O Estado de São Paulo
Uma boa maneira de resumir o que se vem passando no Brasil nestes últimos meses é recorrer à metáfora utilizada por Royer-Collard, no início do século 19, para simbolizar as desgraças e a dinâmica ensejadas pela Revolução Francesa: “A democracia”, dizia o grande precursor dos doutrinários, “é um rio que corre com as margens cheias.”
Essa é a nossa “democracia de massas”, acelerada, ao longo dos últimos oito anos, pelo fenômeno do lulopetismo. Torrente verbal de linguajar chulo e de eterno palanque; de iniciativas mal costuradas (o tal de Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, que influencia o desempenho do País na esfera econômica, com gastança descontrolada jamais vista); de propostas sensatas no terreno macroeconômico (que vieram do passado recente, ao ensejo das reformas social-democratas promovidas notadamente pelos anteriores governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, destacando-se nesse contexto o Plano Real); de pregação messiânica que pretendeu fazer do retirante nordestino ocupante do Palácio do Planalto o novo salvador da Pátria; de favores oficiais distribuídos a esmo com a única finalidade de consolidar um eleitorado subserviente; de jacobinismo em alta por parte da coorte safada de “mata-mosquitos” do presidente populista; de corrupção generalizada, justificada pela revanche ideológica que tem embalado o discurso dos novos “donos do poder” contra as odiadas “elites”; de surgimento e consolidação de uma nova-velha elite de peleguismo sindical, inspirada no pior dos populismos; de clérigos e bispos da “Teologia da Libertação” que seguem as pegadas espertas de Leonardo Boff e de Frei Betto para canonizar as falcatruas petistas em nome da justiça social; de orgástica farra do setor do empresariado que se alinhou desavergonhadamente ao lado do poder para garantir as benesses do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os lucros subsidiados com o dinheiro do contribuinte; de louvação oportunista dos intelectuais amamentados com as benesses oficiais; enfim, de reificação ectoplasmática dessa entidade mítica genialmente descrita por Mario de Andrade como o “herói sem nenhum caráter” que, proveniente das obscuras florestas, percorre o País com a sua oralidade falaciosa, enganando todo mundo para voltar, após a farra escatológica, a sumir nas sombras de onde veio, deixando para trás um nunca visto cenário de terra arrasada em matéria de princípios e instituições.
Essa seria a imagem que melhor representaria, a meu ver, estes paradoxais momentos que estamos vivendo, de um País literalmente dividido ao meio pelos que se entregaram ao embalo dos sonhos da democracia fácil e do tudo pode porque “os que estão mandando são os representantes da alma popular”, materializando, assim, a pior das éticas, a totalitária, que sagrou o princípio de que “os fins justificam os meios”.
Sairemos ilesos desse tsunami de “retórica utópico-democrática” (como diria Jefferson)? Ou sucumbiremos a um chavismo à brasileira, aos cantos de sereia do núcleo marxista-leninista do petismo, que considera termos chegado à etapa definitiva de deflagração da “revolução do proletariado”?
O tempo dirá.
Talvez, para fazer ainda eco à imagem macunaímica, haja uma acomodação geológica de interesses, movida unicamente pela lei da gravidade do menor esforço, essa lei de cuja aplicação está cheia de exemplos a história política das nações. Um dos maiores partidos do nosso universo político, tido como fiel da balança, é justamente aquela agremiação que, desde a fundação da Nova República, canalizou os interesses miúdos das oligarquias regionais e do caciquismo de sempre, solidamente ancorada no espírito patrimonialista de privatização do poder e do espaço público para benefício de amigos e apaniguados.
Se vivo fosse, o iconoclasta Heráclito de Éfeso exclamaria: “Tanto barulho para nada.” Parecia, há oito anos, que o velho patrimonialismo havia começado a recuar, ao ensejo da Lei de Responsabilidade Fiscal, do enxugamento da máquina pública e das privatizações, e agora voltamos a um tempo anterior a esse, temerosos e triunfantes, chorosos e risonhos, ébrios e sóbrios, que essa é a imagem cindida da sociedade brasileira nestes momentos de ressaca eleitoral.
Do que estou seguro é que o Brasil continuará com o seu “voo de galinha”, com decolagens mirabolantes e quedas desajeitadas, porque não fizemos o dever de casa. Não cuidamos a contento da educação para a cidadania, que deve ocorrer nas quatro primeiras séries do primeiro grau. Os esforços da última década foram envidados para que dinheiro não faltasse às escolas públicas, para compra da merenda escolar e para distribuição do material didático – em boa medida preparado para destruir qualquer sentimento de brasilidade, pois foi viciado pelos ativistas gramscianos com o vírus que destrói os valores tradicionais para “tomar a sopa pelas beiradas”, fazendo ruir de podre a odiada “sociedade burguesa”.
Essa é a nossa realidade. Um país que, na era lulista, mostrou os músculos ao mundo, numa política externa desastrada que conspirou contra os interesses dos nossos amigos lá de fora e dos nossos empresários e contribuintes, dando força aos que nos desacreditam no cenário internacional, pois aparecemos agora nas fotos ao lado de ditadores e facínoras, como os irmãos Fidel e Raúl Castro, Mahmoud Ahmadinejad, Hugo Chávez e quejandos. O Brasil não conseguiu emplacar, com a diplomacia lulista, nem a direção da Unesco, nem a coordenação da Organização Mundial do Comércio (OMC), nem a vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ.
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