domingo, 6 de março de 2011

PÁGINA DAS MASMORRAS AINDA NÃO FOI VIRADA.

Essa semana, ao conceder habeas corpus a uma detenta que cumpria pena em regime fechado na Penitenciária Feminina de Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado, o relator do processo, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, precisou recorrer à obra literária O Processo, do consagrado escritor tcheco Franz Kafka, para evidenciar o disparate que estava sendo cometido contra a interna Adriene Martins Batista, que passou a ser preconceituosamente chamada, inclusive por alguns jornais, de “a beijoqueira”.


No clássico, Kafka narra a história do personagem Josef K., que se depara com situações surreais protagonizadas pela Justiça, uma instituição poderosa e quase sempre inacessível. No decorrer da estória, leitor e personagem tentam entender os motivos que “incriminam” K. no misterioso e absurdo “processo”.



A exemplo do personagem de Kafka, a interna da Penitenciária de Cachoeiro viveu situação semelhante perante um sistema prisional que continuam violando direitos e aplicando “leis próprias”, sem nenhum critério, que privam o interno do direito à ampla defesa.

Adriene, que foi que foi condenada a três anos e nove meses de prisão por envolvimento com o tráfico de drogas, deveria ter sido transferida do sistema fechado para o semi-aberto desde julho do ano passado, conforme estabelece a legislação. Entretanto, os temíveis PADs – Procedimentos Administrativos Disciplinares – impediram que a jovem de 23 anos fosse beneficiada com a progressão de pena.

A lei prevê que todo condenado tenha direito ao benefício, exceto os autores de crimes hediondos. O mérito deve ser analisado por um juiz, que poderá conceder ou não a progressão. Normalmente o juiz, entre outros aspectos, avalia o comportamento do interno para conceder a progressão. Por isso, uma a PAD, que tem o poder de “sujar” a ficha do interno, pode ser decisiva nessa hora.

Adriene colecionava 13 PADs. As mais emblemáticas, inclusive citadas no voto do desembargador, referem-se ao “desvio de comportamento” da interna, que segundo relatórios internos, “insistia” em beijar as colegas de cela “na marra”.

Em seu voto, Feu Rosa, que além de presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) é também presidente da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, adverte que havia um farto histórico de pedidos para que Adriene fosse submetida a um tratamento psiquiátrico. Há registros também dos familiares da jovem, que atestam que Adriene estava sucumbida a uma terrível depressão.

O desembargador adverte que não consta nenhum encaminhamento de Adriene ao médico. “Uma vez mais, e apesar da farta documentação acostada aos autos, não tive notícias de ter sido a paciente submetida aos devidos exames e eventuais tratamentos. Aliás, a notícia que tive foi a de que a paciente não foi encaminhada”, destaca o desembargador.

Em seguida, Feu Rosa ressalta que as faltas disciplinares “cometidas” pela interna não são detalhadas. “De plano, extrai-se que não foi remetido o termo de transcrição da falta disciplinar imputada no livro próprio, situação que impede o exercício do direito de defesa da reeducanda”, contesta a defensora.

Esta queixa, segundo o desembargador, foi apresentada pela Defensoria Pública em maior de 2010, mas “deu em nada”, aparentemente.

Segundo o desembargador, as demais queixas por cerceamento de defesa, firmadas pela Defensoria Pública, se repetiram outras sete vezes. Até que a defesa, saturada com o descaso da direção do presídio, desabafa: “(...) a defesa deixa de juntar cópia integral da Guia de Execução por ser humanamente impossível, já que a autoridade coatora não devolve os autos para o Cartório (...)”.

De acordo com Feu Rosa, a interna foi privada do seu benefício em função de “procedimentos decididos ao arrepio de tantas preliminares por cerceamento de defesa. O fato é que nosso sistema judiciário e penitenciário, na prática, penalizou a paciente com sete longos meses adicionais de regime fechado, em estabelecimento prisional situado no interior do Estado, distante de suas família e residência, por conta de tantos procedimentos disciplinares”.

