domingo, 18 de setembro de 2011

FILHOS DO PRECONCEITO.

Geraldina Galazzi

Maria Aparecida (à direita) foi separada da mãe, Geraldina

Afastados dos pais ao nascer, eles querem ser indenizados

Era somente por trás de uma grade que os pais de Maria Aparecida Galazzi, José Irineu Ferreira e Paulo Sérgio de Oliveira podiam vê-la. Nos "encontros" mensais, repletos de lágrimas, não havia abraços ou qualquer tipo de toque. A hanseníase, que fez os adultos serem confinados como num campo de concentração nazista no Hospital-Colônia Pedro Fontes, em Cariacica, também condenou as crianças ao isolamento. Assim que nasciam, eram retiradas dos pais e enviadas ao Educandário Alzira Bley.

Maria Aparecida Galazzi foi uma delas. Aos 56 anos, não consegue chamar de mãe dona Geraldina, 75 - sem uma das pernas por causa da hanseníase -, embora viva com ela desde a adolescência. "Cuido, mas não tenho o sentimento, entende? Meus irmãos também não...", justifica-se.

José Irineu, 62, e Paulo Sérgio, 43, também cresceram sem colo ou carinho de pai e mãe no Alzira Bley. "O Estado foi negligente com a gente", dizem eles. José Irineu garante que só sobreviveu porque era amamentado por uma lavadeira do educandário. Mas seus dois irmãos teriam morrido no local porque lhes faltara leite.

À força
Lucimar Teixeira da Silva, 54, também sofreu com a hanseníase que fez seu pai ser levado à força, pela polícia sanitária, desestruturando sua família. Ela e uma irmã foram levadas para o Alzira Bley. "Minha mãe, com quem perdi contato, morreu há anos. E meus sete irmãos sumiram", lamenta.

Até hoje, na tentativa de libertar-se dos "fantasmas" da infância no educandário, submete-se a tratamento psiquiátrico. O quarto escuro com baratas, castigo pelo xixi no colchão, é um deles. José Irineu também lembra da carência que o fazia até comer terra no internato.

Ele e Paulo saíram do educandário aos 17 anos; Lucimar, aos 20. Com Maria Galazzi, integram um grupo de quase 40 mil filhos brasileiros separados de pais que tiveram hanseníase, e reivindicam do governo pedido de perdão e indenização financeira pela violência a qual foram expostos.

Uma doença de origem milenar

Foi em homenagem ao médico norueguês Gerhard Hansen que deu-se o nome hanseníase à doença causada pelo Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen.

Contágio
As referências mais remotas da doença datam de 600 a.C. O bacilo é transmitido por gotículas de saliva quando a pessoa fala, espirra ou tosse.

Sintomas
Um dos primeiros sintomas é a perda da sensação térmica em uma parte do corpo. Além da pele, a doença afeta o sistema nervoso periférico. É tratada com antibióticos, entre 6 meses e 1 ano.

Locais
Há 36 colônias no Brasil. Em 1893, foi inaugurado em São Paulo o Desinfectório Central (foto), uma das instituições pioneiras na área do serviço sanitário.
Política

Na última quinta-feira, uma audiência pública presidida pelo deputado Hercules Silveira - ex-diretor do Pedro Fontes - levou à Assembleia Legislativa do Espírito Santo cerca de 20 dessas pessoas.

A separação forçada foi uma decisão de governo, por meio da Lei 610, de 1949, que fixava normas para a profilaxia da então chamada lepra, doença milenar. A mesma lei impôs a internação compulsória dos hansenianos.

Tão cruel quanto o isolamento é saber que embora a cura da doença tenha sido descoberta na década de 1940, a lei só foi revogada em 1962, e apenas em 1976 abriram-se as colônias às comunidades. E o pior: há registros no país de filhos separados dos pais até 1983, em Goiânia.

Em 2007, um decreto assinado pelo presidente Lula deu aos doentes internados compulsoriamente, até 1986, direito à pensão vitalícia mensal de dois salários mínimos.

O Brasil pode tornar-se o primeiro país a fazer o mesmo em relação aos filhos separados dos pais. Mas não há dinheiro no mundo que pague tamanha dor.

Memória viva
Lembranças desses terríveis anos de confinamento são encontradas na antiga colônia, hoje bairro Padre Matias, em Cariacica, de onde pode-se ver, à distância, o Educandário Alzira Bley.

Lá, entre outros, estão Natal da Silva Castro, 76, e sua mulher Maria, 66. Ele, de Mimoso do Sul, interior do Espírito Santo; ela, de Nova Horizonte, Minas Gerais, internados na colônia na adolescência.

Maria chegou com a mãe, também infectada, e Natal, sozinho, ao lugar onde casaram e tiveram dois filhos. "Não pude beijá-los nem amamentá-los", lamenta a mulher, que viu seus bebês serem levados ainda na maternidade.

A colônia tinha vida própria: igreja, hospital-maternidade, delegacia e as casas onde homens e mulheres viam seus corpos manifestar as sequelas de uma doença que, ainda hoje, registra no Brasil, por ano, cerca de 47 mil casos novos - no Espírito Santo foram 1.026 em 2010.

Aureni Castro Rocha, filha de seu Natal e dona Maria, viveu no Alzira Bley por três anos e hoje coordena o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em Cariacica. Teve sorte, porque seus pais desligaram-se da colônia por 22 anos, e puderam criá-la.

"Vivemos um holocausto brasileiro. Dizem que meus 2 irmãos morreram, mas ninguém viu a certidão de óbito deles"

José Irineu Ferreira, 62, aposentado
Adoção forçada

Muitas crianças, segundo o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, teriam sido dadas em adoção, mas a seus pais informava-se que haviam morrido. Em busca dos desaparecidos, está sendo montado um banco genético.

José Augusto Gomes da Silva, 45, que desde os 17 anos, quando saiu do Alzira Bley, desconhece o destino de cinco de seus oito irmãos, cedeu material para a busca.

Ele admite sofrer de transtorno mental por causa do sofrimento de anos longe dos pais doentes. "Fui expulso da Marinha após um oficial saber que era filho de leproso", diz, indignado.

Banho de álcool
Também por causa do seu "pai leproso", por ordem da gerente da loja que a demitiu, Lucimar teve que tomar banho de álcool. Desde então, aprendeu a mentir sobre sua origem. Por anos, nem o marido sabia a sua história.

José Irineu e Paulo Sérgio lembram que há filhos separados hoje mendigando, dependentes de álcool e drogas. São "órfãos" da hanseníase por quem busca-se o resgate da dignidade.





Claudia Feliz - A Gazeta


 

Um comentário:

  1. Olá!Sou professora no oeste do Paraná, estamos envolvidos numa Gincana da Hanseníase, com 35 equipes de 13 municípios participando.. Vou colocar o link desse seu post no nosso site para os estudantes e professores usarem como material de apoio. Um grande abraço.
    Se quiser dar uma olhada no site da Gincana
    www.gincanahanseniase2012.wordpress.com

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