Envio o relato que escrevi como voluntária nos esforços de socorro às vítimas nas áreas mais afetadas de Teresópolis, dias após as chuvas que assolaram a região.
17 de janeiro de 2011
Nunca vi nada igual. Posse, Caleme e Campo Grande praticamente soterradas. Um rio caudaloso onde não havia rio, um campo de pedras onde antes ficava uma fileira de casas, dois metros de lama por quilômetros e quilômetros vale abaixo.
Olhando pra cima, uma geografia violenta: a montanha sucumbiu à chuva e partiu-se em dois. O barranco estatelou-se no chão do vale, e a encosta de cá agora é côncava. Uma poeira fina e alaranjada recobre cada folha que restou.
Fincados no lodo: pedregulhos do tamanho de carros, carros virados de cabeça pra baixo, toras atravessando telhados. Muitas casas parecem intactas, só que a linha da água nas paredes está mais alta do que a das portas. Outras moradias ficaram escondidas sob camadas de lama tão pegajosa que, quando piso numa área molhada, é preciso duas pessoas para soltar a galocha.
No final do vale, o rio novo se despeja pela porta de um motel, atravessa o que ficou dos quartos e sai pelos fundos. Fora o borbulho da água, há apenas um silêncio medonho, entrecortado pelo barulho dos helicópteros que sobrevoam o vale (e não pousam).
O caminho, a pé, é difícil, e nós o percorremos debaixo de um sol a pino, mas não temos escolha. Postes e árvores foram arrancados do solo e carregados feito gravetos pela enxurrada. Presos entre as raízes, os detalhes mais difíceis: um pote de condicionador, fotos de uma moça sorridente e muito grávida, uma fantasia do Homem-Aranha. E, por todo o vale, aquele cheiro indescritível. Devíamos ter trazido máscaras, mas estão em falta aqui na serra.
O número de mortos é, sem dúvida, muito maior do que as estimativas atuais. As escavadeiras ainda nem chegaram aos lugares por onde andamos: sobre a pista de lodo e entulho que a avalanche deitou no vale, sobre casas e ruas soterradas. Pompéias.
E a prefeitura, lá no centro da cidade? Apaixonada pela própria burocracia, exigindo cadastro de quem distribui e documento de quem recebe (mas muitos perderam tudo, inclusive carteira de identidade), bloqueando a Cruz Vermelha e atrapalhando a distribuição de donativos. Um monopólio doentio.
Desabrigados e órfãos ainda sobrevivem sem assistência adequada do estado, e o socorro foi praticamente terceirizado. As igrejas, as ONGs que surgiram ao longo da semana, os mações e as associações-- estão todos fazendo um belo trabalho, mas a coordenação entre os grupos ainda é fraca. A sociedade civil pode preencher algumas lacunas deixadas pelo estado em tempos de emergência, mas a organização desses esforços depende de um centro eficaz e inteligente. A assistência, onde ela existe, permanece fragmentada.
No Pedrão, onde (até ontem) eram acolhidos os desabrigados: milhares de pilhas de roupas sobre as arquibancadas. Tudo meticulosamente organizado. Do lado de fora, sob uma tenda, crianças arrebentadas por correntezas estão sendo cadastradas, cadastradas, cadastradas Homens vagam pelo estacionamento com o olhar perdido, mulheres esperam na porta do ginásio pedindo fraldas e camisetas. Voluntários e funcionários alocam os mantimentos com afinco, mas têm pouca informação. Para onde estão sendo enviados os desabrigados? "Não sabemos informar." E as famílias que não conseguem chegar aqui, recebem esta ajuda? "Não sabemos informar."
Dentro do trailer no pátio, assistentes sociais e voluntários preenchem maços de fichas. Famílias atordoadas recitam as suas perdas. Os parentes viram nomes, as casas viram endereços, rotinas viram profissões. Vidas transformam-se em dados. Na parede, um cartaz feito a mão: "Todo voluntário deve cadastrar-se com a T___.". Perguntamos pela T___. "Não veio hoje." Veio ontem? "Também não." Outro cartaz: "Encaminhamento para abrigos." A mesa embaixo, desocupada.