Depois, Feu Rosa transcreve as “faltas” imputadas à interna com o objetivo de evidenciar que a maioria das PADs tem aparente motivo banal. Abaixo, destacamos alguns dos registros:

“Ao retornar do procedimento de banho a interna Viviane Nunes de Andrade deu um beijo pela portinhola na interna Adriene Martins Batista”

“Durante recolhimento das internas no banho de sol, a interna Viviane beijou na boca de Adriene, depois do convívio do jantar novamente”.

“A interna [Adriene] começou a gritar dentro da cela que queria falar com a senhora Leida [Leida Maria Ayres, diretora da unidade] sobre o filho dela, porque se não fosse atendida hoje ela bateria chapão”.

“A interna Adriene Martins Batista ... ao retornar para sua cela passa na cela 113B e pega a jarra de água e a enche, mesmo sendo advertida pelas agentes ... para que não o fizesse”.

“Durante o convívio da galeria B as internas Aline Tuzzi e Adriene Martins se beijaram”.

“As internas Adriene [aqui paciente], Marcilene e Viviane foram para o chuveiro e tomaram banho fazendo bagunça, gritando, dando gargalhadas e ao retornarem para a cela continuaram gritando se comunicando com as outras internas e Adriene parou na cela B112, levantou as pernas e disse que lavou bem a ‘changuinha’, tumultuando a galeria”.

“Consta ... que as internas brigaram dentro da cela, onde a interna Adriene mordeu a interna Luciana”.

Diante de cada uma dessas acusações, a Adriene apresentou a sua versão dos fatos. “Não nos cabe, aqui, analisarmos a verdade de cada um destes eventos, afinal, tudo ficou no clássico ‘palavra de um contra a palavra de outro’”, ponderou o desembargador.

Feu Rosa critica, porém, a profusão de procedimentos disciplinares imputados à interna em um curto espaço de tempo, além do evidente cerceamento de defesa em praticamente todos eles. Pesa ainda a desídia no fornecer de cuidados médicos à interna.

“Nossos sistemas judiciário e penitenciário tem sido, no mínimo, na melhor das hipóteses, de um rigor jamais visto”. O desembargador adverte, no entanto, que o rigor só é aplicado de um dos lados. Peço licença para concluir que, quanto à aqui paciente, ‘tudo dá em alguma coisa’”, provoca.

Em seguida, para ressaltar as distorções dos sistemas judiciário e penitenciário, Feu Rosa conta que tem recebido denúncias e fotografias dos mais horrendos crimes praticados sob as vistas destes mesmos sistemas.

Masmorras

Na metade do seu voto, que concederia o habeas corpus a Adriene, o desembargador passa a relacionar alguns casos emblemáticos de presos que foram vítimas de “crimes bárbaros” e “torturas cruéis” no sistema prisional capixaba. O magistrado cita o nome dos presos que foram brutalmente assassinados ou deixaram as prisões sequelados. Inclusive ele ilustra cada um dos casos com fotos (impublicáveis).

Após rememorar os escabrosos episódios, o desembargador interpela o Estado. Embora não cite nomes, o recado vai diretamente para o secretário de Justiça Ângelo Roncalli, que permanece com as chaves das “masmorras” na mão desde 2006. Foi sob sua gestão, endossada pelo ex-governador Paulo Hartung e agora pelo governador Renato Casagrande, que as violações extrapolaram as fronteiras do País e foram parar na Organização das Nações Unidas (ONU).

Questiona Feu Rosa: “Começo pela morte de Adriano Reis da Conceição, acima fotografado, morto na CASCUVI. Em que deu a morte dele? Teria sido suicídio?; Há também o caso do esquartejamento de Carlos Henrique Chagas, cujos restos mortais podem ser visto acima dentro de um caixote. Deu em quê?; E o que dizer do esquartejamento de Waldemir Chagas Telle? Os pedaços do seu corpo podem ser vistos acima, dentro de uma bombona. Aliás, este esquartejamento eu já registrara em voto outro, objeto de ampla repercussão na época. Pois é: e deu em quê? Quem foi punido? A Sociedade ainda não teve a devida resposta”, cobra o desembargador.

