O ex-presidente Lula é alvo de críticas porque fez reunião com ministro do STF e a pauta da conversa teria sido o mensalão, escândalo que envolveu seu governo
Nos bastidores, o ex-presidente trabalhou para atingir aliados com CPI e pressiona ministro do Supremo para adiar julgamento do mensalão
Talvez "nunca antes na história deste país" a relação de um ex-presidente da República com o poder tenha ficado tão evidente aos olhos da nação. Trata-se da ativa atuação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mesmo em recuperação de um câncer na laringe, na criação e nos desdobramentos da CPI de Carlos Cachoeira no Congresso Nacional. Depois de arquitetá-la para pegar na curva adversários políticos ligados aos negócios e contratos suspeitos do contraventor e dublê de lobista sofisticado, eis que Lula agora aparece em uma constrangedora reunião com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O petista insinuou ao ministro, que outrora já o chamou "às falas", o adiamento do julgamento do mensalão em troca de não insuflar aliados na CPI a investigar uma viagem do casal Gilmar Mendes a Berlim. O tour ocorreu junto ao casal Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), supostamente bancado por Cachoeira - embora Gilmar negue. Lula, segundo os relatos, deixou claro ter controle político da CPI e ofereceu blindagem a Gilmar - já flagrado nos grampos com Demóstenes na crise de espionagem da Abin que derrubou Paulo Lacerda do comando da Polícia Federal.
Nos corredores do Congresso, é voz corrente que Lula agiu desde o começo incentivando a criação da CPI. Seu primeiro intento seria equilibrar o ambiente político com uma crise para a oposição administrar – a desmoralização do senador Demóstenes e os elos de Cachoeira com o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo. A CPI, assim, ajudaria a quebrar a pressão da opinião pública e até atrasar o julgamento do mensalão, escândalo de pagamento de propina a parlamentares e fraudes em contratos que abalou o primeiro mandato de Lula, em 2005.
A rede de Cachoeira cresceu
Para isso, Lula também teria tido a ajuda do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, indicado por ele e que só em março último apresentou a denúncia da Operação Vegas contra Demóstenes. Só que a CPI, mesmo modorrenta em primeiras sessões de bate-bocas e fatos sem relação com apurações, chegou aos governos de Agnelo Queiroz (PT-DF) e Sérgio Cabral (PMDB-RJ), sem contar que a empresa Delta, que teria Cachoeira como sócio oculto, foi a empreiteira com mais obras do PAC no governo federal. Para que não estoure mais sujeira, a Delta, apontada pela Polícia Federal como braço financeiro do esquema, está perdendo um contrato após o outro.
Agora, depois de repercutir no meio político e nas redes sociais, o encontro de Lula e Gilmar Mendes - articulado pelo ex-ministro Nelson Jobim, uma água nos bastidores - reposiciona os holofotes na CPI do Cachoeira. Não se sabe ao certo se o encontro foi intencional ou mesmo quem tocou no assunto mensalão. Fato é que o encontro "errado" não será esquecido até agosto, quando deve começar o julgamento dos 36 réus mensalão, entre eles José Dirceu (PT).
"É inconveniente julgar esse processo agora", teria dito Lula a Gilmar, tentando sensibilizá-lo a assumir uma posição técnica, não política. Um efeito imediato de adiá-lo seria eliminar dois votos pró-condenação: os dos ministros Ayres Brito e Cézar Peluso, que se aposentarão em breve. Advogados advertem da forte chance de condenação e prisão de réus. Lula, temeroso de que o desfecho do mensalão carimbe a imagem de seu próprio governo, até teria mandado emissários sensibilizarem a ministra Cármem Lúcia.
Sem ingenuidades
Também soou estranho a um ministro do Supremo, que se reserva a receber advogados, ir ao encontro de Lula. Gilmar, aliás, já ajudou o PT rejeitando a denúncia contra Luiz Gushiken no mensalão, votando a favor de Antonio Palloci e recusando denúncia contra Aloisio Mercadante. Da reunião pipocarão especulações, mas não se pode crer na ingenuidade de nenhum dos três presentes, mesmo que o ato de Lula, urdido como infalível, tenha lhe escapado ao controle.