Na saída, uma senhora, aos prantos, vê que temos celular e nos pede para tentar localizar o filho desaparecido. Ela tira do bolso um papel dobrado, mas o número de contato foi borrado pela chuva, e não conseguimos descifrar a sequência.
Resolvemos bater à porta do secretário. Ninguém é capaz de nos mostrar uma lista dos abrigos. Precisam de psicólogas? Subimos a serra com seis! Todas prontas para atender as crianças órfãs, qualquer pessoa que precise de ajuda. Ninguém da prefeitura fornece informações. "Vamos marcar reunião para amanhã, e depois avisamos." Algumas das voluntárias, impedidas de atender as vítimas e temendo a chuva forte que se aproxima, voltam pro Rio.
Por toda a cidade: caminhões do exército levam soldados sem pás nem máquinas adequadas. Moradores de máscara cirúrgica procuram corpos em zonas interditadas pela defesa civil. Alguns grupos de policiais vagam pela cidade, abanando as mãos, enquanto voluntários têm que driblar as autoridades para entregar água, soro e feijão de moto ou a pé.
A situação na serra é bem pior do que tinha imaginado. Já trabalhei em campos de refugiados e zonas pós-conflito. E repito: nunca vi tamanha destruição. Nem, devo acrescentar, tanto descaso por parte de um governo que dispõe dos recursos materiais e humanos necessários para, no mínimo, organizar os esforços e donativos oferecidos por um batalhão de voluntários.
3 pensamentos avulsos:
- O que aconteceu não é surreal: é real. O lodo, as crianças, os abrigos estão lá. Não é a cólera de deus, não é cenário de filme, não é campo de guerra, não é o Haiti. É a serra fluminense, e parte dela foi destruída, e ainda está sofrendo terrívelmente.
- Se não canalizarmos a atual onda de solidariedade para exigir mudanças a longo prazo, ano que vem estaremos lá de novo, estarrecidos com novas perdas e com a nossa própria incapacidade (falta de vontade? apatia coletiva? amnésia seletiva?) de aprender com os erros do passado. Mais uma vez.
- Os sentimentos mais úteis no momento são: a fúria e a esperança. O resto é comodismo.
Adriana Erthal Abdenur
Professora de Desenvolvimento Internacional na Columbia University em Nova York e voluntária em Teresópolis da ONG Salve a Serra
17 de janeiro de 2011
Nunca vi nada igual. Posse, Caleme e Campo Grande praticamente soterradas. Um rio caudaloso onde não havia rio, um campo de pedras onde antes ficava uma fileira de casas, dois metros de lama por quilômetros e quilômetros vale abaixo.
Olhando pra cima, uma geografia violenta: a montanha sucumbiu à chuva e partiu-se em dois. O barranco estatelou-se no chão do vale, e a encosta de cá agora é côncava. Uma poeira fina e alaranjada recobre cada folha que restou.
Fincados no lodo: pedregulhos do tamanho de carros, carros virados de cabeça pra baixo, toras atravessando telhados. Muitas casas parecem intactas, só que a linha da água nas paredes está mais alta do que a das portas. Outras moradias ficaram escondidas sob camadas de lama tão pegajosa que, quando piso numa área molhada, é preciso duas pessoas para soltar a galocha.
No final do vale, o rio novo se despeja pela porta de um motel, atravessa o que ficou dos quartos e sai pelos fundos. Fora o borbulho da água, há apenas um silêncio medonho, entrecortado pelo barulho dos helicópteros que sobrevoam o vale (e não pousam).
O caminho, a pé, é difícil, e nós o percorremos debaixo de um sol a pino, mas não temos escolha. Postes e árvores foram arrancados do solo e carregados feito gravetos pela enxurrada. Presos entre as raízes, os detalhes mais difíceis: um pote de condicionador, fotos de uma moça sorridente e muito grávida, uma fantasia do Homem-Aranha. E, por todo o vale, aquele cheiro indescritível. Devíamos ter trazido máscaras, mas estão em falta aqui na serra.
