domingo, 3 de novembro de 2013

INDICADA PELO MST, EX-ASSENTADA HOJE É MÉDICA EM CUBA

Indicada pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), Sheila deixou um assentamento de Apiacá, no Estado, para cursar faculdade em Cuba


Sheila Ramos Vieira, 25 anos, torce para que o tempo passe depressa e ela possa concluir logo o maior projeto da sua vida. Há seis anos, Sheila deixou o Assentamento Santa Fé, em Apiacá, no Sul do Espírito Santo, para cursar Medicina na Escola Latino Americana de Medicina (Elam), em Cuba, onde sua formatura acontecerá em agosto de 2014. Sheila é filha de Maria Ramos Vieira, 46, coordenadora do assentamento e ligada ao Movimento Sem terra (MST). A mãe fala com orgulho da jovem – a mais velha dos seus quatro filhos –, a primeira a conquistar um diploma de curso superior na família. Por telefone, Sheila contou para A GAZETA como é sua vida na ilha de Fidel e sobre sua expectativa de voltar ao Brasil para exercer aqui sua carreira.


Foto: Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal
Sheila admite que sua vida em Cuba a fez compreender a ideologia do país e a ver que há razão no que o governo cubano pratica



Quando você foi para Cuba?
Deixei o Brasil quando estava com 19 anos de idade. Cinco pessoas do Espírito Santo estavam no mesmo grupo. Eu era de Apiacá, e as outras eram de São Mateus, de Linhares e de Vitória.

Todas foram estudar Medicina?
Sim, todas tinham esse objetivo. Naquela época, ao todo, vieram do Brasil 280 estudantes, todos para fazer o mesmo curso. Só alguns – não sei dizer quantos – desistiram.

De que forma essas pessoas foram indicadas?
Um desses capixabas que viajaram comigo é ligado ao Movimento de Pequenos Agricultores (MPA); um é ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), o outros a prefeituras – não lembro bem. Eu vim por minha ligação com o Movimento dos Sem Terra (MST).

E você. Como foi sua indicação?
Fiquei sabendo de três companheiras do MST do Espírito Santo que estavam estudando em Cuba, e como eu era da área da Saúde, no movimento, tinha esse sonho também. Quando surgiu a vaga, o pessoal do setor de Saúde perguntou se eu queria, eu disse: “Claro que sim!”. Uma das capixabas que estudavam em Cuba, quando eu vim, fez o processo de revalidação do diploma para o Mato Grosso, a outra foi para o Ceará, mas a terceira não sei hoje onde está.

Você era militante?
Minha família e eu, há muitos anos, somos ligados ao MST, que tem vários setores. Eu atuava do setor da saúde. Quando o governo cubano ofereceu a bolsa de estudos, o MST do Espírito Santo me indicou. Então, a Embaixada de Cuba fez uma seleção, com entrevista e aplicação de prova de conhecimentos gerais.

Como foi sua formação estudantil?
Fiz o ensino médio em Apiacá, no Espírito Santo, em escola pública. Mas em Cuba, durante um ano fiz um curso com aulas de Física, Química, Biologia e Espanhol, como se fosse um pré-vestibular para o curso de Medicina, que tem seis anos de duração.

Foi difícil a sua adaptação aos estudos?
No início, foi difícil. Não dominava o idioma, não conhecia ninguém. A adaptação longe da família, sabendo que tinha mais seis anos pela frente, não foi mesmo fácil.

Você se sentia preparada, com o seu nível de conhecimento?
Cursei ensinos fundamental e médio em Apiacá, e a gente sabe que a escola pública no Brasil não dá muita base para o os alunos. Imagine, então, a dificuldade que é para alguém como eu entrar numa faculdade de Medicina. A salvação em Cuba foi o cursinho preparatório que eu fiz.

E como foi e ainda é o nível de cobrança na faculdade cubana?
Em Cuba eles são muito exigentes. Na faculdade, se você não faz bem alguma coisa é chamado a atenção, é cobrado. E estar longe da família – eu só pude ir ao Brasil a cada dois anos – é muito sofrido. Houve dia em que até chorei.

O que você planeja fazer após se formar?
Se eu quisesse – embora hoje não seja fácil conseguir –, poderia ficar em Cuba por mais dois anos, além da graduação, fazendo o curso de MGI, que no Brasil se chama Saúde da Família. Mas eu quero mesmo é voltar para o meu país.

E, no Brasil, você vai buscar atuar no Programa Mais Médicos?
Quero sim. Vai ser preciso obter o número do registro. Não sei se as pessoas sabem, mas a prova piloto aplicada no Brasil é muito difícil. Alguns médicos já disseram que essa prova tem nível alto, de uma residência médica. Eu sei que vou ter que batalhar muito, que terei que me empenhar para conseguir. Mas vou tentar, com certeza.

Como é o curso de Medicina em Cuba, em comparação com o Brasil?
Há algumas diferenças entre os dois. Em Cuba, não recebemos formação em algumas patologias, nas áreas de epidemiologia e infectologia. Enfermidades como cólera, hanseníase, malária, pelo avanço da Medicina aqui, muito raramente, aparecem. Acontece, às vezes, mas por causa da vinda de turistas. Então a gente não aprende sobre essas doenças. O forte em Cuba é a prevenção, é a atenção básica. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC), por exemplo, pode ser evitado se há cuidados preventivos.

