Natalia Viana, 8 de dezembro de 2010, 9.00 GMT
A menos de um mês do final do mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o WikiLekas publica uma série de telegramas que revelam como o presidente e figuras-chave do seu governo eram descritos pela diplomacia americana.
Lula nunca foi mal visto pelos embaixadores – foram quatro durante seu governo –, embora a política externa fosse olhada com desconfiança. Mas, pessoalmente, ele foi descrito muitas vezes com surpresa, suas quebras de protocolo devidamente registradas e a sua equipe devidamente estudada.
Logo no primeiro contato, o senador Aloizio Mercadante foi descrito como “radical”, enquanto José Dirceu, que viria a ser ministro da Casa Civil, seria mais “discreto”. Já o ex-ministro da Economia, Antônio Palocci seria “uma voz para acalmar os mercados”.
Os telegramas também mostram que, se os embaixadores viam o Itamaraty como adversário, Lula reclamava do Departamento de Estado como um obstáculo para uma boa relação com o presidente Bush.
Primeiro contato
Na primeira reunião com oficiais americanos, no dia 21 e novembro de 2002, Lula, “animado, elegante e descansado”, teria dito logo de cara que queria ter uma boa relação com Bush: “Acho que dois políticos como nós vamos nos entender quando nos encontrarmos frente a frente”. Dois anos depois, ele voltaria a elogiar o presidente Bush, agradecendo “calorosamente” por sempre ter sido tatado com respeito e gentileza pelo americano.
Mas o telegrama sobre a primeira impressão americana, de novembro de 2002 relata tambem uma gafe presidencial, talvez a primeira. O presidente teria afirmado querer mudar a percepção que os oficiais brasileiros são “um bando de ladrões irresponsáveis” e de que “o Brasil é outra Colômbia”.
A frase teria sido proferida na reunião entre o que viria a ser o núcleo duro do governo com o subsecretário de estado americano Otto Reich – um encontro descrito como “caloroso e produtivo”.
Nele, Dirceu, Palocci e Mercadante defenderam a prioridade aos parceiros do Mercosur. Segundo o telegrama, Dirceu chegou a interromper Mercadante para dizer que as negociações bilaterias são importantes “mas teriam que ser feitas dentro dos compromissos regionais do Brasil”.
Reich ainda tentou tirar satisfação sobre a participação de Marcadante no Foro de São Paulo - uma coalizão de partidos de esquerda latinoamericanos - irritado com o fato de que havia ali líderes das Farc e do governo cubano.
Mercadante respondeu que muitos dos participantes do Fórum são “esquerdistas antiquados” e que poderiam aprender muito com o PT, cujo foco seria “defender a democracia”. Foi a deixa para Reich falar de violações de direitos humanos em Cuba, ao que Dirceu rebateu. "Nós vamos simplesmente ter que concordar em discordar".
No final, Reich é taxativo: “Nós não temos medo do PT e da sua agenda social”, promete.
No telegrama enviado ao Departamento de Estado, ele descreveu os três políticos como tendo “personalidades complementares e contrastantes”.
“O radicalismo antigo de Mercadante não está muito longe da superfície. Ele fala para convencer mais do que para explicar, frequentemente apontando o dedo para seu interlocutor. Mesmo assim é cortês e claramente focado em projetos bilaterias específicos”.
“Dirceu é muito mais discreto. Nunca corrigiu Mercadante mas algumas vezes o interrompia para qualificar suas observações. Ele parece ser o ’primeiro entre iguais’”.
“Palocci, cuja estrela ascendeu rapidamente nos últimos meses, é talvez o mais pragmático do grupo. Ele fala devagar e com calma – geralmente sobre temas econômicos – claramente consciente do efeito das suas palavras. É uma voz aparentemente designada para acalmar os mercados”.
Segundo mandato
Em outubro de 2006, o futuro embaixador Clifford Sobel e os conselheiros políticos da embaixada presenciaram outro momento histórico.
Era dia 30 de outubro, o dia seguinte à reeleição, e eles visitaram o Palácio do Planalto, onde detectaram um clima de “jubilante celebração”, segundo um telegrama secreto enviado às 17:51 horas do dia 1 de novembro..
“Uma fileira de VIPs fluíam pelo palácio para ter audiências com o presidente reeleito”, prossegue Sobel.
Os americanos encontraram o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho “aliviado” e “nas alturas”. Carvalho afirmou a eles uma frase que seria um mantra nos encontros com a diplomacia americana: apesar de ter buscado ampliar as alianças no primeiro mandato, a prioridade seria relações com os parceiros tradicionais, como os EUA.
Mas o embaixador não deixou barato, reclamando que “certos” membros do governo falavam que o Brasil precisava "countrabalancear" o poder americano. Carvalho concordou enfaticamente, disse que não se falaria mais nisso – e ainda pediu a compreensão pela retórica usada durante a campanha eleitoral.
Sobel também encontrou com o general Jorge Armando Felix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e o ministro do Desenvolvimento e Indústria Luiz Furlan – ambos, na visão da diplomacia americana, aliados que sempre brigaram por mais proximidade com o país. Mas conclui seu telegrama com uma crítica ao Itamaraty, o que seria a sua marca à frente da embaixada.
