domingo, 12 de dezembro de 2010

MESTRE JOÃO.

Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 11 de dezembro de 2010.



“É preciso coragem para sermos o que somos e astúcia para conviver no heterogênio mundo dos desiguais.”.

(João Machado)


Minhas vivências na década de sessenta foram marcadas profundamente pela rotina castrense e os competentes e fleumáticos professores militares do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA). Os Mestres, daqueles tempos, não repassavam apenas conteúdo afeito à sua cátedra, mas, fundamentalmente, educavam para a vida. Poucos professores civis circulavam nas centenárias arcadas do modelar estabelecimento de ensino. Um deles, em especial, despertava nossa atenção e respeito - o Mestre João, de Biologia. Cursava medicina na época e costumava levar para a sala de aula algumas peças de cadáveres para ilustrar suas apresentações, vez por outra, um companheiro passava mal ao contemplar as cadavéricas amostras. O professor João era a antítese dos demais mestres e por isso mesmo sua participação foi assaz salutar na nossa formação, forçava-nos a pensar, inquirir a questionar. Assistimos, emocionados, sua formatura no Teatro Leopoldina. Fomos com a farda de gala do CMPA para que o Dr. João pudesse nos distinguir dos demais expectadores.

Por uma dessas felizes coincidências do destino, novamente tive a oportunidade de travar contato com ele por intermédio de uma de suas filhas, a Tenente Shirin do Hospital Militar. O venerável Mestre continua polêmico, sarcástico, mas, sobretudo, extremamente lúcido, erudito e inteligente. Faço questão de reproduzir na íntegra um texto que ele me enviou recentemente.

- Coragem,

João Machado - Porto Alegre, 8 de dezembro de 2910

Aguentar quem somos nós nos entrenós

Começo com uma frase de Henry Ford: “há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. Esta frase foi surrupiada do livro, RIO-MAR, de um antigo aluno meu no Colégio Militar, mesmo estabelecimento de ensino onde ele foi aluno e eu professor, hoje ele é coronel e professor e escritor. E eu, velho. Ele me mandou o livro sobre o Rio Solimões. Estou lendo, gostando muito e morrendo de inveja dele. É só para dizer que quem quer, corre atrás de seus sonhos...

Mas a frase é apenas um pretexto para chegar onde quero e te dizer o que nada tem a ver com o livro que leio. Agora já estou me referindo a outro livro: “A Ilusão da Alma”, de Eduardo Giannetti. Sobre um cara que imaginava ter um tumor na cabeça. E o cara era ele mesmo. Muito engraçado. Engraçado o autor que tive o privilégio de ouvi-lo numa conferência. Ele inventou um TU cerebral nele mesmo e trava um diálogo consistente dele falando com ele. Doidão. Mas lá pelas calendas do livro ele aborda um tema que nos deixa de cabelo em pé. Seja: ninguém perde o que não tem. Só perde quem tem. São palavras minhas, inspirado nele, no autor de “A Ilusão da Alma”. Claro que eu não tenho coragem de copiá-lo. Mas inspirar-me no que ele conta sim, para me ajudar e ajudar a quem precisa, talvez em termos meio polêmicos que é o que mais me interessa. Bom, tu sabes não é? Que alma para mim é como o pavio da cebola. Só existe na virtualidade e aos olhos de quem a quer vê-la.

Então, nas perdas e ganhos da vida, a perda de confiança em si mesmo estabelece uma luta, força-tarefa, de reencontrar o que se perdeu ou o que se pensa que perdeu. Então, onde está a alma? Para encontrá-la é necessário perdê-la. Ou perdê-la para sempre e não mais encontrá-la. Papo esquisito. E o amor? Onde está o amor? Será preciso perdê-lo para tentar buscá-lo!

Mentes desocupadas, oficina de idéias

Cabeça vazia, macacos na boléia!

