Carlos Chagas.
Mesmo com o ministério ainda incompleto e sem que se tenham detalhes do que será o discurso de posse de Dilma Rousseff, dá para especular por nossa conta e risco a respeito do futuro governo.
Como será o processo de tomada de decisões na nova administração? Pelo jeito, bem diverso dos oito anos do presidente Lula, quando tudo passava pela Casa Civil, primeiro com José Dirceu e, depois, com a própria Dilma, que funcionavam como uma espécie de filtro capaz de levar ao presidente da República problemas e soluções já equacionados, livres de detalhes julgados pouco importantes.
Com Dirceu houve exagero. Nos primeiros meses ele centralizava ostensivamente a coordenação administrativa e a coordenação política, ou seja, constituía-se na via de uma mão só, no relacionamento do palácio do Planalto com os ministros, com o Congresso e com os partidos, dando seus palpites também na economia e na política externa. Coube a ele, antes da posse em janeiro de 2003, viajar para os Estados Unidos e convencer os americanos de que nada mudaria na política econômica. Fosse o Brasil um quartel, com o Lula de comandante, e Dirceu seria o subcomandante. Registraram-se reações, menos por sua capacidade de trabalhar dezesseis horas por dia, mais pelos ciúmes gerados no Congresso. Para compor a situação, o presidente Lula nomeou Aldo Rebello ministro da Coordenação Política, mas, apesar de seu espírito de conciliação, o representante do PC do B enfrentou resistências ostensivas e veladas do chefe da Casa Civil.
O processo de tomada de decisões, assim, chegava ao chefe do governo pelas mãos de Dirceu, ainda que o Lula, cioso de sua autoridade, desse sempre a última palavra e às vezes até contrariasse seu primeiro-ministro. Um exemplo, apenas: a muito custo Dirceu havia costurado o apoio do PMDB ao governo, mas foi cortado pelo presidente. Gilberto Carvalho e Luís Dulci, também ministros palacianos, tinham atividades específicas e davam seus palpites. No campo econômico, apesar da participação de Dirceu, o controle ficou nas mãos de Antônio Palocci, na Fazenda, com Guido Mantega, no Planejamento, olhado meio de soslaio. E com Henrique Meirelles, no Banco Central, dirigindo uma praia onde Palocci preferia não aportar senão para confraternizar com os nativos. Os demais ministros assistiam, estimulados a apresentar planos e a tocar projetos que estivessem de acordo com o comando econômico e que contassem com o apoio de Dirceu, além do imprescindível entusiasmo do chefe. Em setores especiais, os titulares dispunham de um pouco mais de autonomia, como na Defesa, na Agricultura e nas Minas e Energia. A maioria despachava com o Lula, não tanto quanto seria desejável, ainda que com as contas sendo sempre prestadas na Casa Civil, cada vez mais assoberbada pelas exigências do setor político, PT à frente.
Foi quando sobreveio a crise do mensalão, conforme o Procurador Geral da República, “urdida e supervisionada por José Dirceu”. Dentro de sua característica de contemporizar (ou de fritar auxiliares em fogo lento), o presidente Lula assistiu o desgaste de seu chefe da Casa Civil prolongar-se até o desfecho final. Também, detinha poder demais e já surgia como sucessor natural...
Erodiu-se o edifício construído segundo o modelo até então vigente e o Lula demonstrou capacidade para dar a volta por cima ao reconstruir o edifício preservando o modelo. Foi buscar Dilma Rousseff nas Minas e Energia, conhecida pela severidade de sua ação administrativa e pela rudeza no trato com iguais e desiguais. Como havia acontecido com Dirceu, o presidente entregou-lhe a coordenação administrativa, ou seja, o governo, preferindo decidir sobre o atacado e deixando o varejo para a companheira. O processo de tomada de decisões continuaria igual, mesmo sem os exageros de Dirceu. Lula preferiu Dilma voltada para dentro em vez de alguém como o antecessor dela, voltado para fora. Desde os primeiros meses nas novas funções, Dilma desmentiu os reparos que ainda hoje lhe fazem, de não possuir traquejo e experiência política. Possuía, sim, como possui, mesmo sem conviver com o Congresso,que continuou não convivendo até hoje. Plantou sua horta ao lado do jardim do presidente, ensejando-lhe até mais tempo para aumentar a popularidade e cuidar da imagem do primeiro governo petista da História. Cobrou, admoestou e se impôs, dando todo apoio à banda social do governo sem descuidar da infra-estrutura. E monitorou a política econômica, mesmo depois que o raio atingiu pela segunda vez o quintal do Lula, na forma da crise do caseiro, responsável pela renúncia de Antônio Palocci. Dilma respeitou Meirelles, mesmo discordando dele, aproximando-se de Guido Mantega, levado à Fazenda para fazer o contrapeso.
Nesse momento o Lula, mais sagaz do que todo o PT reunido, terá respirado com certo alívio pelo desaparecimento de dois pratos-feitos que precisaria engolir na sucessão, Dirceu ou Palocci. Afastada por decisão própria a hipótese do terceiro mandato, a ser obtida com toda facilidade, imbuiu-se da certeza de que tudo dependeria de sua escolha, por conta de sua popularidade. Até um poste, como se comentou.
Dilma quietinha, obtendo sucesso e brilhando na coordenação do governo, mesmo sem imiscuir-se nas tertúlias partidárias, até desprezando-as, mostrou-se um poste com energia própria. Veio a temporada do PAC, ignorando-se apenas se como conseqüência de uma candidatura já delineada no recôndito do travesseiro do presidente ou se, ao contrário, candidatura consolidada por conta do sucesso da apresentação de tantas obras velhas com a aparência de novidade. Tanto faz.
A verdade é que o Lula inventou Dilma candidata. Ou Dilma se fez inventar?
O processo de tomada de decisões continuou o mesmo, na Esplanada dos Ministérios, com a chefe da Casa Civil enfeixando os controles de uma administração cada vez mais reconhecida pela população, no caso massas e elites reunidas.
Vieram a candidatura e a vitória, até com certo viés de descompressão do perfil rígido, austero e áspero da candidata, sempre fiel ao chefe maior. (Amanhã: como poderá ser o processo de tomada de decisões no governo Lula.)
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