“Nossos interlocutores do alto escalão estavam de muito bom humor ontem, com palavras gentis para todo o mundo, inclusive para os EUA. Mas sem grandes mudanças no alto escalão e na orientação do ministério das relações exteriores duvidamos sobre a viabilidade de uma mudança favorável aos EUA e ao mundo desenvolvido em vez da prioridade sul-sul do primeiro mandato de Lula”.
O Departamento de Estado, outro desafeto
Clifford Sobel se apresentou formalmente como embaixador no dia 7 de novembro de 2006. E já chegou reclamando. No telegrama enviado no dia seguinte, explicou que a cerimônia foi atrasada pela campanha eleitoral, sendo que ele estava no Brasil desde agosto. Mesmo assim, a reunião com Lula teria sido “positiva” e com uma “atmosfera calorosa”.
Lula conversou com Sobel e seus assessores junto com o chanceler Celso Amorim e o assessor especial Marco Aurélio Garcia. Defendeu uma parceria sobre etanol e ganhou como resposta um inusitado presente: uma foto autografada por Bush do encontro do G-8 ocorrido em São Petesburgo, na Rússia, em julho.
No final, Sobel voltou a mostrar desconfiança com as palavras doces do governo brasileiro: “nós vamos continuar esperando para ver, atentos para outros desenvolvimentos que podem indicar se essa ofensiva charmosa se traduz em uma mudança significativa na politica externa”.
Como já demonstraram outros telegramas publicados pelo WikiLeaks, o embaixador – que jamais conseguiu dominar o português – a continuou esperando até o fim.
Embora os EUA continuem sendo um forte parceiro comercial e Sobel tenha chegado a comemorar em entrevista à revista Veja um estrondoso aumento dos investimentos brasileiros no país, a dinâmica do comércio exterior brasileiro mudou e a China chegou a substitui-lo como principal parceiro comercial em 2008.
No dia 27 de julho de 2009 , Sobel se despediu do país. Na ocasião, ele enviou um colorido telegrama a Washington narrando o último encontro com Lula.
“Essa conversa final permitiu um insight singular sobre a complexidade e a tensão no pensamento de Lula sobre as relações exteriores. Caloroso, pessoal, e sedutor no começo e no final da reunião, ele fez um monólogo intenso e quase agressivo no meio da conversa”, diz.
Para Sobel, o fato de Lula ter reclamado das dificuldades com o Mercosul – em especial do presidente boliviano Evo Morales, que acusara Washington de tramar o golpe em Honduras – era uma boa nova. O embaixador via isso como um sinal de que Lula queria se aproximar dos EUA para solidificar seu papel no continente.
Nesse sentido, relatou ele, o presidente reclamou da proibição do governo americano à venda dos aviões super Tucanos à Venezuela.
“O Brasil precisa das ferramentas para poder lidar com seus vizinhos, disse Lula. Se a Bolivia que comprar Super Tucanos, Lula tem que poder vender. O Brasil não pode arcar com esse tipo de vexame ao não poder vender Super Tucanos à Venezuela”.
Para Sobel, “o Mercosul chegou aos seus limites como mecanismo de integração”. Ele escreveu que após a cúpula do Mercosul em julho, “a tensão era palpável” e Lula estaria “perturbado”.
“Ele acredita que os Estados Unidos ainda têm problemas significativos com sua imagem e relacionamento no hemisfério mas que o presidente Obama pode superar esses problemas”.
Lula também teria criticado a burocracia do governo americano, que não teria ajudado nas relações bilaterais – assim como Sobel tantas vezes criticou o Itamaraty.
Apesar de ter uma boa relação com Bush, Lula afirmou que “nunca conseguiu trazer o Departamento de Estado para essa relação”.
“O seu foco nos líderes Morales, Sarkozy, Obama e a sua visão negativa da burocracia são uma demonstração clara da importância que Lula dá às relações pessoais da conduta da política externa”, observa Sobel.
O embaixador de Obama
Somente em 9 de fevereiro de 2006 o atual embaixador, Thomas Shannon, se apresentou formalmente ao presidente Lula. Nesse encontro, Lula avisou que iria visitar o Irã em maio com o objetivo de "abaixar a temperatura” sobre a questão iraniana – uma versão muito diferente do que foi retratado pela imprensa.
Lula, “saudável depois de uma crie de hipertensão”, mais uma vez estendeu a reunião por muito mais tempo que o combinado, o que foi notado pelo americano. Shannon também relatou a empolgação com a figura de Barack Obama. “Ele vê o engajamento de Obama como crítico para uma nova relação de qualidade não só com o Brasil, ma com a América Latina como um todo”.
O terremoto do Haiti, ocorrido duas semanas antes, também dominou a pauta. “Lula, claramente engajado na questão o Haiti, reforçou a necessidade de colocar a ONU e o governo haitiano no comando dos esforços de reconstrução”.
O presidente teria lamentado que os países ricos usassem a corrupção do governo haitiano como argumento para não dar dinheiro diretamente a ele. Com as ONGs, a coisa seria tanto pior: “A maioria do dinheiro dado através de ONGs vão para pagar salários e despesas para estrangeiros ou funcionários que estão fora do Haiti”, teria dito o presidente brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário