sábado, 23 de abril de 2011

MASSAS ISOLADAS.

No mês passado, a construção das Usinas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, foi interrompida por uma greve geral no canteiro das obras. O conflito levou à destruição pelo fogo de alojamentos, equipamentos e materiais. Para acalmar as tensões e reduzir os impactos, dezenas de milhares de trabalhadores foram retirados da área. As construtoras, o governo, as centrais sindicais e os sindicatos locais estabeleceram linhas de comunicação direta para tentar solucionar os problemas que originaram a situação e retomar os trabalhos.


Em nosso país sempre houve abundância de mão de obra, mas essa situação se inverteu nos anos recentes. O excesso de trabalho foi substituído por escassez, inclusive do trabalho menos qualificado.

Numa conjuntura assim, o poder de barganha dos trabalhadores aumenta, as greves se tornam mais frequentes e os salários crescem. É muito provável que a pressão no mercado de trabalho explique a greve. Entretanto, a escassez de mão de obra não precisaria descambar para o conflito aberto e a violência dramática e generalizada. A explicação para a intensidade do conflito deve estar relacionada a fatores mais profundos e menos conjunturais.

Ao tomar conhecimento das notícias do Rio Madeira, não pude deixar de me lembrar de um texto antigo, que propunha o conceito de "massa isolada" para explicar por que determinados grupos de trabalhadores tinham maior propensão à greve (*).

A "massa isolada" é caracterizada por isolamento geográfico (como os trabalhadores do Madeira) e, principalmente, pelo isolamento social. São grupos de trabalhadores que veem à sua volta massas de companheiros iguais a eles, todos condenados a passar sua vida nos mesmos empregos de baixa qualidade, sem esperanças de ascensão econômica e social. Essas percepções são agravadas quando perdem a esperança de receberem das empresas em que trabalham um tratamento menos distante e impessoal. A percepção de um destino comum pouco esperançoso leva os grupos isolados ao conflito, o mecanismo à mão para tentar solucionar seus problemas.

Os autores do artigo contrapunham à "massa isolada" os trabalhadores integrados na sociedade, com bons empregos, boas condições de trabalho, tratados com justiça e igualdade pelas empresas e governantes. A sociedade oferece a esse grupo um amplo repertório de mecanismos para encaminhar demandas sem ter de recorrer ao conflito aberto e violento. A mensagem é clara: se uma sociedade quer desenvolvimento econômico, não pode deixar de incluir aqueles que o constroem. Deve pagar-lhes bons salários e oferecer-lhes boas condições de trabalho. Mas, acima de tudo, deve oferecer-lhes canais abertos e democráticos para expressar demandas e apresentar suas pautas, e isso tem de começar no próprio local de trabalho.

O Brasil negligenciou historicamente a importância estratégica da gestão das relações de trabalho. Temos preferido deixar essas questões para o litígio na Justiça, um recurso útil, depois do estrago feito. Quando o conflito chega ao impasse, convoca-se a Justiça para resolvê-lo. Isso nós sabemos fazer e nisso somos muito bons. Mas temos feito pouco para prevenir e administrar as divergências entre trabalho e capital.

No nosso modelo de relações de trabalho, há pouco espaço para a negociação prévia, para o diálogo institucionalizado, para a gestão estratégica das divergências. A ausência de mecanismos e de rotinas para a administração preventiva do conflito trabalhista é ilustrada dramaticamente nos conflitos do Rio Madeira. Mais uma vez, projetos importantes para o desenvolvimento do País enfatizam aspectos técnicos e relegam aspectos trabalhistas. O resultado é custoso: uma obra tão importante teve de ser interrompida por falta de instrumentos que, se existissem, poderiam ter evitado o desastre. Pior: o governo e as construtoras anunciaram que reduzirão o ritmo das obras porque não têm recursos institucionais para administrar a dimensão trabalhista envolvida. Para chegar à solução negociada houve necessidade, inclusive, da intervenção de auxiliares diretos da presidente da República e do próprio ministro do Trabalho. Depois da porta arrombada, foram convocados os mais altos escalões da República para apaziguar os ânimos e encontrar soluções.

O atraso institucional nas relações de trabalho custa caro ao País. Milhões de pequenas reclamações são transformadas em processos na Justiça do Trabalho. Para nós, parece natural que seja assim. Mas a verdade é que, na grande maioria dos países, as reclamações individuais nem chegam aos tribunais porque são tratadas e resolvidas por meio de canais apropriados nas próprias empresas, diretamente entre as partes. Ao tratar e resolver os pequenos conflitos do dia a dia, as empresas e os trabalhadores desses países evitam que as tensões se acumulem e se transformem em grandes divergências. E, mesmo quando acontecem, estas dificilmente se transformam em conflitos abertos, porque o diálogo contínuo cria em geral um clima de confiança, uma ética e um ritual para tratar civilizadamente as diferenças.

A necessidade de intervenção do alto escalão da administração pública num episódio que deveria ser rotineiro, se tivesse sido tratado com instrumentos preventivos, indica que estamos desaparelhados e muito atrasados nesta área e, portanto, precisamos empreender rapidamente uma trajetória de aperfeiçoamento institucional.

No próximo mês de agosto, São Paulo será sede de um importante evento, o 7.º Congresso Regional das Américas de Relações de Trabalho e Emprego (www.irca.com.br). O evento é promovido pela International Labor and Employment Relations Association (Ilera), com sede em Genebra, Suíça, e organizado pela Associação Instituto Brasileiro de Relações de Emprego e Trabalho (Ibret). Dele participarão especialistas de todo o mundo que estarão debatendo as questões trabalhistas atuais.

Será uma ótima oportunidade para conhecer como alguns dos países participantes conseguiram substituir suas massas isoladas por trabalhadores produtivos, participantes e integrados na sociedade.

*O texto referido é The interindustry propensity to strike: an international comparison, de C. Kerr e A. Siegel, publicado no livro Industrial Conflict, editado por Arthur Kornhauser em Nova York, 1954.

Hélio Zylberstajn - O Estado de S.Paulo





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