Mara Kramer.
Torna-se cada dia mais evidente, após os oito anos nos quais a situação ocupou todos os espaços do campo político no Brasil, que o PSDB contém um impedimento congênito de atuar como partido de oposição. Trata-se de uma questão instigante, considerando que no mundo político de uma democracia é capital que os partidos estejam preparados para viver suas duas possíveis realidades – situação e oposição – as quais são necessariamente transitórias e antagônicas. Entretanto, observa-se que o PSDB mostra-se incapaz de atuar como partido de oposição, e embora muito se tenha especulado sobre as razões desta atitude, elas se mantém nebulosas. Estas questões seguem presentes, mas por ora, proponho apenas uma aproximação da questão central, reflexionando sobre a importância do discurso ideológico, ou de sua ausência, na última eleição presidencial.
Após o final das eleições, e mesmo durante, muitos artigos difundidos pela imprensa criticavam a ausência na disputa do debate político, ou seja, a discussão sobre o suporte teórico, as ideologias dos partidos em disputa. Neste momento, é justo fazer-se uma ressalva a Plínio Arruda do PSOL, quem mesmo apresentando uma plataforma radical, não hesitou em esclarecê-la e defendê-la. Concentremo-nos, porém naqueles com reais condições de vencer o pleito, os candidatos do PSDB e do PT.
As bases de construção da candidatura de Dilma Rousseff apóiam-se na completa absorção de sua figura pelo “mito” Lula. Ambos constituiriam uma “unidade” não homogênea, na qual Lula, o todo-poderoso, dividiria sua carga de significados com Dilma, pouco conhecida, sobretudo da maioria, e, portanto, isenta de uma imagem própria. Neste sentido, Rousseff é respaldada na campanha, não apenas pela popularidade de Lula, mas pelo suporte ideológico do PT e do “lulismo”. Ambas as posturas são simultaneamente convergentes e contraditórias, pois o lulismo é a forma de governar adotada por Lula produto da impossibilidade de executar na integra o ideário do PT. No exercício de seus mandatos, e até para chegar a eles, Lula foi obrigado a fazer concessões, muitas opostas ao plano original do partido, gerando um modelo misto singular, entre a esquerda radical e a social-democracia, que leva seu nome. Na prática Lula tentou aliar seu pragmatismo, a manutenção da política macroeconômica do governo anterior, a ausência de pudor ao cooptar com representantes da direita tradicional e do mundo empresarial, com a política petista, cujas propostas são o banimento de todo o estabelecido. Desta permaneceu pouco mais que o apoio às antigas lutas como MST, o sindicalismo, o aparelhamento do Estado, e a sombra do PNDH-3. Tal modelo misto resultou em um governo de incoerências, soluções improvisadas, imediatistas, da ausência de critérios morais, narrado pelas falácias de um discurso espetaculoso. Entretanto, a habilidade política de Lula colocou a realidade em segundo plano, e alavancou ao protagonismo a idéia da justiça social, da luta de classes entre ricos e pobres, nordestinos e sulistas, colocando-se como o redentor dos desamparados. Trata-se de uma plataforma histórica da esquerda/PT, agora executada no estilo “lulista”. Não menosprezando as conseqüências da expansão econômica do país, claro fruto da continuidade da política macroeconômica e das estruturas institucionais estabelecidas por FHC, sobre as quais Lula tem poucos méritos, é o discurso ideológico que legitima seu governo assim como sua continuidade. A idéia de um Brasil mais justo, com menor desigualdade, com oportunidades para todos presente nos corações e mentes de uma multidão de brasileiros, sobretudo os que sofrem o drama social, esta impregnada da figura de Lula. O presidente efetivamente pouco fez para possibilitar melhor qualidade de vida a todos, mas soube trabalhar e valorizar estas idéias.
Em oposição a Lula e sua candidata esta José Serra, um político virtuoso, excelente administrador público, que traz no currículo diversas obras no campo da saúde, educação, meio-ambiente, infraestrutura urbana, etc. Homem de reputação ilibada, com quase trinta anos de vida pública, cujos próprios adversários reconhecem ser mais bem preparado. Sua campanha foi baseada exatamente nesta história de obras, honestidade, e promessas cumpridas. Sua capacidade de gestão, “aquele que sabe como se faz” era o grande trunfo dos partidos de oposição aliados sob o lema “O Brasil pode mais”. Embora esta engenharia pareça coerente observa-se agora, devido o distanciamento temporal, que a estratégia adotada rejeitava deste sua gênese o confronto político, contendo desde aí as sementes de seu fracasso. O discurso explicito e implícito inerente à fórmula de apresentar um candidato idôneo, com capacidade reconhecida frente à inexperiente e quase desconhecida Dilma, é tornar o primeiro o herdeiro legitimo das atribuições de dar seguimento a expansão econômica que vive o país. A mensagem de continuidade esta expressa já no slogan, e é reforçada pela negação do governo de FHC, pela postura de Serra frente a Lula, e na presença desse, mesmo que fugaz, na propaganda da oposição. O slogan difundido não propõe mudança ou critica, ao contrario, reconhece como positivo o que foi feito, e o valida como estágio a partir do qual se deve avançar. Ao analisar a prioridade atribuída à imagem de continuidade no discurso da oposição verifica-se que a estratégia responde a proposições claras: 1. explorar a indiscutível capacidade de gestão pública de Serra; 2. abster-se da confrontação com um governo cujo presidente detém alta aprovação popular; 3. desviar-se da dificuldade crônica do PSDB de exercer como partido de oposição. Neste sentido, a campanha presidencial de 2010 foi o corolário de oito anos nos quais PSDB mostrou-se incompetente como partido de oposição, criando um vazio político na democracia brasileira.
A partir da decisão de não fazer oposição tomada por Serra e seus assessores a campanha assume um papel paradoxal, que renega todas as teorias da ciência política de um regime democrático, onde a oposição se apresenta como continuidade da situação. Ambos, Serra e Dilma, se propõem a dar seguimento ao governo Lula, sendo que a oposição afirma ter o melhor candidato. O tema central do debate nestas circunstâncias passa a ser a capacidade de gestão dos candidatos, conseqüentemente, a discussão política, ou confronto ideológico, perde espaço.
A inexistência do debate político na campanha favorece ao PT. Embora sua candidata não seja carismática, eloqüente, ou contenha uma carga simbólica importante, tem atrás de si um discurso ideológico histórico e amplamente difundido, apesar de não passar de discurso. No que tange a Serra, a situação é inversa. O PSDB é um partido social-democrata, e portanto contém bases intelectuais definidas, mas quantos de nós sabem o que é, quais são os princípios, como funciona uma social-democracia. Segundo o Instituto Teotônio Vilela, a “social-democracia propõe uma sociedade em que os ideais da igualdade e da justiça social convivam com a preservação das liberdades democráticas e individuais, no contexto de uma economia de mercado”. É contrária a economia estatizada assim como rejeita a soberania do mercado.
As campanhas são fundamentais na consolidação e difusão das bases ideológicas dos partidos, pois são elas que definiram as políticas sociais, econômicas e culturais. A ideologia é a visão de mundo que rege as ações e relações no mundo político, assim como as propostas de futuro. É com a ideologia que nos identificamos, é por ela que nos apaixonamos, não pela aridez dos números. Serra perdeu uma grande oportunidade de consolidar e difundir uma ideologia opositora, optou por priorizar a gestão, entretanto, na política, gestão sem ideologia não funciona
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