Na mais procura e menos oferta de oportunidades, uma posição se impõe: prioridade. Pelas condições de vida, há quem procure mais e outros menos, independentemente das condições e propostas... um mundo sem ofertas de drogas, por exemplo, implica em oportunidade ... dinheiro... nada para fazer na vida... más companhias... nem existem mas companhias... a gente é que não tem discernimento entre o que quero e o que não quero para mim!

E não consegue reconciliar-se consigo mesmo... na procura da paz... e será que existe paz? Não existe paz. Para pessoas inquietas, empreendedoras e ambicionas... não pode existir paz. Quando Camile Paglia, aquela feminista ítalo-americana contou em “personas sexuais” que “amor e paz” ou “paz e amor” era uma rotunda heresia, fiquei desconfiado dela. Mas, explorando melhor, até acho que é verdade porque esta expressão é uma seqüela lingüística do tempo dos hippies e do início da maconha. Porque, segundo Camile Paglia, é humanamente impossível a paz conviver com o amor, porque são coisas antagônicas, porque o sofrimento no amor é tão grande que não dá lugar à paz. Verdade! Quem procura a paz no amor, se engana. Quem procura o amor na paz, morre sem amor.

Eu não tiro o trema de seqüela, lingüista ou de lingüiça, só porque o Sr. Lula, muito letrado, manda fazer uma reforma... e houve um imbecil que obedeceu cegamente a uma excrescência dessas. Pode? Pois pode, porque o homem detém o poder... mesmo sem dedo. Lá do velho Portugal, os portugueses devem acreditar que no Brasil é o poste que mija no cachorro... não? Quando o cachorro é abanado pelo rabo. Pode!?

Para os calados e avessas à polêmica, existem pessoas que resolvem discutir sexo dos anjos e procuram chifre em cavalos, com núcleos de teorias que assustam:

“cada criatura humana traz duas almas consigo, uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. E quando a alma é cega? Como é que fica! Querendo talvez dizer que temos duas faces, feito cabeça de Janus, mas também dando asas à imaginação de que algumas coisas podem ser ditas e outras jamais ditas, quando o dito do não dito assume seu lugar na entrada solene do panteão do saber...

Todo trabalho investigativo tem seus momentos. Este é o teu momento. Aproveite-o. É o momento de sentar e pensar, ousando cavar mais fundo nos opacos e escondidos recantos da mente onde somente sua subjetividade tem acesso. Será abrir-se de tempos em tempos, à aventura de um pensar menos torcidos pelas amarras da razão vigilante e inibições da lógica severa. Não tenha medo, pensando sequer... a curiosidade está para o conhecimento assim como a libido está para o sexo...

Porque o medo apavora? Livrai-me dos medos. O desejo me atrai, o medo apavora. Assim como o medo, o gosto pelas coisas tem uma contrapartida neuronal definida. O circuito cerebral de recompensa dos desejos, baseado na descarga de um mensageiro químico repassador de sinais entre células nervosas, é essencialmente uniforme no reino animal. Ao saciar um desejo, como a fome ou a sede, ou sexo, ou outro desejo mais denso e intenso, o cérebro premia o animal com a liberação de um neurotransmissor, a dopamina – que produz uma sensação prazerosa (por enquanto é assim que pensamos). Mas, todo ser vivo tem sede e fome. Cada um a seu modo. O córtex frontal, órgão de origem evolutiva mais recente na evolução natural dos homens, está constituído de camadas superpostas de células nervosas, o que é responsável por sofisticados sistemas decisórios de filtro e controle no exercício das possibilidades de gratificação que o ambiente oferece. É a parte nova cerebral entendida como sendo uma extensão do cérebro que vai além do cérebro primitivo e avança no campo social em prolongamento para frente. Daí uma testa bicuda. Sabendo-se que se trata de uma parte refinada e muito nova de desajustes e ajustes, porque o grosso das atitudes e do comportamento das pessoas fica cingido à interface entre regiões antigas e modernas, entre os demais órgãos do sistema límbico e córtex frontal e o que responde pelo núcleo accumbens. O efeito deste estímulo é o incremento da dopamina no cérebro, de modo análogo ao que ocorre quando o animal come, bebe ou copula. O hipocampo dá o impulso para agir e a ínsula cerebral regula com ou sem freios ( que vieram a se tornar freios morais... não acredito muito nessas coisas morais... me parece que todo mundo é um pouquinho imoral... parece que a sociedade é que emperra e impede o homem de mostrar quem ele realmente é... safado... )

