OBRIGADO MEU PAI

Alfredo Chaves, pequeno município no centro sul do Espirito Santo, ano de 1957, madrugada fria, silêncio absoluto, de repente um canto de galo, uma voz ao meu lado diz, olhe meu filho, o seu galo já está cantando. Esta é a lembrança mais presente em minha memória, dos meus tempos de criança, ali estava eu, respiração dificil, chiando como um gato, consumido por uma bronquite que me acompanhou até a adolescência, e sentado ao meu lado estava o meu pai, acompanhando meu sofrimento e tentando me confortar com seu amor e seu carinho, já que muito não podia fazer, pois naquela época os medicamentos para essa doença não tinham praticamente nenhuma ação, ainda não tinha nebulização, broncodilatadores potentes, bombinhas, me lembro perfeitamente do xarope que tomava, dispneitrat, que hoje como médico sei que não tinha ação nenhuma contra a falta de ar que tanto me fazia sofrer, imagino o sofrimento e impotência que meu pai devia sentir.

Meu pai sempre foi muito presente em nossa vida, promotor de justiça numa época em que a profissão não tinha o glamour de hoje, chefe de uma família numerosa, somos em 12 irmãos, sempre foi nosso médico, barbeiro, professor, protetor, sempre foi o intermediário pacificador entre nossas peraltices e o gênio esquentado de nossa mãe. Passava as noites trabalhando em intermináveis processos, já que durante o dia era impossível fazê-lo pois a bagunça que fazíamos era tanto que não conseguia concentrar-se em pareceres e sentenças do seu ofício,

Promotor respeitado, temido, justo, protetor da sociedade, jamais permitiu ou foi conivente com abusos de autoridade ou maus tratos dos presos por policiais, implacável , dono de uma eloquência invejável, seus júris eram assistidos por seus alunos da faculdade de Direito, dono de um senso de justiça inquestionável, foi por muitas vezes escoltado por policiais em juris de réus poderosos e também humildade em pedir absolvição por não achar provas de culpa de outros réus, não queria ter na consciência o peso da condenação de inocentes.

Todos os conceitos que norteiam a minha vida, não foram aprendidos em escolas ou igrejas, foram ensinados por ele, assim o respeito à vida alheia, a honestidade, o respeito aos mais velhos, a compaixão, a verdade por mais dura que fosse, a obediência, a lealdade e o amor à família , foram ensinamentos que nos passou não só com palavras mas com exemplos, ainda me lembro de algumas frases como, "não queira para os outros o que não quer para você" ou "a vida é um dom de Deus e só ele pode tirá-la", "não queira um tostão que não é seu, mas brigue por centavos que lhes são de direito", estas são apenas alguns conselhos que me vêm à mente nesse momento.

Hoje, aos 93 anos, isolado do mundo pelo Mal de Alzheimer, transformou-se numa criança, contenta-se em comer, beber e dormir, olhar perdido, sem lembranças, mergulhado sabe-se lá em que mundo, volta e meia tem lapsos de memória, quer saber dos filhos, chega a  conversar para logo voltar ao seu mundo e ignorar a todos nós, que doença terrível essa que apaga todas as lembranças de uma vida inteira e iguala uma mente tão brilhante à de uma criança de 2 ou 3 anos.

Hoje é dia dos pais, fui vê-lo e mal olhou pra mim, não esboçou um sorriso sequer, não demonstrou emoção alguma, é como se me enxergasse e não me visse, eu que já sou pai e avô, voltei triste, mas feliz por apesar de tudo tê-lo ainda entre nós, como um símbolo vivo de tudo que se pode esperar de um verdadeiro pai em todos os sentidos. 

Recentemente perdemos dois irmãos, e pelo menos nos resta o consolo de que a doença o poupou de um sofrimento que tenho certeza não suportaría, Daria tudo pra ver em seu rosto a felicidade que vi no dia em que foi comigo conferir o resultado do vestibular e com minha aprovação, abraçou-me, beijou-me e simplesmente falou, parabéns Doutor!

Feliz dia dos Pais Dr. Sobreira, que Deus nos dê a felicidade de ainda compartilhar de sua presença por muitos e muitos anos.