Na medida em que descreve os casos, a indignação do desembargador vai aumentando. Ao todo, Pedro Valls Feu Rosa recorda as trágicas histórias de 10 presos. Alguns dos casos relatados por Feu Rosa viraram reportagens de Século Diário. Como o episódio envolvendo Alexandre Estevão Ramos, que foi baleado por policiais militares no morro da Piedade, no Centro de Vitória, em março do ano passado. O jovem de 19 anos teve as duas pernas amputadas por conta de uma bactéria adquirida quando ficou sob os cuidados do Estado, no Presídio de Segurança Máxima I (PSMA-I), em Viana. Hoje vive em precária situação com a família e um bairro pobre da periferia da Serra. O Estado não deu até hoje nenhum apoio à família.

O desembargador condena a omissão do Estado ao relembrar das vítimas que foram sequeladas dentro do sistema prisional. “E o preso que perdeu uma perna enquanto sob os cuidados do Estado? Será que ele foi indenizado? Será que alguém acabou punido? Perder uma perna é pouco? Que tal, então, as duas? Será que também esta vítima do Estado foi indenizada? Alguém foi punido? Deu em que, esta barbárie?”, pergunta, inconformado, ao referir-se ao jovem Alexandre.

Para o desembargador, a página dessa recente história de violações de direitos ainda não foi dobrada. “Pior fica o quadro quando constatamos que este desfile de horrores continua, firme e forte, impávido como sempre, diria mesmo que inabalável”, protesta.

Para mostrar que as violações não acabaram com o fim da Era Hartung, Feu Rosa lembra que no início de fevereiro deste ano mais um preso foi encontrado morto com requinte de crueldade na Casa de Custódia de Vila Velha (Cascuvv). Marco Antônio de Moura, de 33 anos, estava preso desde agosto de 2010. O detento, que chegou a ser escalpelado, cumpria pena pelo crime de estelionato.

“Por favor, diante do estado do cadáver não se fale de alguma prosaica ‘briga entre presos’! Afinal, estamos a tratar de estabelecimentos prisionais controlados pelo Estado e fiscalizados pelo Ministério Público e Poder Judiciário. E o caso de outro preso, salvo engano de nome Valmir de Matos, em cujo ânus foi introduzido um cabo de vassoura? Isto aconteceu há poucos dias, e aqui perto. Em que está dando isso?”, pergunta, em tom irado, o magistrado.

Em seguida, ainda embalado pela indignação frente a tantos descasos, dispara: “Nos últimos tempos vi, também, o caso do detento que entrou na prisão andando e saiu paraplégico. Em outro voto, proferido já há alguns meses, comentei este episódio. Até onde sei, ainda hoje ele vive na miséria. Em que deu o caso dele? O que foi feito por ele?”.

Pedro Vall Feu Rosa, ao final do seu voto, estupefato com os próprios relatos, desabafa: “Cansei. Perdoem-me, mas cansei. Cansei de ver crimes os mais bárbaros, torturas as mais cruéis, frequentemente “darem em nada” por conta de sensibilidades políticas ou corporativas. Isso está errado. Isso não pode ser. Isso agride aquela maioria silenciosa das pessoas de bem”.

Após o desabafo, Feu Rosa retoma o caso de Adriene para comentar: “Sinceramente, eu não sei se Adriene beijou Viviane na boca ou na bochecha. Desconheço se ela encheu ou não uma jarra de água para outra presa. Não tenho como saber com certeza se ela tomou banho fazendo algazarra, ou não. E não faço a menor ideia dos motivos que causaram uma briga entre ela e Marcilene. O que sei - com plena certeza - é que ‘a página dela não vira’, e que ela está há sete meses sendo punida duplamente por conta de idênticas acusações, ao arrepio de princípios constitucionais os mais básicos”.

Na última sexta-feira (4), conforme publicado no blog de Elimar Cortês, Adriene já está em liberdade condicional. “Estou aliviada e agradecida à Justiça do Espírito Santo, que reconheceu que eu já deveria estar em liberdade”, disse Adriene ao blog. Ainda com marcas pelo corpo, que, segundo ela teriam sido feitas por outras duas presidiárias, Adriene garantiu que agora quer levar uma vida tranquila, ao lado dos filhos e do marido.


Reportagem publicada originalmente pelo SéculoDiario.com - http://bit.ly/hPjrF0


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