Nós e todos os santos somos assim. Nem o deus soube mudar o que nós nos tornamos. Embora calculistas e inibidos por excelência, não é sempre que o córtex consegue se fazer ouvir e evitar o lapsus ou recaídas. Atinge até os santos. A oração de Santo Agostinhos, um dos primeiros psicanalistas aparecidos sem o saber, conta que o avanço dos anos e o reflexo do ardor juvenil mudaram isso – é sintomático: “dai-me, Senhor, a castidade e a continência, mas não já...” Claro, ele não queria perder as chances que sua virilidade garantida. Sua mãe, Santa Mônica, ajudava muito. Seu filho Adeodato era seu tesouro e sua mulher, apagada no silêncio e na espera. Mas ele virou santo e fez parte dos primeiros santos importantes como poeta angelical da Igreja. Com ele Santo Ambrósio, São Jerônimo... todos cheios de desejos.

Santo Agostinho foi o sistematizador da Igreja Latina, com voz;

Santo Ambrósio foi pregador e pastor das almas, com a vez e voz;

São Jerônimo foi encarregado da “Vulgata” dos textos bíblicos;

São Gregório foi o reformador da Liturgia da Igreja com muita voz e muita fala na articulação das palavras com mais vez e mais voz.

O centro da voz – sons emitidos pela goela desde que se nasce – tem lugar “definido” no cérebro, conhecido há muito tempo como centro da fala. Acho que não é assim. Trata-se do centro dos sons emitidos, que vai se tornar a voz, que pode mudar de timbre na modulação da fala e do canto adquire particularidades na linguagem coloquial, mas a articulação da palavra se deve à região frontal, o recanto da disprosexia, da disprosódia, dislexia, do puerilismo, dos geps mnêmicos, de uma memória combalida, da “moria” nos tumores frontais invasivos no lobo frontal, até a gliscroidia pegajosa dos epilépticos de Minskowski. Mas, em princípio, como qualquer pau que produz som, a criança já nasce um carimbó: berra. Não devemos esquecer que a inscrição do homem no mundo se opera pela fala, depois pelos atos e atitudes, mas a fala é postiça, na opinião de Lúcia Santaella, uma professora de semiótica. Depois do nascimento, o resto é sonho.

A vida é um sonho. E “um sonho que se sonha sozinho é apenas um sonho... e um sonho que se sonha junto é uma realidade” no dizer de John Lennon. Já para outros, “los sueños son sueños porque los sueños sueños son” Calderón de La Barca, 1664. E, para Frederico Fellini, “il dialeto è come i nostri sogni, qualcosa di remoto e di rivelatore; il dialeto è la testimonianza più viva de la nostra storia, `e l´espressione della fantasia”. Os sonhos são produtos de sonhos e a língua é produto do meio sócio-familiar.

Revirando a literatura, descortinam-se textos em que a língua materna, também chamada língua primeira, ilumina e nomeia nossas primeiras vivências, nossos afetos e faz nossa inscrição no mundo dos homens. Ela nos acompanha pela vida afora, não nos abandona. No dialeto caseiro de Donatella Di Cesare, a língua é “como uma espécie de segunda pele que nos envolve do primeiro ao último instante, o idioma materno não se pode traduzir, não se pode trair”. Essa língua, transmitida oralmente, por gestos e por comportamento, de pai para filho no aconchego da família, tornou-se, no decurso do tempo, uma língua interdita, uma fala proibida no contexto sócio cultural que nos envolve, que nos abraça e até nos engole. E, quando forçamos, a vergonha de sermos o que somos, nos torna impotentes, confusos, desconcertados, gerando embaraço e bloqueio no meio cultural e intelectual que parece se unirem inabilidade com imobilidade da pessoa para qualquer reação a seu favor ou desfavor num verdadeiro bloqueio de pessoa para pessoa, nos contentando com vivência impessoais. E às vezes, o indivíduo, tocado pela vergonha, fica trêmulo, suas faces enrubescem ou se tornam pálidas, sua palavra morre no percurso virando silêncio. Há uma espécie de túmulo arrasador quando à vergonha junta-se a raiva sufocada, a humilhação desponta. O estado de vergonha envolve culpa impingida por outrem, pela voz do outro, pelo olhar do outro; culpa de falar errado interiorizada, calcada no fundo da alma; sentimento de culpa de falar uma língua materna – um dialeto caseiro – e de não habilidade de falar no meio social, sociocultural como reclamam, sem dizer nada, os que se sentem atingidos. O resultado disto é uma autoestima rebaixada, um desconforto, um ser negativamente marcado por sua fala.

