domingo, 1 de setembro de 2013

MISSÕES DE MÉDICOS NO ESTRANGEIRO NA VISÃO DOS CUBANOS

"Mãe, o que você acha de Carlos David?", pergunta Laura, 25, com uma barriga redonda em um vestido florido, a Ana, uma médica de 49 anos que deixará Havana rumo ao Brasil no dia 10.

"Gosto muito", diz a médica, que diz que o terceiro neto nasce em novembro. "Com o primeiro foi o mesmo. Eu estava na Venezuela, mas pude vir para o parto. Foi bom. Agora não sei como vai ser."

Não só Ana, funcionária de um hospital de Havana, mas também seu marido, em missão técnica pelo governo de Cuba num país africano, podem perder o nascimento.
A médica não tem dúvida, no entanto, de que valerá a pena ser um dos 4.000 profissionais recrutados por Cuba para o Mais Médicos.

Ela diz não saber quanto ganhará no Brasil. Ouviu que serão US$ 1.000 (R$ 2.380) dos US$ 4.201 (R$ 10 mil) que o governo brasileiro pagará ao cubano por médico, mas isso não lhe importa.

"Por pior que seja o país, vale a pena. Sempre o salário vai ser maior do que aqui. E o que ganhamos vale muito aqui em Cuba. Além do mais, é uma coisa que não é fácil de entender. Nós somos formados desde pequenos com outra ideia de medicina, gostamos de servir", diz Ana.

Sem os sete anos em que ela e o marido passaram na Venezuela, em missão similar a que cumprirá no Brasil, ela jamais compraria a casa própria subsidiada pelo Estado no valor de US$ 4.000.

Em Cuba, há duas moedas vigentes. O peso cubano, da maioria dos salários e de alguns produtos básicos, e o CUC, equivalente ao dólar, que compra tudo o mais.
A médica, com mestrado em emergências médicas e professora, ganha algo como US$ 26 mensais --ou R$ 62.
Editoria de Arte/Folhapress

META DE VIDA

O único nome real do relato acima é o do bebê. Ana, seus familiares e os demais profissionais de saúde cubanos ouvidos pela Folha em Havana mantêm o anonimato por não estarem autorizados a falar com a imprensa.

Em muitas das histórias, a conclusão de Ana se repetiu. Enquanto ao chegar ao Brasil profissionais cubanos foram chamados de "escravos" nesta semana, viajar ao exterior como funcionário do governo, mesmo sob restrições, é algo disputado.

No caso dos médicos, pode ser a oportunidade de fugir de salários irrisórios e de dois ou três bicos. Mais importante: pode ser a chance de obter o dinheiro que não conseguiriam a vida toda.

"Todos os cinco que trabalham comigo têm outros trabalhos. Um vende perfume, o outro é carpinteiro, outra aluga equipamento de som e outro é taxista. Eu, que estudei para ter meu dinheiro e ser independente, vivo do meu marido, que tem curso técnico", explica a pediatra Consuelo, 43, que tenta se inscrever de maneira independente no Mais Médicos.

Consuelo conta que as ferramentas do médico-carpinteiro e o equipamento de som do colega empreendedor foram conquistas dos dois após voltarem da missão na Venezuela, onde, como Ana, ganhavam US$ 200 (R$ 476).

A família em Cuba recebia até US$ 100 (R$ 238) mensais. Todos ganham ainda um cartão que dá 30% de desconto nas lojas dolarizadas.
Para Roberto Veiga, editor da influente revista cubana ligada à igreja "Espacio Laical", é razoável que o governo cubano cobre um "imposto" dos médicos que leva para trabalhar no estrangeiro.

E o governo conseguiria esse recrutamento se o salário em Cuba fosse maior?
"Os baixos salários são a expressão-chave da crise econômica. Mas, ainda que houvesse em Cuba a possibilidade de um salário digno, creio que a superpopulação de médicos faria a possibilidade de trabalho no exterior atrativa, talvez de outra maneira", diz.

Pavel Vidal Alejandro, economista cubano que atua em universidade da Colômbia, diz que para explicar o fenômeno inteiro é preciso voltar à queda da URSS, quando a ilha comunista perdeu seu aliado político e econômico. Os salários são hoje 70% do que eram em 1989 e os preços se multiplicaram por oito.

"É verdade que os médicos cubanos vão receber no Brasil bem mais do que recebem em Cuba. Mas também é verdade que o Estado também vai receber bem mais alto rendimento. A empresa estatal tem um modelo de rentabilidade de negócio baseado em baixíssimos salários. O que está ocorrendo é uma extensão desse modelo, levado à Venezuela, ao Brasil."

Nos anos 90, ocorreu uma mutação em Cuba. A despeito do acesso universal à carreira universitária, as profissões foram divididas em duas categorias básicas: as que poderiam gerar rendimentos em dólares e as que não podiam.
Os médicos, elite do Estado e ponta de lança da diplomacia comunista, ficaram no lado mau da balança, com salários irrisórios e proibidos de buscar emprego no único oásis da crise: o turismo.

