sábado, 10 de dezembro de 2011

O NOCAUTE DAS ESTRELAS

Ao propagarem a desinformação em vídeo sobre a usina de Belo Monte, atores viram piada na web. Mas o papelão rendeu boas lições

Você já ouviu falar da hidrelétrica de Belo Monte? A pergunta, feita pela encantadora atriz Juliana Paes, foi ouvida 3,2 milhões de vezes nas últimas duas semanas. Ela abre um vídeo com cinco minutos de duração em que dezenove atores e atrizes do elenco da Rede Globo se revezam para discutir a construção de Belo Monte, a usina que está sendo erguida no Rio Xingu, no interior do Pará. Não é um assunto propriamente eletrizante nem algo que pareça capaz de arrebatar o público majoritariamente jovem da internet. Mas a popularidade dos atores, somada a uma peculiaridade do filme - o flagrante desconhecimento que seus protagonistas demonstraram sobre o assunto -, acabou por transformar o vídeo em um marco da internet brasileira. Se a disseminação do conhecimento é a mola propulsora da humanidade, a propagação da ignorância às vezes também funciona.

Foi o que aconteceu diante da tagarelice bem intencionada dos atores. Aos espectadores com um mínimo de familiaridade com o tema, as falas alarmistas em defesa "dos índios, dos rios e da Floresta Amazônica" soaram ingênuas e equivocadas, quando não francamente constrangedoras - como no momento em que um dos atores confunde o Pará com Mato Grosso e outra afirma que hidrelétricas não produzem energia limpa. Esse desfile de desinformação incomodou outra turma, aquela que usa a cabeça também para pensar. Foi assim que o vídeo dos atores rendeu outros três sobre o mesmo tema, feitos por universitários que aprenderam ser a lógica o melhor balizador de opiniões. Munidos dessa ferramenta, os estudantes levaram a nocaute os atores, ou melhor, as "celebridades" - essa categoria "superconetada com esses assuntos de ecologia", como ironizou o humorista Rafinha Bastos, outro que se juntou à turma da razão em feliz imitação, também em vídeo, de celebridade-desmiolada-que-abraça-qualquer-causa-politicamente-correta, mesmo sem ter a mais pálida ideia do que se trata.

Os vídeos dos estudantes, ao contrário do filme dos atores, foram precedidos por pesquisas e trazem cálculos e informações hidrológicas e geográficas que ajudam a entender o que é Belo Monte e quais são as suas implicações. Completos e exatos, colocados no ar na internet na hora certa, os vídeos podem até levantar a suspeita de ter sido patrocinados pelos maiores defensores da usina, o governo e as suas construtoras. Não existe, porém, nenhum indício de que os estudantes não tenham reagido espontaneamente à baboseira dos artistas globais. O primeiro vídeo foi feito por Cássio Carvalho, um engenheiro de 25 anos que vive em Brasília. Na ponta de uma caneta hidrográfica, ele mostrou que o impacto ambiental da construção de Belo Monte que vem sendo alardeado é um exagero. Gravou seus cálculos, como em uma aula, e postou a sequência no YouTube. Em seguida, alunos de engenharia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo. entraram na discussão. "Quando vimos tantas informações erradas divulgadas por atores famosos, ficamos assustados. As pessoas confiam neles. Fizemos o vídeo para esclarecê-las"", diz a estudante Roberta Valezio, de 19 anos, que participou da gravação da Unicamp. Outra turma de engenharia, desta vez da Universidade de Brasília (UnB), fez o mesmo. Somados, o vídeo dos atores e as respostas a ele alcançaram 4,3 milhões de visualizações em quinze dias. Para efeito de comparação, registre-se que o hit humorístico Tapa na Pantera (2006). Um dos maiores sucessos da internet brasileira, foi visto até hoje 7 milhões de vezes.

Com a fundamental diferença de que se tratava de uma deliciosa e rematada bobagem, feita (propositadamente) para provocar risos. A série de filmes sobre Belo Monte é de outra natureza: trata-se de uma discussão de interesse público e que foi reconhecida como tal pelos frequentadores da rede, como mostra o impressionante número de acessos aos vídeos. "O que aconteceu é algo totalmente inédito no Brasil", afirma Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas. A internet já havia servido de palco para um debate nacional em 2010, quando 2 milhões de pessoas assinaram a petição da Lei da Ficha Limpa. Neste ano, nova mobilização na rede ajudou a divulgar o Movimento contra a Corrupção, que levou milhares de brasileiros às ruas. A diferença é que, naqueles casos, havia um consenso em torno do tema. Desta vez, o que ocorreu foi um debate. "Foi a primeira vez que pessoas se reuniram na internet para discutir um assumo controverso e de relevância nacional", diz Daniel Domeneghetti, fundador do E-Consulting Group, empresa líder em estratégia de comunicação pela internet.