Nasce de cada um de nós um estigma lingüístico que haverá de nos acompanhar, de uma forma ou de outra, durante todos os dias de nossas vidas. O estigma é a marca indelével que vem e que fica. Estigma, palavra de origem grega, significa a marca produzida com ferro em brasa no corpo dos escravos ou de qualquer pessoa considerada nociva à vida em sociedade é marcada. Desde casa nossa fala foi estigmatizada e tornou-se motivo de chacota, de vergonha. Sanada a ferida, restou a cicatriz. A vergonha cede lugar ao orgulho e abala a auto-estima, o amor próprio com a tristeza de sermos diferentes, lembra Vitalina Maria Frosi.

Na formação do indivíduo, nos complexos familiares de Lacan: “entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua, acertadamente chamada materna”. Daí o desenvolvimento dos processos psíquicos, onde preside a organização das emoções, que é a base dos sentimentos, segundo Shand. Mais amplamente, ela transmite estruturas de comportamentos, até ultrapassar os limites da consciência.

A Família, para Lacan, reflete o drama individual caseiro nas interfaces com a sociedade. Repetimos o drama quando saímos da barra da saia, a começar pelo enfrentamento do desmame – ablactação – Acredito que, sob inspiração do totem, Conn tenha cunhado o termo “hereditariedade social” para designar toda sorte de ajustes e desajustes entre o que é psicológico e o que é biológico. De qualquer modo ajudou e atrapalhou na concepção de família como célula social que nos joga no fluxo da mão única e no contra-fluxo das avarias emocionais.

Lactação é função biológica, inerente a nós e outros mamíferos. O mamar, como função biológica, é um processo de autodescoberta nos primeiros meses da vida. Já o desmame é um traço geral genérico. O desmame deixa no psiquismo humano um traço permanente da relação biológica que ele interrompe. Além da inveja, a ameaça que fica para nós é a questão do suicídio: os violentos e os não violentos: forma oral do complexo – aqueles que comem até morrer; os anoréticos que deixam de comer e morrem por inanição pelos regimes com neurose gástrica; e os toxicômanos que usam e abusam das drogas – da maconha ao crack – sob forma de envenenamento lento pela boca. Claro que se Freud tivesse noção mais clara sobre neurotransmissores, não teria tido um câncer de boca por causa do tabagismo: o charuto ou então, ele estava ainda fixado no peito materno. Verdade ou mentira, todos nós mamamos. Entre pobres e ricos, a carência não tem endereço certo: bate em qualquer porta. Em Confissões, Santo Agostinho constata o ciúme infantil: “Vi” diz Agostinho, “e observei uma {criança}, cheia de inveja, que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o irmãozinho colaço”. Claro, ninguém vê isto num outro mamífero com seu irmão de leite. Pelo contrário, até partilham mamadeiras nas tetas sujas da porca.

Na mulher permanece o instinto materno. Nos outros animais o instinto acaba no desmame.

