deles gostavam de falar que a tal da "mídia" promovia a "criminalização dos movimentos sociais". Pois bem, agora eles criminalizaram estupidamente um dos mais significativos movimentos de inconformismo que tivemos no Brasil. Criminalização dos movimentos sociais é isso aí, o resto é teoria da conspiração (que tem 0,1% de teoria e 99,9% de conspiração).
Sabemos todos que um toque de vandalismo sempre escapa a qualquer episódio em que as multidões se exaltam. É da natureza da coisa. Há brigas em estádios de futebol, assim como há socos no vizinho em shows de heavy metal e xingamento entre motoristas nos engarrafamentos. Até aí, nenhuma novidade. As manifestações de rua não são - nunca foram - celebrações de boas maneiras e de congraçamentos em câmera lenta, com as pessoas de olhos lânguidos, semicerrados, dando sorrisinhos zen umas para as outras. O problema, agora, é que o toque de vandalismo - que era absolutamente previsível e, por isso mesmo, um tanto inevitável - acabou virando a regra e tornando o todo inviável. Exatamente por isso é que podemos dizer que os entusiastas das máscaras como salvo-conduto para depredar todo o cenário acabaram fazendo o trabalho da repressão mais primitiva. Mandaram os manifestantes pacíficos de volta para casa e fizeram propaganda da polícia, da pior polícia que pode existir, aquela que se vale da força bruta para impor a ordem dos de cima contra a vontade dos de baixo.
Se fenecerem nesse esvaziamento patético, as manifestações de junho terão sido um malogro. Que grande pena. Sem gente na rua, gente de cara limpa, não será possível mudar o Brasil. Vivemos ainda num país que trata como se fosse rotina o fato de um tiro de policial, no exercício de sua função pública, matar um adolescente desarmado. Isso não escandaliza ninguém (escândalo é quando o cidadão desarmado bate no policial). Vivemos num país em que as autoridades estão aí, perdidas, atarantadas, sem saber como conter o caos das ruas. Um país em que a tropa de choque é treinada para ver no manifestante um inimigo - e onde os policiais se omitem criminosamente diante de tantos atos de vandalismo escancarado. Vivemos, enfim, num país que precisa mudar. Aí vêm os black blocs e expulsam das ruas os manifestantes pacíficos. Mesmo que involuntariamente, eles agem como os coveiros de uma esperança.
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