Os recentes episódios no Rio de Janeiro envolvendo a "guerra" ao tráfico ganharam uma dimensão de espetacularização, sendo propalada pela mídia como um episódio histórico para a segurança pública no Brasil,. Foi denominado como o "Dia D", tomando emprestado, de forma ilusória e midiática, uma referência histórica da Segunda Guerra Mundial (a batalha de Normandia).
Contudo, por trás dessa "retomada histórica" se encobre uma triste constatação: a falência do Estado brasileiro. Sim, pois o domínio que o tráfico exerceu por tanto tempo nas comunidades carentes do RJ - e de outros Estados - se deve a uma completa ausência do Estado social em tais comunidades, nas quais faltam direitos fundamentais básicos para a pessoa humana, como saúde, educação, alimentação, moradia, enfim, uma vida com um mínimo de dignidade.
Realmente, os moradores dessas comunidades no Brasil só conhecem o Estado policial. Assim, a ausência do Estado social acaba sendo terreno fértil para o avanço dos traficantes (agora também os milicianos), que vão dominando as regiões, cooptando os moradores, seja por meio de prestações sociais populistas e ilusórias (se apresentando como "amigo" e protetor das comunidades), seja por meio da violência extrema (como inimigo daqueles que ousam resistir ao seu domínio).
Essa ausência do Estado social ocorre em primeiro lugar pela histórica ineficiência do Poder Público (em todas as suas esferas). As causas dessa ineficiência são conhecidas, destacando os casos de loteamento dos cargos públicos, por meio de apadrinhamentos, e excesso de cargos comissionados e de contratações temporárias no serviço público, numa burla ao princípio da obrigatoriedade dos concursos públicos.
Mas não é só, pois um dos principais fatores da ausência do Estado social se dá pela corrupção endêmica que assola o Brasil, impedindo que as promessas sociais cristalizadas na Constituição cidadã saiam efetivamente do papel, alcançando principalmente aquela camada da população que mais reclama uma atuação positiva do Estado social. Pessoas invisíveis e indesejáveis para muitos; "sepultados vivos" em sua miséria e desesperança; esquecidos sociais; órfãos de Estado, desprovidos de mínima dignidade.
Evidentemente que no caso do RJ o Estado precisava reagir (não cabe aqui discutir a forma), para, assim, resgatar sua própria imagem e confiança perante o cidadão. Porém, fica a esperança de que essa reação não seja somente por parte do Estado policial. É fundamental que também o Estado social reaja, chegando finalmente a essas pessoas.
Fica a esperança de que o Estado policial também dirija suas baterias contra a criminalidade de poder, em especial os sanguessugas e ratazanas do erário, os "assaltantes de gravata", os políticos que, traindo o povo, usam do seu mandato para se enriquecer.
Fica a esperança de que algum dia exista no Brasil um "Dia D" contra a corrupção; contra as verdadeiras organizações criminosas que se instalam nas entranhas dos poderes públicos, o que é fundamental para o avanço do Estado social e a contenção do Estado policial, proporcionando um equilíbrio no qual a dignidade humana finalmente seja uma realidade para todos, e não para uns poucos.
Gustavo Senna é promotor de Justiça, mestre em Direito e professor da FDV
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