O número de mortos é, sem dúvida, muito maior do que as estimativas atuais. As escavadeiras ainda nem chegaram aos lugares por onde andamos: sobre a pista de lodo e entulho que a avalanche deitou no vale, sobre casas e ruas soterradas. Pompéias.
E a prefeitura, lá no centro da cidade? Apaixonada pela própria burocracia, exigindo cadastro de quem distribui e documento de quem recebe (mas muitos perderam tudo, inclusive carteira de identidade), bloqueando a Cruz Vermelha e atrapalhando a distribuição de donativos. Um monopólio doentio.
Desabrigados e órfãos ainda sobrevivem sem assistência adequada do estado, e o socorro foi praticamente terceirizado. As igrejas, as ONGs que surgiram ao longo da semana, os mações e as associações-- estão todos fazendo um belo trabalho, mas a coordenação entre os grupos ainda é fraca. A sociedade civil pode preencher algumas lacunas deixadas pelo estado em tempos de emergência, mas a organização desses esforços depende de um centro eficaz e inteligente. A assistência, onde ela existe, permanece fragmentada.
No Pedrão, onde (até ontem) eram acolhidos os desabrigados: milhares de pilhas de roupas sobre as arquibancadas. Tudo meticulosamente organizado. Do lado de fora, sob uma tenda, crianças arrebentadas por correntezas estão sendo cadastradas, cadastradas, cadastradas Homens vagam pelo estacionamento com o olhar perdido, mulheres esperam na porta do ginásio pedindo fraldas e camisetas. Voluntários e funcionários alocam os mantimentos com afinco, mas têm pouca informação. Para onde estão sendo enviados os desabrigados? "Não sabemos informar." E as famílias que não conseguem chegar aqui, recebem esta ajuda? "Não sabemos informar."
Dentro do trailer no pátio, assistentes sociais e voluntários preenchem maços de fichas. Famílias atordoadas recitam as suas perdas. Os parentes viram nomes, as casas viram endereços, rotinas viram profissões. Vidas transformam-se em dados. Na parede, um cartaz feito a mão: "Todo voluntário deve cadastrar-se com a T___.". Perguntamos pela T___. "Não veio hoje." Veio ontem? "Também não." Outro cartaz: "Encaminhamento para abrigos." A mesa embaixo, desocupada.
Na saída, uma senhora, aos prantos, vê que temos celular e nos pede para tentar localizar o filho desaparecido. Ela tira do bolso um papel dobrado, mas o número de contato foi borrado pela chuva, e não conseguimos descifrar a sequência.
Resolvemos bater à porta do secretário. Ninguém é capaz de nos mostrar uma lista dos abrigos. Precisam de psicólogas? Subimos a serra com seis! Todas prontas para atender as crianças órfãs, qualquer pessoa que precise de ajuda. Ninguém da prefeitura fornece informações. "Vamos marcar reunião para amanhã, e depois avisamos." Algumas das voluntárias, impedidas de atender as vítimas e temendo a chuva forte que se aproxima, voltam pro Rio.
Por toda a cidade: caminhões do exército levam soldados sem pás nem máquinas adequadas. Moradores de máscara cirúrgica procuram corpos em zonas interditadas pela defesa civil. Alguns grupos de policiais vagam pela cidade, abanando as mãos, enquanto voluntários têm que driblar as autoridades para entregar água, soro e feijão de moto ou a pé.
A situação na serra é bem pior do que tinha imaginado. Já trabalhei em campos de refugiados e zonas pós-conflito. E repito: nunca vi tamanha destruição. Nem, devo acrescentar, tanto descaso por parte de um governo que dispõe dos recursos materiais e humanos necessários para, no mínimo, organizar os esforços e donativos oferecidos por um batalhão de voluntários.
3 pensamentos avulsos:
- O que aconteceu não é surreal: é real. O lodo, as crianças, os abrigos estão lá. Não é a cólera de deus, não é cenário de filme, não é campo de guerra, não é o Haiti. É a serra fluminense, e parte dela foi destruída, e ainda está sofrendo terrívelmente.