Os anos 2000, e o convênio estratégico de Cuba com a Venezuela, que levaria 30 mil profissionais de saúde por ano, mudou o quadro e melhorou o status da profissão.
Agora, cursar medicina pode ser também o começo de uma trajetória que terminará em uma missão externa.

O incentivo é uma ajuda no esforço do governo para garantir o preenchimento das vagas abertas em medicina nas 13 universidades médicas espalhadas pelo país, 25 faculdades de medicina, 4 de odontologia e 4 faculdades de enfermagem.

Segundo o governo, 47.676 estudantes de medicina começarão o ano letivo amanhã e 10.374 estrangeiros --a maioria deles selecionado por parceiros políticos, como PT e PC do B no Brasil e FMLN, de El Salvador.

Ainda assim, chegam a sobrar vagas de medicina. Pelo menos é o que diz a cubana Ana (nome fictício), selecionada para o Mais Médicos, que é docente. Ela diz que, ao contrárioda sua época, agora alunos que não conseguiram entrar em outras carreiras acabam em medicina.

A médica de 49 anos rebate às críticas de que a produção em massa de médicos debilita a formação.
Para a pesquisadora americana Julie Feinsilver, autora de estudos como "Fifty Years of Cuba's Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism" (50 anos de Diplomacia Médica: do Idealismo ao Pragmatismo), a flexibilidade do sistema de saúde e sua revisão constante são um dos trunfos locais.

Com a crise dos anos 90, a atenção primária foi ainda mais focada na prevenção de doenças e na análise territorial e comunitária dos fatores de riscos de saúde, um princípio básico do ensino local.

"Esse tipo de abordagem ampla é precisamente o que melhor funciona nas comunidades que os cubanos devem atender no Brasil, muito mais do que um modelo mais clínico e curativo. Claro que os cubanos também são treinados para isso, mas a ênfase é mais atenção primária do que medicina de ponta".

Sheila González caminha sob o sol a pino, rodeada de edifícios em ruínas, escombros quase bonitos de um bombardeio que não ocorreu.
Grávida de Daniel há sete meses, a futura mãe vive em uma zona pobre no centro da capital cubana, Havana.

Carregando o almoço do dia, Sheila pode ser considerada o símbolo do sistema de saúde cubano que, ao lado da educação, é hoje a maior bandeira dos guerrilheiros que chegaram ao poder em 1959.

No país que ostenta uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil do continente, é prioridade zero cuidar da gravidez da moça de 27 anos, mãe solteira, técnica em recursos humanos.

"Minha ginecologista e a médica da família são muito exigentes. Estão atentas a tudo. Ao meu peso, ao peso dele, à minha pressão. Sei que meu filho está em boas mãos, antes e depois de nascido", conta Sheila, que, abaixo do peso ideal no começo da gravidez, entrou num programa estatal que reforça a dieta, com almoço diário.

"Gosto do meu país. Não falo mal do governo. Falo o que acho que tem que melhorar", diz ela. E começa a citar o salário de US$ 15, a cesta básica para gestantes que é insuficiente e por que duvidou em ter mesmo Daniel.
Flávia Marreiro/Folhapress
Cubana Sheila González, 27, grávida de sete meses, segura almoço reforçado que ganha do Estado após avaliação nutricional
Cubana Sheila González, 27, grávida de sete meses, segura almoço reforçado que ganha do Estado após avaliação nutricional

"Minha mãe teve duas filhas, e em condições melhores do que eu", diz, em declaração emblemática -a natalidade em Cuba cai, e a população, também por causa das migrações, encolhe.

Em outras palavras, se a atenção médica não falta e é universal, o sistema de saúde tampouco está imune à precariedade de recursos por causa da crise econômica.

A infraestrutura, em muitos lugares, não difere dos edifícios decrépitos do centro de Havana. Médicos não reclamam em público, mas enviam "revolucionariamente" cartas ao governo falando das condições em que trabalham.
Sem falar dos salários baixíssimos e dos plantões não remunerados que fazem.

Para completar, a exportação de médicos em massa, intensificada na última década, também é um fator de pressão no sistema. Sheila se queixa. "Muitos médicos bons se foram. Muitos só pensam de forma gananciosa."

Em outra ponta da cidade, a professora Alina Guerra, 56, diz que médico nunca faltou, mas ela só voltou a se consultar quando Dorália, sua médica, voltou da Venezuela.
Para a pediatra Consuelo (nome fictício), a exportação de médicos ao Brasil terá efeitos concretos. Quando dois de seus companheiros forem ao Mais Médicos nos próximos meses, ela conta que vai dobrar os plantões.

"Os cubanos brincam dizendo 'Vai à Venezuela fazer o que?', o amigo responde 'Em uma missão?', e ouve: 'Não, vou ver meu médico'."
De acordo com a pesquisadora Julie Feinsilver, autora de estudos sobre a saúde na ilha, não é possível dizer se falta médico ou se é apenas uma questão de percepção, por causa da má distribuição.

Para ela, o sistema de saúde é um dos aspectos que dão legitimidade ao governo. Segundo Feinsilver, "a saúde da população cubana" é, para o governo dos irmãos Castro, "uma metáfora da saúde do corpo político" da ilha.

Fonte: Folha de São Paulo

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