Quando será sua formatura? Sua família irá?
Vou terminar meu curso e me formar em agosto de 2014. Mas acho que ninguém da minha família vai poder vir a Cuba para participar da formatura.

Como é o seu dia a dia em Havana?
Também por ter que morar longe da minha família, do meu país, me dedico muito mais aos estudos, em Cuba. Estou no sexto ano de Medicina, e a minha rotina é a seguinte: vou bem cedinho para o hospital, volto para casa às quatro horas da tarde, e, uma vez por semana, faço um plantão de 24 horas. E, durante o tempo livre que a gente tem, é preciso estudar, porque temos que nos preparar para seminários na faculdade.

Como você vive?
Vivo numa residência com outros estudantes de Medicina, pessoas de várias nacionalidades. Há muito mais latino-americanos no grupo. São porto-riquenhos, peruanos, guatemaltecos. Tem também argentino, paraguaio, venezuelano. O governo cubano dá a residência, alimentação. A faculdade empresta os livros. Após conclusão de uma disciplina, devolvemos para um colega estudar.

Como você avalia a sua formação?
O governo cubano quer formar médicos humanistas, que atendam os pacientes com sensibilidade, o que não acontece na maioria dos países, onde os médicos são um pouco arrogantes, não estão muito preocupados com as pessoas. É essa a minha formação: humanista.

Você estará preparada para, no Brasil, atuar num pronto-socorro, fazer um parto?
Em Cuba aprende-se de tudo um pouco. O profissional tem condições de diagnosticar o que o paciente tem para, depois, ser tomada outra medida. Eu, no sexto ano, estou revendo cirurgia, ginecologia e obstetrícia, MGI, medina interna, que é a clínica geral, no Brasil. E estou sim, sendo preparada em Cuba para fazer um parto, atuar em certas emergências cirúrgicas.

Como é viver e trabalhar num país com restrição? Como você se informa?
A gente só pode usar a intranet, para fazer pesquisa, estudar. Recebo e mando e-mails para a minha família, mas não tenho acesso a informações pela internet, não acesso redes sociais. Também posso falar com minha família, no Brasil, pelo telefone. É que com o bloqueio econômico dos Estados Unidos, em Cuba só alguns lugares têm internet, entende?

Que informações você obteve sobre a receptividade dos médicos cubanos no Brasil?
Ouvi dizer que no Sul do Brasil eles foram bem recebidos – acho que no Rio Grande do Sul –, mas que em outro Estado, Pernambuco ou Ceará, foram vaiados por médicos brasileiros no aeroporto. Parece que uma pessoa chamou um doutor cubano de escravo. Não sei se porque ele era negro ou sobre o que a mídia informou sobre eles.

A informação é que médicos recebem em torno de R$ 70 mensais em Cuba.
É mais ou menos isso que os médicos recebem por mês. Mas é que o custo de vida é bem menor do que no Brasil, e a situação econômica cubana é difícil. A remuneração é de acordo com a condição do país.

Você está pronta para enfrentar desafios? Trabalhar em áreas distantes, carentes?
Voltando para o Brasil, estou disposta a trabalhar em qualquer lugar. Nossa, já passei tanta dificuldade na minha vida, que trabalhar numa comunidade muito carente não vai ser nada complicado.

Como foi sua infância. Você sonhava ser médica?
Sempre pensei em estudar, em ser uma médica, mas, ao mesmo tempo, achava que não seria possível, que era algo muito distante da minha realidade. Nasci no Assentamento Georgina, em São Mateus, no Espírito Santo. Não dava para sonhar muito naquela situação. No Brasil, com certeza, seria muito difícil para mim fazer um curso de Medicina. Mesmo que eu passasse no vestibular, não teria como comprar livros, pagar moradia, me manter. Minha infância e adolescência foram muito pobres.

Além de acadêmica, sua formação envolve também orientação político-ideológica?
A gente, na convivência, acaba entendendo a ideologia cubana. Olha, essa é uma questão diária de quem está no país. Não há como não aprender. Você começa a compreender as coisas, a ver que há muita razão, que o que o governo prega está certo.

O que trará na “bagagem” para divulgar?
Acho que vai valer a pena contar para as pessoas o que considero positivo. Por exemplo: em Cuba não tem analfabeto, as pessoas têm direito à saúde – são atendidas quando precisam. E também têm direito de fazer uma faculdade.

Mas não há unanimidade do povo cubano em relação ao regime.
Todo ser humano é ambicioso, e em Cuba, embora a maioria compreenda o sistema, algumas pessoas não conseguem compreender. Querem sair, trabalhar em outros países.

Você é ambiciosa? Quais são seus desejos?
Não me acho ambiciosa. Meu sonho, além de trabalhar na minha profissão, é ter uma vida melhor do que eu tinha antes, no Brasil. Tenho vontade de ter uma casa melhor, garantir uma vida melhor para a minha família. Mas não tenho ambição de ter vários bens
Cláudia Feliz - A Gazeta

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