- Se não canalizarmos a atual onda de solidariedade para exigir mudanças a longo prazo, ano que vem estaremos lá de novo, estarrecidos com novas perdas e com a nossa própria incapacidade (falta de vontade? apatia coletiva? amnésia seletiva?) de aprender com os erros do passado. Mais uma vez.
- Os sentimentos mais úteis no momento são: a fúria e a esperança. O resto é comodismo.
Adriana Erthal Abdenur
Professora de Desenvolvimento Internacional na Columbia University em Nova York e voluntária em Teresópolis da ONG Salve a Serra
QUE A DOR QUE SE APOSSOU DOS BRASILEIROS DIANTE DE ESTRONDOSA TRAGÉDIA SIRVA COMO ENSINAMENTO PARA A CONSCIÊNCIA POLÍTICA E DE CIDADANIA E SE TORNE REAL NAS PRÓXIMAS ELEIÇÕES PARA PREFEITOS E VEREADORES DE TODAS AS CIDADES DESTE PAÍS EM BUSCA DE UM #BRASILDECENTE E EXTIRPANDO O #BRASILIMORAL DE SUA BIOGRAFIA.
ResponderExcluirMARISA CRUZ
Tal calamidade será soterrada por outras avalanches de notícias e cairá no esquecimento como ficou a tragédia do Morro do Bumba e outras. Infelizmente somos movidos apenas por emoções e isso, as emissoras de televisão sabem manipular muito bem. A busca pela audiência é igual a urubus na carniça. Enquanto houver corpos soterrados, os urubus estarão de prontidão.
ResponderExcluirTem falado a dois anos,no TT,sempre batendo nessa tecla"O BRASIL NÃO TEM UM PLANO DE GERENCIAMENTO DE CRISES" Japão é exemplo nesse setor,conta com metodologia prórpria diante de castástrofe com furacão,tem reservas logísticas estratégicas à serem mobilizadas em tempo hábil,existem treinamentos para a população.Pois bem!o PMDB no meu estado consolidou toda a etrutura política e administrativa da mãquina.Não existem oposição,falar em uma é utopia,quem se atreve sofre consequências diversas.São poucos aqui que colocam a cara.O PR talvez seje a única saída para a mobilização de uma oposição desmantelada.O Resto estão em situação cômoda. Imprensa não noticia com imparcialidade, sabe-se lá porque>Leio a folha de Sao Paulo, quando quero saber notícias imparciais sobre meu estado.O qude fazer diante de um quadro com esse?Ter que lutar contra a máquina sem articulação partidária? O Povo Quando começa a reclamar, eles inventam Viradão do samba,do rock,funk etc. uma semana de circo de graça,só se lembram que estavam errados quato a escolhas de seus representates quando o lixo e os morros desabam sobre suas cabeças.Amigo Doutor! Aqui quem se atreve partir para a briga corre risco "Os anos de chumbo voltaram" só que dessa vez com a esquerda no poder. Tudo por que lutei no passado está indo por água à baixo,lutamos por um país democrático!O que vemos?tentativas de cercear liberdade de imprensa e outras coisas mais.Contrôle da mídia,tentativas de controle à Justiça,chegará o tempo que embargaram o Congresso Nacional.E não temos um nome Capaz de vencer esse estado de coisa.Armas que temos é potente mas ainda não sabemos atirar(Internet).Se nos mobilizarmos nacionalmente elegemos quem bem entendemos para todas as Bancadas do Do Executivo?Legislativo. as falta uma bandeira para motivar essa grande articulação.Entregamos seguidores na mão de uma só pessoa,quendo deveríamos entregar nas mãos de uma organização de pessoas.Logo não vejo esperanças à médio prazo, a menos que nos organizermos agora,e recuperar o que entregamos de mão beijadas, sugiro Criação da Frente Democrática Independente. articulada a partir desse espaço para eleger nossas bancadas,poderá ser ligada a um Partido que esteja nos parãmetros programático dessa frente,se assumimos a internet agora,temos o controle da situação.Pensem nisso.
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