O desmamado fica apenas com a IMAGO do seio da mãe para sempre em sua vida. E o ciúme representa não uma rivalidade vital mas uma identificação mental: eu sinto o mesmo que você sente em relação a certos objetos de amor, de afeto, de ternura... A prevalência do complexo do desmame configura a desarmonia sexual entre os pais que é preciso referir a prevalência que guardará o complexo do desmame num desenvolvimento que ele poderá marcar sob vários modos neuróticos: o sujeito será condenado a repetir indefinidamente o esforço de desprendimento da mãe – e é aí que se encontra o sentido de toda a espécie de condutas forçadas, indo de certas fugas de criança às impulsões vagabundas e às rupturas caóticas que singularizam a conduta de uma idade mais avançada; ou então o sujeito permanece prisioneiro das imagens do complexo, e submetido tanto à sua instância letal como à sua forma narcísica – é o caso da consumação mais ou menos intencionalizada onde, sob o termo de suicídio não violento, nós marcamos o sentido de certas neuroses orais ou digestivas; é igualmente o caso daquele investimento libidinal que atraem e se arrastam na hipocondria às endoscopias mais singulares: um equilíbrio desequilibrado, imaginário, dos ganhos alimentares e das perdas excretórias. Esta estagnação psíquica pode também manifestar o seu corolário social numa estagnação dos laços domésticos, ficando os membros do grupo familiar aglutinados pelas suas “doenças imaginárias” num NÓ isolado na sociedade, queremos dizer tão estéril para o seu comércio como inútil a sua arquitetura.

Neste enfoque, dá para sentir mais claramente o papel essencial da relação entre os pais, que os analistas empedernidos sublinham como o caráter da mãe se exprime também no plano conjugal por uma tirania doméstica, cujas formas larvares ou patentes, da reivindicação sentimental à confiscação da autoridade familiar traírem todas os seus sentidos profundos de protesto viril, encontrando este uma expressão iminente, ao mesmo tempo simbólica, moral e material na satisfação de de deter os “cordões da bolsa”. As disposições que, no marido, asseguram regularmente uma espécie de harmonia a este casal, não fazem mais do que tornar manifestas as harmonias mais obscuras que fazem da carreira do casamento o lugar eleito da cultura das neuroses, depois de ter guiado um dos cônjuges, os dois numa escolha divinatória do seu complementar, as advertências do inconsciente num sujeito respondendo sem intermediário aos sinais pelos quais se trai o inconsciente do outro. Fonte: Lacan, em A Família, pg. 107.

A guisa de entendimento, a Dialética do Indivíduo de Massimo Canevacci comenta que o cristianismo idealizou, no casamento, enquanto união de corações, a hierarquia dos sexos, o jugo imposto ao caráter feminino pela ordenação masculina da propriedade; com isso, aplacava-se a recordação da era pre-patriarcal, de um tempo melhor para a mulher. Na sociedade industrial, o amor é anulado. A dissolução da média propriedade, o declínio do sujeito econômico independente, atinge à família: essa já não é mais, há sociedade, na medida em que não mais constitui a base da existência econômica do burguês. O indivíduo, crescendo, não tem mais a família como horizonte de vida; a independência do pai desaparece e, com ela, a resistência à sua autoridade. Outrora, a servidão na casa paterna despertava na moça a paixão que parecia conduzi-la à liberdade, ainda que esta não se realizasse nem no casamento nem em nenhuma outra parte fora de casa. Na medida em que se abre para a moça a perspectiva do um job, ao mesmo tempo se fecha a do amor. Parece haver uma espécie de comércio, uma vendagem pública, com ou sem sistema industrial moderno, colocado a serviço, tudo que não faz parte do white trash onde desembocam desemprego e trabalho desqualificado. Bobagem: todo trabalho é qualificado. Mas, trabalho qualificado não é só para empresários onde impera a autonomia, mas também para a mulher, profissionalmente ativa. Pg. 154

