Há 25 anos uma criança nascida com hidrocefalia não conseguia sobreviver. Hoje, com uma cirurgia para implante de válvula no cérebro ela pode ter vida longa e saudável. Situação parecida ocorre com aqueles que nasceram com paralisia cerebral e não conseguem fisicamente falar. Graças aos avanços tecnológicos, essas pessoas se comunicam por meio de um sistema de computador. Outras, com doença muscular degenerativa, já podem sair das UTIs com respiradores portáteis que contam com baterias de longa duração. Todas elas têm algo em comum: foram agraciadas pelo avanço da medicina e da tecnologia. No entanto, ainda convivem com o pensamento retrógrado de grande parte da sociedade quando têm seu ir e vir ou sua entrada impedida nas edificações por falta de acesso físico, ou, então, quando sofrem com algo muito mais excludente e limitador: falta de conduta acessível e discriminação.
É de espantar que crianças e jovens com deficiência física, visual, auditiva, intelectual, múltipla – beneficiadas por tantos avanços médicos – ainda tenham sua matrícula recusada em escolas comuns. O motivo? As instituições alegam não estar preparadas para isso. Pode até soar responsável, porém uma escola que se diz atualizada, com os melhores professores, laboratórios e tantas outras qualidades, estará pronta para a diversidade humana quando? A mim soa como falta de interesse e, sobretudo, preconceito em razão da deficiência que tais indivíduos têm.
Em 1950, Marlon Brando estreava no cinema como um veterano de guerra que fica paraplégico, no filme Espíritos Indômitos, um drama sobre a angústia e a dificuldade de adaptação que os combatentes da 2.ª Guerra sofriam por terem ficado deficientes. Uma cena foi particularmente marcante para mim: quando o médico explica a altura de sua lesão e conta que, se tivesse atingido o pescoço, não teria chance de sobreviver. “Quem quebra o pescoço morre”, decretava. Puxa, eu quebrei o pescoço num acidente de carro, em 1994, e graças aos avanços da medicina estou aqui produzindo, trabalhando.
É paradoxal a ciência possibilitar a continuidade da vida, enquanto a sociedade, de um modo geral, não oferece os suportes necessários para a retomada da vida cotidiana. Garantias legais para vida digna há: desde a Constituição de 1988, a lei federal de acessibilidade (Lei 10.098/ 2000) e o decreto que a regulamenta (Decreto 5296/2004) até a incorporação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, com força de emenda constitucional. Falta aplicá-las para avançar nas políticas de direitos humanos. A própria Câmara dos Deputados, que aprovou tais leis, somente agora tornará a tribuna acessível a um deputado cadeirante.
Desenvolvemos coisas que o cinema de 1950 chamaria de ficção científica: membros robóticos movidos com a força do cérebro, células que regeneram músculos, neurônios e ossos. Eu mesma ando e pedalo toda semana com a ajuda da tecnologia – quem me vê sentada na cadeira não imaginaria – e o astrofísico Stephen Hawking, que tem uma doença degenerativa, surpreende o mundo com suas ideias.
Conquistamos o mais valioso: o direito a vida. Mas até quando viver vai soar estranho a tantas pessoas com deficiência habituadas a uma sobrevida? Muitos dos progressos que esperamos para as próximas décadas na medicina não beneficiarão a todos porque a maioria das pessoas com deficiência não consegue fazer a manutenção de sua saúde e qualidade de vida porque, simplesmente, os serviços as excluem.
Ouço muito a expressão “preso a uma cadeira de rodas”. Nada mais errado: a cadeira é sinal de mobilidade. Ela dá liberdade para ir a qualquer lugar. A verdadeira prisão é a discriminação e o desrespeito ao direito constitucional de igualdade, cujo resultado é visível no número expressivo de pessoas com deficiência que ainda não usufruem os benefícios de educação, trabalho, saúde, esporte, cultura, lazer e transporte por falta de acessibilidade. Ficam trancadas dentro de sua casa.
Por isso, cobrar as políticas públicas necessárias para fazer valer os direitos já garantidos pela legislação e provocar novas mudanças nas cidades é um movimento sem retorno.
A mídia tem papel fundamental e vem contribuindo, seja por meio do noticiário mais abrangente ou pela ficção e pelo entretenimento. A novela das 21 horas da Globo mudou, este ano, costumes e visões. Antes já havia ocorrido, por meio de personagens cegos, surdos, com síndrome de Down. A Eldorado AM tem programa focado nessa temática e chegou a entrevistar no rádio dois surdos, num programa memorável.
O respeito à dignidade da pessoa, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, a não discriminação, a plena e efetiva participação e a igualdade de oportunidades são compromissos da República que precisam sair da letra fria da lei e ser adotados pelos cidadãos. Isso é profundamente libertador. Para quem tem uma deficiência e para quem não tem, porque este tema faz parte do coletivo. Não se trata de um segmento isolado ou de uma política específica, mas de habitantes de uma mesma nação democrática.
Somos 28 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência (Censo 2000 IBGE). Não queremos mais brigar para provar que existimos. Queremos dividir o mundo com pessoas de peso, altura, cor, idade, características e condições físicas diferentes das nossas. O movimento pela acessibilidade e a adoção de práticas que atendam a todos está nas ruas para ser visto, comentado e, sobretudo, entendido e promovido. Faça parte deste encontro e se comprometa com a inclusão. Está em suas mãos a escolha de viver num País mais igual.
(*) Mara Gabrilli é vereadora em São Paulo, deputada federal eleita pelo PSDB em 2010, psicóloga, publicitária, comanda o programa de rádio “Derrubando barreiras: acesso para todos”, na Eldorado AM.
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