Ao se consolidar, a discussão sobre Belo Monte passou a girar em torno de três eixos: 1) A usina é necessária? 2) Há alternativas melhores do que ela? 3) Qual será o real impacto de sua construção? Cálculos simples deixam claro que a resposta à primeira questão é um peremptório sim. Sem novas fontes de energia, o Brasil não poderá crescer 5% ao ano na próxima década, como prevê o governo e esperam os brasileiros. Diz o economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega: "A humanidade passou quase 3000 anos com renda e expectativa de vida estagnadas. Três fatores mudaram esse cenário: o fortalecimento das instituições, o avanço da ciência e o aumento na produção de energia. Um mundo sem energia é um mundo de trevas". Sob esse aspecto, Belo Monte é um gigantesco farol: terá potência média de 4571 megawats - o suficiente para prover 40% de todo o consumo residencial do Brasil. No país, só Itaipu produz mais energia.

Quando à segunda questão, a que trata da possibilidade de fontes alternativas, a resposta é simples: a energia produzida pelas águas dos rios amazônicos é hoje a mais limpa e mais barata das opções. "Países desenvolvidos usaram todo o seu potencial hidráulico e só depois buscaram outras fontes. No Brasil, usamos apenas um terço do que podemos", diz Maurício Tomalsquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). As outras fontes ou são mais poluentes, como o carvão, ou mais caras, como a energia solar. "Para instalar painéis capazes de captar a mesma energia que será produzida em Belo Monte, seria preciso investir 274 bilhões de reais - dez vezes o custo da usina", diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. A energia eólica é uma aposta mais realista para o futuro. Na última década, o seu custo de produção caiu pela metade. Hoje, ela ainda é mais cara do que a hidrelétrica, mas deve tomar-se competitiva assim que condições técnicas e financeiras possibilitarem a ampliação da sua escala de produção. As hélices, porém, exigem condições de vento muito favoráveis, só encontradas em alguns pontos geográficos, e nunca serão a única fonte de energia de um país, pois o regime de ventos é incontrolável.

Qual será o real impacto de Belo Monte? É risível a argumentação de que as tribos indígenas da região serão "arrancadas como uma mandioca da terra", como disse o ator Sérgio Marone, que escreveu o roteiro do vídeo dos atores com base em informações fornecidas por uma ONG. Primeiro porque nenhum dos 2200 índios da região vive na área a ser alagada. Aliás, eles estão satisfeitos com a obra. "A usina vai melhorar a nossa vida", disse a VEJA o cacique Manuel Juruna, de 68 anos. "Ela vai trazer mais progresso para nossa aldeia."

Quase metade da área de 520 quilômetros quadrados a ser inundada por Belo Monte faz parte do próprio leito do rio. A outra metade é coberta por pasto, lavouras de cacau e mata nativa. Ainda assim: será inevitável a remoção de famílias que vivem na periferia de Altamira, às margens do Rio Xingu - e em condições que em nada lembram o cenário idílico das novelas. As casas da região equilibradas sobre palafitas não têm saneamento básico. A água usada e os dejetos que os moradores produzem vertem de canos de PVC diretamente no Rio Xingu. Num desses trechos, na semana passada, a dona de casa Sandra Cardoso de Lima lavava a louça e limpava um peixe, com metade do tronco submerso no rio. Perto dali, outras mulheres faziam o mesmo, rodeadas por crianças que brincavam em meio aos dejetos despejados pela vizinhança. "Não sei ainda aonde vão me botar, mas sei que a nossa vida vai melhorar", diz Sandra. A reação via internet dos estudantes que sabem fazer contas é um fenômeno que já produziu boas lições. Uma delas é lembrada pelo filósofo Dens Rosenfield: "Na internet, cada vez mais, quem fala sem saber o que está dizendo fica sujeito a ser desmentido rapidamente". Outra é que o ambiente virtual não altera uma lei que sempre vigorou no mundo físico: à luz da razão, não há sombra que consiga se fazer passar por realidade - nem quando envolvida pelo talento de bons atores e atrizes.

Fonte: Revista Veja
Com reportagem de Kalleo Coura, Júlia Carvalho e Júlia de Medeiros

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