A CPI não deve convocar Gilmar. E, por ora, Cachoeira silenciou, mas continua sendo um homem-bomba. Estendeu suas ligações na política a ponto de tramar a derrubada de um ministro dos Transportes e de querer Demóstenes prefeito de Goiânia e até ministro do Supremo, não sem antes filiá-lo ao PMDB para aproximá-lo da presidente Dilma Rousseff (PT).
"Eu sabia que Cachoeira era contraventor do jogo do bicho. Não suspeitava dos tentáculos além de Goiás: Brasília, Rio, Delta. É um Marcos Valério mais sofisticado, com penetração no poder e que se infiltrou nos governos dando dinheiro para campanhas", diz um deputado sobre o perfil do bicheiro preso. A propósito, a CPI dos Anões do Orçamento (1993) foi a última com algum resultado de longo prazo: a lei de licitações, que, aliás, à luz da farra de contratos públicos fraudados como os revelados neste caso, urge ser revisada.
Desde o fim do Estado Novo, em 1946, o Congresso fez dezenas de CPIs, que são rotina. O que causa enorme interesse agora é o mensalão, prestes a ser julgado pelo STF. Em paralelo, na CPI do Cachoeira, a sociedade se pergunta por que governadores e parlamentares foram se envolver com um contraventor. Ainda não se pode falar em pizza, pois a função da CPI é apurar e não punir, mas não se deve esperar nenhuma grande transformação, já que o relatório final da CPI seguirá para o Judiciário, onde novo processo se inicia. O problema é se o inquérito da CPI só apresentar indícios, e não provas: aí perde-se o interesse público e o caso é esquecido. Por enquanto, nos primeiros dias de trabalho, a CPI foi a mais lenta em 20 anos, e o que está ocorrendo é para "espantar burguesia". Não houve conclusão alguma até agora. Quanto ao governo temer uma devassa na Delta, acho difícil o Planalto controlar tudo. Pior mesmo foi o encontro de Lula com Gilmar Mendes. Foi lamentável Lula, num relacionamento não democrático, tentar forçar um ministro a manobrar julgamento. Lula não se controla, errou muito e não se convenceu de que seu mandato acabou. Este encontro não mudará os rumos da CPI, mas o STF vai dar uma resposta: o processo do mensalão está findo e as provas, corrigidas. O Supremo não tem decepcionado a opinião pública e age com equilíbrio e muita cautela.
Cachoeira
Acusado de comandar a exploração do jogo ilegal em Goiás, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, foi preso na Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, em fevereiro, 8 anos após divulgação de vídeo em que Waldomiro Diniz, assessor do então ministro da Casa Civil, José Dirceu (PT), lhe pedia propina. O escândalo culminou na CPI dos Bingos e na revelação do suposto esquema de pagamento de parlamentares conhecido por mensalão.
Dia D de Demóstenes
Escutas telefônicas da PF apontaram contatos entre Cachoeira e o senador Demóstenes Torres (GO). Reportagens afirmaram que o grupo de Cachoeira forneceu telefones antigrampos para políticos, entre eles Demóstenes, e que o senador pediu ao empresário que lhe emprestasse dinheiro e vazou informações reservadas de reuniões.
Quebra de sigilo Demóstenes saiu do DEM e o PSOL representou contra ele no Conselho de Ética. As denúncias começaram a atingir outros políticos, agentes públicos e empresas. Após a publicação de suspeitas de que a construtora Delta, maior recebedora de recursos do governo federal nos últimos anos, faça parte do esquema de Cachoeira, a empresa perdeu contratos.
Governadores
O vazamento das conversas apontam encontros de Cachoeira com os governadores Agnelo Queiroz (PT), do Distrito Federal, e Marconi Perillo (PSDB), de Goiás. Em 19 de abril, o Congresso criou a CPI mista do Cachoeira. Após um primeiro mês de marasmo e troca de farpas entre membros, o depoimento dos governadores e a quebra de sigilo do comando central da Delta podem provocar estragos.
Impacto no Planalto
O que a CPI produzir pode trazer problema para Dilma. A Delta é a empreiteira favorita dos políticos governistas. "Tiraram o gênio da lâmpada e não sabem como colocar dentro de volta", diz um deputado.