E para concluir, homens de todas as classes e idades gostam de ser perder na selva de cores brilhantes e sons estridentes, povoada por monstros e generosa de sensações físicas, desde os choques violentos até matizes de incrível doçura. Para os adultos é um retorno aos dias da infância, quando os jogos e as coisas sérias são idênticos, onde coisas reais e irreais se confundem e as aspirações anárquicas experimentam, no vazio, possibilidades infinitas. Através desse retorno, o adulto foge de uma civilização que tende a agigantar e a destruir o caos dos instintos, mas com o objetivo de restaurar o caos sobre o qual repousa a civilização. A feira não é a liberdade, mas a anarquia que implica o caos. O círculo torna-se aqui um símbolo do caos. Enquanto a liberdade se assemelha a um rio, o caos se parece com um redemoinho. Esquecido de si mesmo, pode-se cair no caos, mas é impossível movimentar-se dentro dele. Esta concepção tem algo de cigano, como o são as águas do rio semântico que se alarga e se aperta entre barrancas e curvas por cima de um leito seixoso, áspero, pedregoso em que águas furiosas carregam fogosas tudo pela frente ou abandono muitos coisas pelo caminho sem ninho no rolar das moléculas moles das líquidas águas, movimentadas ou paradas. Neste caminho estamos todos nós, na esperança de sair ilesos dos ninhos do Minho.

De qualquer forma, é bom saber que a porta de entrada na patologia mental se opera mediante complexos:

Complexo de desmame – é difícil deixar de mamar... restos atávicos nos contam como se operam as diferentes manifestações;

Complexo de intrusão – não suporto que alguém se meta na minha relação, notadamente meus afetos no mundo triangular;

Complexo de Édipo – para quem nele acredita: chata esta história rançosa. Mas é preciso que se a considere, para acalmar os raivosos.

São as três portas de entrada para a patologia mental e as três portas de saída para a vida mental hígida. Atualmente, tudo se opera na Fenda Sináptica, segundo os neurocientistas mais vigorosos. O fato é que todos nós continuamos a sofrer de “coisas” – doenças ou não doenças - que não merecemos.

Só para instigar e refrescar nossa memória, quantos são os ataques caseiros, verbais ou físicos que nos marcam para sempre na patologia gestada no seio familiar e que existem sob forma coagulada:

Adulto castrador, que não deixa que alguém expresse seus pensamentos, que não é nada complacente, que proíbe tudo;

Irmão penetrador, que é uma síndrome de perseguição interpretativa... o resto você imagina o que pode acontecer...;

Função antropomórfica, na qual o sujeito, na parafrenia, incorpora o mundo a seu EU, afirmando que inclui o TODO numa conformação megalomaníaca à luz da grandiosidade...;

Casal psicológico, como ocorreu com as “irmãs Papin”, ou entre mãe e filha, ou entre pai e filho, já mais difícil... mas pode;

Uma mãe que deseja ardentemente uma filha e só tem um filho e resolve cria-lo como menina... pode? Pode!

Alguns dos nossos gênios vem a galope montados no mito individual do neurótico de Lacan, entre música e arte, entre pintura e escultura, entre sucesso, fracasso e esforço..., não raro com elevada produtividade, apresentam ao mundo alguma coisa de genial e digna de eterna veneração, mas quando o excesso sacode a estrutura básica da mente, o corpo padece. A base neurotizante parece uma diplopia com até dois panos de fundo e que se operam em planos que não se encontram. Não se encontram porque o neurótico de carteirinha está sempre demissionário, sempre vingativo e nem sempre suportável. Uma obsessão bem ou mal calibrada, como a do homem dos ratos, lembrada por Freud como ambivalência afetiva, mostra uma clivagem entre o amor consciente e o ódio inconsciente: uma relação operada entre seu pai e uma “senhora que ele venera”. Um outro caso bastante explorado foi o de Goethe, 22 anos, Strasburg explode sua paixão por Frédérique Brion, superando o amor de Lucinde, como com qualquer mulher, quanto ao beijo nos lábios. E o posterior abandono de Frédérique, trata-se de um dos episódios mais enigmáticos. Vítima ou Vilão, sim ou não, mas sempre demissionário e vingativo. Sofre e faz os outros sofrerem.

É preciso coragem para sermos o que somos e astúcia para conviver no heterogêneo mundo dos desiguais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário